Aviso: Este texto serve como base para a discussão da segunda e última aula ao vivo prevista no curso Escrever com clareza. A aula será neste sábado, 25/01, às 16h. Os alunos encontram o link na seção «aulas ao vivo» na Hotmart, onde também estão dois textos de Alain traduzidos por mim e uma pequena seleção de Nelson Rodrigues (a mesma que usei numa Oficina de Escrita). Como exemplo do «texto bem escrito» mencionado abaixo, você pode ler os posts de Ted Gioia aqui no Substack, ou este exemplar de Luís Marrafon. (Luís, se você não está no curso, fique à vontade para me procurar e aparecer no sábado, se quiser.)
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Se este fosse um artigo científico de psicologia social, eu converteria minhas impressões em parâmetros e pediria para a máquina averiguá-los num corpus selecionado. Porém, este ainda é um texto antiquado; é um texto impressionista, como diria, pejorativamente, um acadêmico. Em minha defesa, eu diria que este texto pertence a um gênero que nunca vingou muito no Brasil, que é o ensaio; e, nele, não tenho por que me envergonhar das minhas impressões.
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Uma das coisas que descobri na faculdade de Letras foi que o modelo que eu tomava como critério para entender a vida começou a existir apenas na era moderna e se chama romance de formação.
Mas talvez eu deva começar dizendo como eu mesmo enxergo o romance. Pois: é uma forma literária voltada para a desmistificação e para a investigação. A desmistificação e a investigação ocorrem pelo contraste de pontos de vista diferentes, muitas vezes do mesmo personagem ou narrador.

Exemplo: Lenu, com 66 anos, começa a narrar sua juventude em A amiga genial. A jovem Lenu só enxergava Lila Cerullo e Nino Sarratore pela frente; a Lenu mais velha consegue descrever com exatidão quais foram as estratégias que ela foi adotando para fingir que «não doeu, não doeu» e que estava tudo bem. Assim, todos os acontecimentos têm pelo menos dois sentidos diferentes: um sentido para a jovem Lenu, e outro sentido para a Lenu mais velha, que narra o livro. O contraste entre os dois pontos de vista — que ainda poderiam acrescentar-se a outros pontos de vista do futuro — é que torna visível a «formação».
Viver e refletir a respeito do vivido, não para filosofar e encontrar verdades gerais, mas para entender como cheguei aonde cheguei, e então recontar o passado a partir das novas perspectivas; repetir o processo indefinidamente, porque o futuro é aberto, continua aberto, porque ainda há coisas a descobrir, novas dimensões a atingir, e não de maneira competitiva, mas porque o acúmulo da experiência e da reflexão tem efeitos tão inadvertidos quanto inevitáveis.
Ou, dizendo de maneira um pouquinho menos abstrata: você percebe que, quando buscava X, na verdade estava querendo Y, e a vida pode reiniciar a partir dessa busca mais refinada.
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Eu ainda conseguia enxergar a estrutura mais livre do romance de formação nos textos mais curtos. Uma crônica poderia apenas representar um momento, um flash da vida, uma reflexão, uma peça de um quebra-cabeças cujas peças na verdade ainda nem terminaram de ser fabricadas. Um texto poderia ser preciso e uno como uma propos de Alain, tentando enquadrar uma questão dentro de um debate, ou poderia conter digressões e digressões como uma crônica de Nelson Rodrigues, constrangida mais pelo prazo e pelo número de palavras do que por uma ideia essencial.
Não havia tanta preocupação em entender o sentido e o contexto geral daquilo que eu lia, porque eu tinha fé de que aquilo fazia sentido para alguém, mesmo que esse alguém fosse eu mesmo no futuro. A vida é aberta; será impossível entender tudo; só Deus pode armar o quebra-cabeças, se é que o quebra-cabeças é mesmo uma boa metáfora; a mim resta viver com a ambiguidade e não me desesperar com ela.
4
A internet, os tablets, e os smartphones aumentaram muito a nossa disposição para ler nas telas, mas as novas tecnologias certamente não trouxeram o aumento avassalador da variedade que era uma de suas grandes promessas na década de 1990. (Nesse sentido, a internet foi uma grande flopada cósmica.) Antes, a internet trouxe um novo tipo de texto, e eu começo a me perguntar se não há, como havia com o romance de formação, o mesmo mecanismo que se retroalimenta: as pessoas passam a ler textos assim e passam a enxergar a vida assim; por enxergar a vida assim, as pessoas passam a produzir e a demandar textos assim.
Não tenho ainda um nome para esse novo formato, mas tendo a chamá-lo com certa maldade de «Ted Talk» (o que até lembra «TikTok»…).
Não que eu tenha algo contra o Ted Talk em si. Nada contra uma palestrinha de no máximo vinte minutos que é uma espécie de infomercial de uma ideia. Agora, quando o formato se dissemina, quando mesmo ideias interessantes passam a valer-se dele, quando o próprio Ted Gioia (um dos mais famosos substaqueiros) critica a nova cultura digital com uma forma de texto (e, portanto, de pensamento) que só funciona nessa mesma cultura digital… Eu me pergunto se não é preciso recuar um pouco mais.
Vale dizer, também, que entendo bem a ideia de apropriar-se de um formato apenas para subvertê-lo, mas não é isso que Ted Gioia está fazendo. Nem ele, nem outras pessoas que seguem o formato.
E também não estou dizendo que Gioia e outros autores escrevam mal. Pelo contrário. O que eles fazem é bom e interessante. Não vim aqui para criticar o hambúrguer; vim para dizer: mas olha, também é possível comer uma refeição com dezessete pratos, apenas confiando no cozinheiro, e só depois, inclusive depois de alguns dias, de alguma reflexão, saber do que você mais gostou.
5
Estou falando de um texto assim.
Você sabe.
Há esse novo gênero de texto bem escrito. Esse gênero que segue o modelo da carta de vendas.
Primeiro, ele conscientiza o leitor quanto a um problema — exatamente como estou fazendo agora.
Segundo, os parágrafos são curtos. Não há subordinações nem períodos longos. (Sim, eu sei que um Nelson Rodrigues também usava frases curtas, mas a semelhança termina aqui.)
Terceiro, o objetivo do texto é «vender» uma ideia no final, uma ideia que é a solução para aquele problema apresentado no começo.
Para o leitor chegar ao final, é preciso manter o suspense. É um pássaro? É um avião? Não, é a resposta para a pergunta lançada lá no começo! E que vai mudar a sua vida!
É um texto escrito para o leitor que não pretende esforçar-se. E tudo bem: eu mesmo não procuro textos só porque eles exigem esforço.
Mas é engraçado que o texto se dirija a quem não pretende fazer o menor esforço intelectual e sempre celebre… o trabalho e o esforço.
Esse trabalho e esse esforço acontecem fora da leitura porque o leitor não me parece enxergar-se como um personagem de um romance de formação, como o protagonista de uma educação aberta.
O leitor desse texto tem finalidades pré-determinadas, missões a cumprir — e ele já sabe muito bem que missões são essas.
Ele é 007, e o autor do texto é o Q. O autor pode ser o «mago», e o leitor é o «herói». O autor não é um colega. O autor não é um professor. O autor não apresenta uma impressão pessoal, nem diz nada que não tenha um papel pré-definido na vida do leitor.
Agora, não negarei que um formato vencedor pode ser muito bem executado. Também não negarei que pode ser útil.
Só me pergunto, mesmo, se o melhor que tenho a fazer é resistir um pouco, recorrendo às formas antigas, aos formatos de uma vida que me parece mais rica, ou se devo usar essa riqueza para usar o novo formato — mas subvertendo-o.
Afinal, a melhor subversão vem disfarçada.
Pedro, a leitura deste texto me fez lembrar um exercício bastante comum entre os seguidores da direita olavista, chamado “necrológio”, que você certamente conhece. Você vê alguma contradição entre essa perspectiva da vida como uma aventura e o ato de estabelecer uma imagem final de si mesmo para segui-la como guia ?
Você ia adorar a disciplina que fiz na pós com o Lúcio Marzagão: "narrativas clínicas e narrarivas literárias". Acho que não existiria Psicanálise se não houvesse o Romance de formação (talvez por isso Freud idolatrava Goethe).