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126 Perdoar é acreditar; perdoar é dar crédito

A tremenda beleza de «Euphoria»

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jan 08, 2025
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Um dos seminários oferecidos em 2024 foi sobre a série Euphoria. O texto abaixo resume a última das reuniões em que discutimos a série.

A justificativa

Para este texto, que me parece apropriado para um começo de ano, para um recomeço, cá neste país em que as estações em geral são pouco marcadas e não deixamos nossas resoluções para «depois do Carnaval» nem «depois da Páscoa», decidi adotar um formato ligeiramente acadêmico.

E um texto acadêmico deve começar com uma justificativa, que já foi dada: o novo ano de 2025.

O primeiro objetivo do texto é mostrar que, na série Euphoria, há uma inteligência da relação entre perdão, fé, e redenção. A série mostra que «perdoar é acreditar (no sentido de “dar crédito”)». Gostaria também de convencer quem não viu a série a vê-la, e de mostrar, a quem já viu, uma tremenda beleza, porque talvez ela não tenha sido percebida.

O corpus não será a série toda, mas os dois episódios especiais que estão entre as duas temporadas existentes até agora. Esses episódios são designados como S00E01 e S00E02, mas aqui só vou referi-los como «o primeiro» e «o segundo».

A argumentação consistirá em reconhecer os elementos escancaradamente religiosos desses episódios e relacioná-los com as falas e com as ações dos personagens.

A conclusão, porém, fica com o leitor. Já apresentei um objetivo: explicitar uma tremenda beleza. Já apresentei uma justificativa: o começo de um novo ano, que podemos encarar como um «dia do perdão».

O corpus

Euphoria é uma série americana, disponível na HBO, que, à primeira vista, pode parecer ter sido feita para chocar. As protagonistas da série são Rue, uma adolescente viciada que acaba de sair da primeira reabilitação depois de uma overdose, e Jules, uma menina trans dedicada a «obliterar a feminilidade». A lucidez que as duas têm quanto ao próprio desejo as põe na linhagem dos personagens de Dostoiévski, de Bernanos, de Nelson Rodrigues; de certo modo, são as Mouchettes (de Sob o sol de Satã), as Glorinhas e Marias Cecílias (de Perdoa-me por me traíres e de Bonitinha mas ordinária) de um mundo sem tabus, em que não há nada mais para transgredir.

Por isso, até, fica o convite para que o espectador não ofereça a sua própria sensibilidade como tabu a ser transgredido, e decida dizer que está, sim, cho-ca-do com essa representação da juventude. E nem custa recordar que a sensibilidade cristã-respeitável-conservadora pode até comprar Dostoiévski, Bernanos, e Nelson, porque são «clássicos», mas nunca pode lê-los… O que aparece em Euphoria não vai chocar os leitores dessa trinca de reaças.

Os dois episódios especiais de Euphoria se passam entre a primeira temporada e a segunda. O primeiro episódio mostra a conversa de Rue com Ali, seu padrinho nos Narcóticos Anônimos, na noite do dia 24 de dezembro. O segundo mostra a primeira sessão de terapia de Jules com a dra. Nichols (personagem que só aparece nesse episódio) na manhã ou na tarde do mesmo dia.

Os episódios são escancaradamente religiosos

O dia 24 de dezembro não é um acaso. Os episódios assumem totalmente a véspera do Natal e o viés religioso. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, seria possível dar ao Natal um clima de reunião familiar com cumprimentos genéricos de «boas festas» («happy holidays»), mas não é isso que acontece. E não só: a terapeuta de Jules esclarece que é judia ao ouvir o Merry Christmas da paciente, e Ali faz questão de frisar que é muçulmano.

No fim do primeiro episódio, que equivale de certo modo ao «meio» ou «centro» do conjunto de dois episódios, e que também corresponde, no tempo do que é narrado, ao fim dos dois, a trilha sonora é a «Ave Maria» de Schubert.

A presença da Virgem Maria no meio do drama é uma nota de esperança, e ainda remete, por supuesto, a um dos principais temas do episódio de Rue, que é a aceitação de um «poder maior». Afinal, a letra da «Ave Maria» é a própria oração, cuja primeira parte é a saudação («ave») do anjo a Maria (no cap. 1 do evangelho de Lucas). A resposta de Maria é «faça-se em mim segundo a tua palavra» — a definição das definições da aceitação desse «poder maior».

Esse primeiro episódio, com Rue, é que será marcado pela discussão direta dos temas «religiosos»: não apenas o «Poder maior» do segundo passo dos Narcóticos (e Alcoólicos) Anônimos, como o perdão, a fé, e a redenção.

No segundo episódio, Jules dirá: «Para mim, ser trans é algo espiritual.» Não se trata de uma «blasfêmia». Na verdade, estamos quase que diante de uma redundância. Ser trans é ser transcendente, é querer estar além da imaginação alheia. Jules está reclamando que tentou conformar-se ao que os homens querem de uma mulher e ficou entediada. Por isso mesmo, ela quer ir além dessa imaginação. Para onde? Ela própria não sabe ainda.

(Sim, aceito plenamente o argumento de que essa é uma falsa transcendência. Mas o anseio pela transcendência está aí.)

Episódio 1: Rue & Ali

Véspera de Natal. Num diner, aquela instituição americana onde são servidas as mesmas panquecas universais e o mesmo «café» (e tome aspas), Rue conversa com seu padrinho Ali, que já deve estar indo para o quarto PhD em escutar enrolações de viciados. O que Ali quer é convencer Rue de que é bom para ela ficar sóbria. O que Rue quer é convencer Ali de que ela pode até estar usando drogas, mas está tudo bem.

Agora, aquilo que faz a história andar, não é simplesmente o encontro dos dois, mas a admissão de Rue assim que Ali percebe que tudo que ela está dizendo é conversa para boi dormir:

«Você pode até dizer que a sobriedade é a minha melhor arma, mas, para dizer a verdade, provavelmente é só por causa das drogas que eu ainda não me matei».

Essa admissão ainda dá outra cor ao que Ali tinha acabado de dizer a respeito de si mesmo: «Eu não passo de um cracudo que está tentando fazer alguma coisa boa antes de morrer.» O que podia ser entendido como uma piadinha agora passa a ser uma séria admissão. Os dois se posicionam como «pecadores», e sem aquela penteadeira de velha de «oh! Deus! não mereço nada! mas!». Cada um deles sabe o que fez no verão passado.

Se Ali, então, responde Rue com um «Agora a conversa começou», é para que fique claro que agora saímos da mentira e entramos na verdade. Impossível não pensar nas palavras do monge Zózimo a Fiódor Karamázov, homem do subsolo, «velho bandalho» como disse Nelson Rodrigues, e pai dos irmãos Karamázov: «Não minta para si mesmo.»

Após admitir que pretende continuar usando drogas, Rue fala de sua dificuldade em aceitar o «Poder maior» do segundo passo dos Narcóticos Anônimos. Problema nenhum com o primeiro passo — «Admitimos que éramos impotentes perante a nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis» —, mas o segundo — «Viemos a acreditar que um Poder maior do que nós poderia devolver-nos à sanidade» — não desce. O que é um Poder maior?

Ali responde primeiro com banalidades. Uma acusação velada de que Rue é orgulhosa. Então nada é maior do que Rue? Ela diz que sim, e menciona o mar como exemplo — o qual será retomado no episódio de Jules. Ali dá a tréplica com outra banalidade: «Deus acredita em você.» E é essa banalidade, essa platitude, que será resgatada ao final do episódio. É esse clichê que ganhará corpo com os episódios especiais de Euphoria.

Porque pouco depois Ali demonstra uma perspicácia maior ao falar da necessidade que temos de acreditar, apesar de todos os deuses disponíveis já terem sido esvaziados pelo comercialismo. A ideia de revolução hoje serve para vender tênis, e, de qualquer modo, amanhã virá ainda outra «revolução». Aliás, o que ele diz sobre o esvaziamento dos símbolos parece ter saído diretamente de Neil Postman ou de qualquer crítico conservador.

Mas no que vamos acreditar? «Você tem de acreditar na poesia», diz ele. Eu até poderia deixar a questão em aberto, como se estivéssemos numa daquelas gloriosas aulas de primeiro semestre de uma universidade americana. Só não posso, contudo, deixar de traduzir essa observação na teoria mimética: precisamos ter um modelo, sabendo que temos um modelo; do contrário, seremos governados por modelos que não escolhemos.

Perdoar é acreditar

Um bom episódio de uma série, porém, deve ser mais do que um bom pretexto para filosofar. Quem quer filosofar pode escrever um ensaio. O coração do episódio está na ação e no diálogo. Num episódio que consiste num longo diálogo, é preciso prestar atenção à estrutura do diálogo.

Rue já admitiu seus pensamentos mais sombrios e logo mencionará seus atos: pegou um caco de vidro, pôs o caco na cara da mãe, disse que ia matá-la — o que, segundo ela, seria «imperdoável», ainda mais porque fez isso sem estar drogada.

Ali, sem entrar na competição de quem fez a pior coisa, também fala do que já fez de imperdoável: bateu na esposa na frente das filhas, as mesmas filhas que hoje não o recebem em casa, que no máximo falam com ele ao telefone em ocasiões especiais, como a noite de Natal. Ali não foi perdoado.

A experiência de Rue e de Ali é bem diferente da experiência da pessoa que tem vergonha de si mesma e se diz «imperdoável». Muitos dentre nós temos essa sensação vaga e difusa de nojo de nós mesmos — nojo do nosso corpo, nojo por não termos realizado o que achávamos que deveríamos ter realizado. Esse problema é distinto, porque Rue e Ali sabem exatamente o que fizeram.

Ali, porém, sabe que fez coisas ruins, mas que ele não é fundamentalmente uma pessoa ruim. Por isso explica a Rue: «As drogas mudam a pessoa que você é.» Até reconheço a tentação de dizer «não, eu sou ruim sim, as drogas só revelaram isso», mas preciso trazer o Pedro católico para interferir: essa posição é herética. Tudo que Deus criou é bom. Ali tem culpa, mas acredita que pode ser bom. Ele já passou pelos passos 4 e 5 dos Narcóticos Anônimos: «4. fizemos um profundo e destemido inventário moral de nós mesmos, e 5. admitimos a Deus, a nós mesmos e a outro ser humano a natureza exata das nossas falhas.»

O caminho do purgatório

O imperdoável parece criar um impasse — palavra que, em francês, impasse («âmpáss»), tem «beco sem saída» como sua primeira acepção no dicionário Robert. Agora que entrei nessa, que cruzei a linha do imperdoável, não tenho mais volta. Estou encurralado. Ali decerto já viu isso mil vezes e tem belas palavras a dizer, mas essas belas palavras — que vou citar abaixo — só serão belas mesmo por causa da maneira como ele vai bancá-las:

E essa punição, a sentença que você está aplicando em si mesma, é que você, Rue Bennett, está além do perdão. Essa punição é severa demais, e também é muito fácil demais. Ela permite que você continue fazendo exatamente o que já faz, porque… você merece. Não há esperança. Você está além do perdão. […] As pessoas ficam fazendo coisas que elas acham imperdoáveis, e, assim, concluem que não há motivo para mudar. Daí você tem um monte de gente por aí que está pouco se lixando para a redenção. Isso sim dá medo.

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