133 «Hiperintenção»: desejar o que não pode ser desejado
Se existe uma noção fácil de empacotar e usar agora…
O texto abaixo nasceu das descobertas feitas no primeiro Seminário Viktor Frankl x René Girard. O leitor pode ter uma boa ideia de como é uma das reuniões a partir deste texto.
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Um resumo
Neste texto, você encontra:
Uma definição da hiperintenção, a noção com que o psiquiatra Viktor Frankl engloba certos desejos impossíveis.
Exemplos da hiperintenção: ser produtivo, ter cultura.
Uma explicação de como a hiperintenção molda o nosso imaginário. Queremos coisas sem sentido!
Uma explicação de como o «desejo metafísico» de Girard tem a forma da hiperintenção de Frankl. Se você é psicólogo, acompanha esta newsletter, e tem interesse pela teoria mimética, a hiperintenção já aponta até mesmo para o tratamento do desejo metafísico.
Certos objetos perdem a mágica assim que tomamos posse deles. Por quê? Como evitar essa frustração?
O que é a hiperintenção
Um dos livros que marcou a minha geração e, creio, também a geração anterior, foi A arte cavalheiresca do arqueiro Zen, publicado originalmente em 1948 pelo filósofo alemão Eugen Herrigel. Naquele tempo pré-internético, pré-bandalárguico, pré-smartphônico, em que não víamos todos os dias dicas e mais dicas para sermos agora mesmo mais do que sentimos que somos, ainda prestávamos atenção na mensagem daquele livro: o arqueiro, para atingir o alvo com arte (arte, areté, excelência), tem de desistir do alvo; não é o arqueiro quem atira com o arco, é «algo» que atira. E o leitor ficava a ponderar: não almeje diretamente o resultado, sinceramente não almeje, realmente o esqueça, e então, quem sabe.

Na nossa vida comum, uma ideia por trás do tiro ao arco Zen está na «hiperintenção» de Viktor Frankl.
Não é difícil entender a «hiperintenção». Basta entender que existem resultados que podem ser buscados diretamente, e resultados que não podem ser buscados diretamente, porque são apenas decorrências de outros processos.
Eu mesmo tenho um curso chamado Escrever com clareza. Sua proposta foi inspirada na hiperintenção de Viktor Frankl. Você não pode querer escrever um texto «bom», mas pode querer escrever um texto claro. A clareza pode ser ensinada. Um texto será bom porque, entre outros, é claro.
Todos os dias eu faço café. O resultado pode me agradar ou me desagradar. Mas eu posso almejar diretamente um café agradável? Não. Posso seguir uma receita, mesmo que seja a minha própria. Posso produzir um café mais encorpado, usando um método como a Aeropress, mais concentrado ou menos concentrado. Essas qualidades eu posso almejar. O café ser agradável ou «bom» é uma decorrência delas.
O próprio Frankl discute a hiperintenção (e sua irmã, a hiperreflexão) muitas vezes num contexto sexual. Você não pode desejar diretamente o orgasmo ou uma grande experiência sexual; você precisa relaxar e realmente gostar da outra pessoa e do que está acontecendo.
Agora, nesta minha releitura madura de Frankl, duas coisas me impressionaram muito.
A primeira é que a nossa cultura já tem a forma da hiperintenção; estamos tão acostumados com ela que, na verdade, parece-nos difícil entender que a vida possa ser diferente.
A segunda é que a hiperintenção é a forma do «desejo metafísico» de René Girard.
Comecemos pela nossa cultura.
A hiperintenção na cultura
Eu e você certamente já nos perguntamos como «ser mais produtivos». A produtividade nos parece um bem em si mesma. Mas que sentido tem querer ser produtivo sem ter um objetivo anterior ao desejo de ser produtivo?

Frankl repetia uma frase atribuída a Nietzsche: «Quem tem por que viver, não precisa de como.» Digamos que o sentido da minha vida, neste momento, seja escrever estes textos para que as pessoas possam se libertar das minhocas que nossa cultura põe em suas cabeças. Se eu tenho esse objetivo, posso me perguntar se fui produtivo: escrevi o que deveria escrever? Será que deveria ter feito um vídeo? Preciso repetir? Levar a mesma ideia para o Instagram?
Do contrário, «ser produtivo» faria tanto sentido quanto eu ir até a cozinha e começar a preparar comida apenas porque tenho um fogão. What for?
Isso decerto ainda gera um ciclo de ansiedade. Uma pessoa que não sabe por que fazer as coisas se esforça para ser mais produtiva, e assim aumenta a produtividade de nonsense.
Outro belo exemplo, muito forte na bolha da direita, é o desejo por «alta cultura» ou mesmo por «cultura». As grandes obras de arte passam a ser tratadas como se fossem o pré-sal da imaginação, e lá vai o blogueiro, essa Petrobras da cultura, extrair riquezas para revendê-las. Porém, as pessoas que «têm cultura» nunca buscaram «ter cultura»; sua «cultura» é uma decorrência de sua curiosidade, de seu gosto pessoal (sim, alguns membros da espécie humana gostam de verdade de Sibelius e de Dostoiévski), etc. Você pode vender «alta cultura», mas isso é o equivalente a vender um sugador de clitóris no AliExpress: ele pode até fazer uma cosquinha, mas não podemos dizer que seja, digamos, uma experiência completa.
Mais ainda, hoje quase todos os cursos online são vendidos como uma forma de poder, de aumento de «domínio da realidade». Essa promessa é pura hiper-intenção. Se você passar a ler e a escrever com mais clareza, talvez não fique mais poderoso; talvez você perceba como são ruins os textos da grande mídia (e também da mídia independente de direita) e fique deprimido.
Essa estrutura de hiperintenção já está prevista no marketing desde que a publicidade decidiu — no século XIX, creio — passar da pura descrição dos objetos à venda para a mágica realidade que eles produziriam.
Assim, um carro não é um carro: é liberdade. Um MacBook não é um laptop: é criatividade. Com o curso online do Fulano, você terá uma nova vida.

Não que o marketing deva servir de bode expiatório. Até mesmo o nacionalismo, surgido no venerável século XVIII, tem a forma de uma hiperintenção. Aqui, porém, eu precisaria fazer uma digressão bastante longa…
A hiperintenção e René Girard
Passo ao «desejo metafísico» de René Girard. Trata-se de um desejo que tem como objeto a plenitude que você julga enxergar no outro. É um desejo associado à inveja, e que engloba todos os exemplos que dei até agora.
Não quero exatamente um MacBook ou ler especificamente Dostoiévski; quero ser criativo e ter alta cultura, porque criatividade e alta cultura são expressões da plenitude. Não quero ter um carro, quero ter liberdade, porque liberdade é uma expressão da plenitude.
Chega até a ser difícil simplesmente definir esses objetos, sobretudo a plenitude. Você é livre porque tem um carro? A pessoa que não tem carro nem precisa dele não pode ser livre também? Se uma pessoa se apaixonou pelo romantismo alemão, e outra pelas tradicões do nordeste brasileiro, é possível dizer que uma é mais culta do que a outra? Isso sequer faz sentido? O que faz sentido é que sempre nos parece que o outro é mais pleno; por trás desse desejo de plenitude está o desejo de ser pleno como o outro.
Nada disso, porém, pode ser buscado diretamente. Imagine um especialista em romantismo alemão. Ele provavelmente se especializou nisso por realmente se interessar pelos temas e pelos autores que fariam parte do «romantismo alemão». Se ele tivesse desejado diretamente o «romantismo alemão», é possível que seu destino fosse o cosplay. A cultura desse especialista é a decorrência de uma trajetória, e essa trajetória não foi prevista nem predeterminada.
Evitando a frustração
Ter percebido tudo isso me ajudou a formular um problema comum da teoria mimética. É muito comum que a obtenção de um objeto desejado traga vazio e frustração. O MacBook não torna você criativo, a sensação de liberdade trazida pelo carro acaba rapidamente, o curso online não transforma sua vida. Esses objetos todos estavam recobertos de prestígio e apontavam para aquele desejo de «plenitude» que é uma hiperintenção — o desejo por algo que é uma decorrência, por algo que não pode ser premeditado.
Porém, você pode perfeitamente tomar posse de algo sem ter essa experiência de frustração. Você não pode tomar posse de nada que seja objeto de hiperintenção (como um orgasmo ou a criatividade), mas pode comprar um MacBook e ficar satisfeito, ou até mesmo um carro esportivo luxuoso — ou, como eu gostaria muito, uma caneta Otto Hutt Design 06 com pena de aço EF na cor preta. Basta que uma condição seja preenchida. É possível formular essa condição de duas maneiras distintas.
Primeira: você não espera que o objeto tenha propriedades mágicas. Ele não vai transformar você em outra pessoa. Se hoje eu comprasse um MacBook novo, seria porque um computador com mais portas seria muito conveniente para mim (mas o que eu tenho dá para o gasto). Se eu tivesse muito dinheiro e um gosto por carros, e um lugar onde apreciar um carro esportivo, eu saberia que prazer ele me traria. Uma Otto Hutt preta seria mais suave aos meus olhos do que o vermelho vivo que miro todos os dias. Não vou morrer sem ela, mas ela me traria alegria. Posso, enfim, ter ideia daquilo que me satisfaz.
Segunda: a satisfação é uma espécie de sentido. É como se algo se fechasse. Como se uma lacuna real fosse preenchida. Posso desejar aquilo que é utilitário, como um MacBook, sabendo qual é a sua utilidade na minha vida (ter mais portas). Penso no que Frankl diz a respeito de o sentido ser sempre único e pontual: é exatamente disso que estou falando. Sei o que fazer com o objeto, sei qual seu onde, sei qual seu quando; ele não é mágico; não espero que ele me transporte para um novo mundo, mas que resolva alguns problemas deste mundo aqui.
A sensação de plenitude, por sua vez, pode até existir. Não pode ser buscada, mas pode ser vivida por meio de um abandono. Se me entrego à escrita de um texto, ao terminar o texto posso dizer que tive um momento de plenitude; mas se, durante a escrita, eu quiser dizer que estou in the zone ou num estado de flow, já ponho em risco esse estado. Preciso, na verdade, me abandonar mais, me abandonar melhor, deixar que «algo» escreva, assim como o arqueiro Zen tinha de deixar que «algo» atirasse.