1 A história da literatura brasileira
Na superfície, as polêmicas literárias d’antanho podem parecer-se com as atuais tretas da internet, mas, ao contrário destas, as polêmicas do tempo em que ainda havia a ilusão de um espaço público têm uma diferença importante: elas deixavam legados, faziam escola.
A própria fundação da literatura brasileira está associada a uma polêmica, muito estudada nas universidades. Em 1856, o jovem José de Alencar — sim, aquele mesmo que você leu na escola, aquele de Senhora e de Iracema — decide usar o pseudônimo de «Ig» para dizer, no Diário do Rio de Janeiro (jornal que ele mesmo dirigia) que o poema épico A confederação dos tamoios não estava assim exatamente cumprindo sua promessa de fundar a literatura de um país tão grandioso e promissor quanto o Brasil.
O detalhe é que o autor do romance era Gonçalves de Magalhães, o maior medalhão literário da época, e o patrocinador da edição era ninguém menos do que o imperador Pedro II — o qual, aliás, ficou tão sentido com a rejeição de «Ig» que também assumiu um pseudônimo e entrou na conversa.
Magalhães mal é recordado. Alencar firmou-se definitivamente. Sua contribuição para a literatura «nacional» é incontornável. E Machado de Assis, decerto marcado pela polêmica, me parece ter inventado anos depois, ao abordar a mesma questão, o estilo que eu mesmo chamo de «alto brasileiro», e que tem a função de dizer coisas duras enquanto se mantém um ar de civilidade e se ameniza o golpe.
A polêmica foi importante. Ela foi digerida por um longo tempo e teve muitos ecos.
O mesmo vale para as polêmicas do modernismo contra o parnasianismo, do concretismo contra o modernismo, e de Bruno Tolentino contra os concretistas — esta última polêmica, aliás, descrita no indispensável Até você saber quem é, de Diogo Rosas G. (Mas compre o livro pelo entretenimento, que vale, e muito; depois você se preocupa com essa parte do «indispensável».)
2 A tecnologia e a ilusão do espaço público
Quando tínhamos a ilusão de um espaço público sustentada pelo domínio de poucos grandes jornais, a polêmica fazia todo sentido. O ataque não podia ser ignorado.
Verdade que não era um ataque gentil e de espírito democrático, e que o estilo «alto brasileiro» dominou as universidades assim que elas passaram a existir. Nos jornais, assim como na internet hoje, o adversário era mais denunciado do que contestado, simplesmente porque a denúncia pressupõe uma superioridade do denunciante, e a contestação pressupõe que ambos estão mais ou menos no mesmo nível.
Ainda assim, o espaço era restrito e, por isso mesmo, precioso. Escrever no jornal era uma honra e um privilégio. Se o jornal dava seu espaço para um ataque daqueles, se o «espaço público» era subitamente ocupado pelo ataque, o leitor prestava atenção, e o atacado tinha bons motivos para respondê-lo, mesmo que fosse uma resposta do tipo «mas você sabe com quem está falando?» (que foi, aliás, a resposta dada a Alencar e a resposta dada a Bruno Tolentino). Ainda que o objetivo do atacado fosse demonstrar seu desprezo cósmico e dizer que seu adversário era indigno de resposta, o lugar de dizer isso era no jornal.
Agora, a partir do momento em que cada pessoa tem seu palanque próprio na internet, em que cada autor que se leva a sério não pode fugir de tentar formar seu público na internet, a «racionalidade econômica» — digamos — das polêmicas muda totalmente. Não existe mais a ilusão do espaço público. Não existe mais uma equiparação de poder. O jovem Alencar, ao publicar num grande jornal, tinha o mesmo espaço de medalhões estabelecidos que publicavam num grande jornal. A arena era a mesma. O pequeno podia desafiar o grande, e fazia sentido para o grande aceitar o desafio.
Na internet é o contrário. Não faz o menor sentido para o grande aceitar o desafio do pequeno, porque eles não estão no mesmo espaço. O grande não apenas pode ignorar o pequeno como certamente fará isso, a menos que seja um «homem do subsolo» dostoievskiano. Posso criticar um blogueiro de um milhão de seguidores ou dez mil assinantes, mas seria tolo da minha parte esperar uma resposta, porque qualquer resposta dele seria mais benéfica para mim do que para ele.
Ainda vale dizer aqui algo direcionado a jovens aspirantes a blogueiros. Somente os amadores acham que «é preciso responder» ou que «é preciso dizer algo». Se você quer escrever de verdade, você sabe para quem escreve, por quê, e o que você pretende obter. (Eu escrevo imaginando as pessoas que gostam de entrar nas livrarias e de folhear os lançamentos, tento dizer coisas que ainda não vi sendo ditas, e espero produzir uma consciência mais aguçada do nosso próprio ambiente.) Se você quer escrever de verdade, você trata suas próprias palavras como se fossem preciosas.
Se as grandes polêmicas literárias e de ideias talvez não ocorram nunca mais, principalmente porque os grandes jornais abdicaram da missão de representar o espírito iluminista e democrático, isto é, da missão de dar espaço para ideias verdadeiramente contraditórias, isso não é motivo para cair nas tretas da internet. Melhor manter a preciosidade do que se diz.
3 E politicamente falando
As consequências políticas do novo ambiente tecnológico são vastas demais para serem discutidas aqui. Mencionarei apenas as que me parecem mais relevantes para meu próprio raciocínio.
Mesmo na antiga polêmica não havia um espírito propriamente «democrático» de reconhecimento do valor do adversário. O debate era feito para a plateia, mas ao menos a plateia era a mesma. Hoje, como nem sequer as plateias são as mesmas, diminuem os incentivos para a demonstração de qualquer respeito pelo adversário — o qual obviamente não será um «adversário», mas, como já apontei, um flagelo da sociedade, um ser digno de nojo, que deve ser expurgado por nós, a gente de bem. Cada autor vai falar para a própria bolha, e toda bolha é definida na superfície pela adesão nominal a certas virtudes e, mais profundamente, pela rejeição a inimigos comuns.
As paixões tristes vetadas no suplemento jornalístico prosperam na internet. Raiva, desprezo, nojo, escândalo — e eu mesmo só consigo aceitar que alguém continue procurando essas paixões nos textos que lê, nos vídeos que vê, se atribuir essa procura a um vício. Autor e leitor estão enredados no escândalo.
Se o desafiante não vai obrigatoriamente compartilhar a mesma arena que o desafiado, a estratégia a ser utilizada em qualquer polêmica precisa ser totalmente distinta, porque o primeiro objeto a ser conquistado não é mais o público. O primeiro objeto a ser conquistado é a atenção do desafiado, e, para isso, é preciso escrever de modo a ser lido por este — que ainda assim pode ignorar o desafiante. Você quer dizer que alguém está errado, quer que essa pessoa leia seu texto, e ainda responda, quando nada na situação a força a responder — eis um belo desafio.
Por isso mesmo me parece que, nesse ponto, a internet obriga a uma civilidade que talvez nem sequer tenha existido antes na vida cultural. No tempo das arenas poucas e inevitavelmente compartilhadas, o desafiado teria de encarar um desafiante que o tratasse com nojo e desprezo. Hoje é facílimo ignorá-lo. Davi lança a pedra, e Golias nem toma conhecimento.
Dou um exemplo: Matheus Araújo, embora tenha no Instagram mais seguidores do que eu, criticou algo que eu disse, e afirmou inequivocamente que julgava que eu estava errado, sem no entanto me tratar com nojo ou desprezo.
4 O «escândalo Olavo de Carvalho»
Talvez fosse necessário fazer um longo prefácio mimético para explicar o «escândalo Olavo de Carvalho», mas, por ora, farei apenas alguns apontamentos.
Primeiro, do ponto de vista da teoria mimética, as redes sociais promovem a «aproximação do modelo».
Em 1992, eu gostava de ler a coluna do Mauro Rasi no jornal. Rasi foi um grande dramaturgo, e suas crônicas eram bem divertidas. Mesmo que eu morasse em Copacabana e ele, no Leblon, eu nem sequer sabia como era seu rosto; a distância entre nós era imensa. Eu o lia; eu apreciava seus textos; ele estava, para mim, na posição de «modelo».
Como ele estava «longe», eu não sonhava em ser amigo do Mauro Rasi. Nossa relação era unilateral e eu estava contente com isso. Não era uma relação estruturalmente distinta da relação que tenho com René Girard ou com William Shakespeare. Não havia inveja, porque ele estava em outro plano, em outro mundo.
Se Rasi escrevesse em 2024, provavelmente eu o seguiria nas redes sociais. Saberia como é sua casa, onde ele toma café, e ele próprio publicaria pequenas atualizações todos os dias. Mais importante: eu poderia responder. Poderia mandar uma mensagem, deixar um comentário, e, como eu não diria nada idiota, talvez ele até respondesse, caso não recebesse trocentas mil mensagens. A distância entre nós teria sido muito, muito encurtada.
Agora, a proximidade do modelo cria certos problemas. Se Rasi e eu podemos falar na mesma rede social (antes ele tinha uma coluna no jornal, meus pais tinham a assinatura, e só), se podemos tomar o mesmo café, no mesmo lugar… o que ele tem que eu não tenho? O prestígio dele começa a parecer arbitrário. Só porque ele escreveu uns roteiros de programas e umas peças de teatro? Mas eu também tenho brilhantes insights sobre a vida cotidiana! Também li meus livros! Viajei!
Esse problema ainda seria agravado se o meu modelo — como é o caso de Olavo de Carvalho — adotasse um linguajar agressivo e polarizador.
Lá está o meu modelo expulsando os demônios e adquirindo prestígio por meio de seu discurso violento; não posso eu também obter o mesmo prestígio adotando as mesmas estratégias? Afinal, eu vejo a vida dele, sei que ele dorme tarde, acompanha tretas da internet, lê livros. O que nos distingue?
Olavo de Carvalho marca, junto com a chegada da banda larga e do smartphone, tanto o fim da ilusão do espaço público quanto a impossibilidade de ignorar o arquipélago de bolhas da internet. Se uma pessoa sem dinheiro no banco nem parentes importantes pode provocar esse abalo todo, por que não eu? Olavo de Carvalho foi uma espécie de Napoleão Bonaparte que criou incontáveis Juliens Sorel (o jovem protagonista de O vermelho e o negro que se vê como grande conquistador de fortunas e de mulheres).
Hoje já estamos numa fase posterior, e os Juliens já caíram na banalidade. Porém, um tipo de relação que cada Julien pode manter com esse Napoleão que, em vida, foi tão próximo de nós, é aquilo que o Evangelho, na interpretação de René Girard em Eu via Satanás cair como um relâmpago, é o escândalo.
O skándalon bíblico pode muito bem ter o sentido de «ficar obcecado por alguém que você detesta» — o que, aliás, é outra experiência comum da internet. Se eu detestasse Mauro Rasi, mas o lesse religiosamente todas as semanas, essa obsessão mórbida teria o nome de «escândalo». Se você detesta Donald Trump e fica lendo notícias sobre Donald Trump, você está escandalizado por ele. O melhor que você tem a fazer, por você mesmo, é esquecê-lo; você vai pensar que é preciso libertar o mundo do mal trumpista e por isso é preciso escrever artigos, livros, e análises; mas você vai consumir a si mesmo nesse processo, e uma parte da vida terá sido pautada por alguém que você alega desprezar.
«Se a tua mão direita te escandaliza, corta-a» — o problema não é a mão, mas o escândalo. É melhor viver sem mão do que viver escandalizado.
(E se digo que Golias hoje pode desviar da pedrada de Davi, isso também serve para que Golias não fique escandalizado por Davi. Golias, aliás, também é filho de Deus.)
É importante aqui insistir que o escândalo tem pelo menos esses dois níveis. Superficialmente, você diz ter desprezo; diz que aquela pessoa provoca no máximo consternação, medo; alega que está realizando um trabalho necessário e vital, como se fosse a Insetisan da cultura. Olhando, porém, o que você efetivamente faz, fica óbvia a sua atração irresistível por essa outra pessoa. Você não acompanharia o que ela diz na internet, não leria todas as suas palavras, não escreveria a respeito dela, se não tivesse essa atração — e «a boca fala daquilo de que o coração está cheio.»
Olavo de Carvalho, assim como Trump, e assim como qualquer outra figura de prestígio deste mundo de redes sociais que decida adotar um estilo polarizador (o estilo que estou me esforçando muito para evitar aqui) se tornará escândalo para outras pessoas. E estou falando de pessoas inteligentes, boas, sérias, que vão ficar travadas, medusadas por uma pessoa, querendo ter o prestígio dela ao mesmo tempo que a detestam ou desprezam.
José de Alencar não passou mais do que alguns meses de 1856 «medusado» pelo pequenino establishment literário do Rio de Janeiro; Bruno Tolentino não passou mais do que alguns meses vidrado nos irmãos Campos e no establishment literário brasileiro, e tenho certeza de que os irmãos Campos logo viraram a página tolentina de suas vidas. Além disso, a distância entre eles — Alencar não recebia quinze atualizações diárias de Magalhães e fingia que via aquilo apenas para divertir-se — permitiu que a discordância deixasse algum fruto.
Na internet, você tem a oportunidade de acompanhar uma pessoa que você julga estar no mesmo plano que você, receber todas as atualizações dela, fingir que não tem interesse, de repente indignar-se com algo que parece «importante», e reconhecer apenas que você deseja algo que esse outro já tem: um público maior, um pouco mais de prestígio (que lhe parecem indevidos e usurpados, fruto da decadência cultural, etc.). Assim é que um Olavo de Carvalho, morto, é imitado — seja por blogueiros que praticam a mesma mistura de erudição e vulgaridade, que falam filosoficamente mas não perdem a oportunidade de ser cáusticos, seja por acadêmicos que, para desmistificar Olavo de Carvalho, escrevem obras com a mesma estrutura de O jardim das aflições — ao mesmo tempo em que é odiado.
As redes sociais são um convite ao escândalo e, por isso, têm esse aspecto apocalíptico. A solução para sair disso é assumir o custo nada desprezível de dirigir-se com certa distância respeitosa às pessoas de quem você discorda — ou isso, ou calar a boca, para o próprio bem. Se o blogueiro te escandaliza, corte unilateralmente relações com o blogueiro…