Pedro Sette-Câmara

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137 As emoções do pecado

137 As emoções do pecado

Medo e compaixão, desde Aristóteles

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mai 14, 2025
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137 As emoções do pecado
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Ao preparar a primeira aula do seminário que começa nesta quarta, me deparei com algo que me surpreendeu muito: as emoções que aparecem quando falamos do pecado hoje são as mesmas que Aristóteles dizia serem evocadas pela tragédia: medo e compaixão. Será coincidência? Afinal, essas emoções aparecem quando Aristóteles fala da «hamartía» — a palavra grega que é traduzida como… pecado.

Como sempre, o assinante que não pretende participar dos seminários encontra aqui, abaixo das informações, um texto que vale por si.

Informações

Encontros: 14, 21, e 28/05, das 19h30 às 21h30, pelo Google Meet. (Sim, agora começamos um pouco mais cedo.)

Preço por PIX: R$ 135, enviados para ps@pedrosette.com, R$ 115 para assinantes da newsletter. Por favor, envie o comprovante por email.

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As emoções do pecado

Esta manhã tive uma surpresa: as emoções que hoje cercam nossa abordagem do pecado são muito próximas daquelas que Aristóteles dizia serem evocadas pela tragédia.

Afinal, mesmo que seja algo batido e previsível, nunca é imprudente voltar aos gregos. E como esquecer que a hamartía — a palavra que grega que traduzimos como «pecado» — é mencionada na Poética, onde costuma ser traduzida, de maneira redundante, como “falha trágica”? Aliás, ali, na Poética, o termo não tem nenhuma conotação moralizante, e é costume lembrar que o substantivo hamartía vem do verbo hamartánein, que significa simplesmente «errar o alvo».

Vale fazer uma ressalva antes de prosseguirmos: as palavras mudam de sentido. Mudam com o tempo, mudam ao serem levadas para novos contextos, mudam ao serem levadas para novos idiomas. No português de hoje a palavra «idiota» é entendida como sinônimo de «burro», mas em sua raiz grega ela significa algo como «aquele que só se refere a si mesmo». Podemos usá-la nesse sentido mais sofisticado, mas, na língua comum, não podemos ter a expectativa de corrigir alguém que use «idiota» apenas no sentido de «burro». Por isso, não vale a pena presumir que Aristóteles necessariamente estava pensando em «errar o alvo» ao escolher o substantivo hamartía. E não custa recordar o óbvio: o contexto cristão em que a palavra «pecado» assume novos sentidos nem sequer existia quando os gregos estavam lá errando seus alvos.

Voltando então ao caminho da prudência — também muito grego, devo admitir —, hoje cedo me lembrei de que o trecho da Poética em que Aristóteles fala da hamartía é também o trecho em que ele fala de «terror e piedade», ou, como eu preferiria dizer, «medo (nada contra o “terror”) e compaixão», para evitar uma ambiguidade. E isso me fez soltar aquele opa! mental que soltamos quando percebemos algo, porque medo e comiseração são emoções ainda hoje ligadas ao pecado. Isto é, a primeira aula do Seminário de Teoria Mimética sobre o pecado tem de começar por aqui.

A parte da Poética (c. 335 a.C.) que sobreviveu, a primeira, é o texto em que Aristóteles explica como funciona uma «tragédia» — uma tragédia grega, daquelas a que Aristóteles assistia, um gênero teatral bem específico, não uma tragédia no sentido de «uma história triste». No trecho da hamartía, ele explica que um personagem nem tremendamente virtuoso nem particularmente vil — impossível não lembrar de Hamlet dizendo I am myself indifferent honest, sou um cara médio, nada incrível, nada terrível — comete uma hamartía. E, se a obra de arte atender outras condições, como um enredo bem amarradinho, então ela vai suscitar no público medo e compaixão.

Por que medo? Porque a hamartía tem a ver com uma punição divina. O exemplo paradigmático (perdão pelo adjetivo, tenho doutorado em Letras), dado pelo próprio Aristóteles, é Édipo, aquele que matou o pai e se casou com a mãe. Aristóteles não precisa acrescentar aquilo que o público grego sabia e nós sabíamos: Édipo estava sob a «maldição dos labdácidas», lançada pelo deus Apolo quando seu pai, Laio, enfim, raptou um rapaz, Crísipo. Apolo então disse a Laio que seu filho o mataria.

Porém — deixo a explicação mais longa para a aula de amanhã, ou convido o leitor a pesquisar o mito completo nas internets (convido-o também a não dizer: Gato, Peidei — Chat, J’ai Pété —, me explica aí a maldição dos labdácidas), quando Édipo mata o pai, ele não sabe que está matando o pai, mas um estranho com quem teve uma briga na estrada, e isso é que o levará a se casar com a própria mãe, ter quatro filhos-irmãos, e, ao procurar o culpado da peste que assola Tebas, descobrir que o culpado é ele mesmo. Sua mãe-esposa se mata, Édipo arranca os próprios olhos, e as desgraças ainda se estendem aos filhos-irmãos.

Por que a compaixão? Porque Édipo não sabia o que fazia. Provavelmente, no lugar dele, teríamos feito a mesma coisa. A palavra grega que é usada por Aristóteles, éleos, é a mesma que aparece na missa, na forma de verbo, quando os cristãos pedem, em grego, que o Senhor tenha piedade, se compadeça deles (Kyrie, eleíson).

Assim, temos o medo do deus que lança maldições e sempre vence, mesmo quando você tenta evitá-lo, e a compaixão pelo personagem que cometeu um erro que qualquer um cometeria. Apenas, sem saber, esse personagem estava apenas executando o plano da ira divina.

Foi então que percebi: não temos aqui, precisamente, as duas vias pelas quais abordamos o pecado? A via do medo, e a via da compaixão? (Sim, agora convido o leitor a dar um salto de séculos para o cristianismo.)

A via do medo pressupõe esse Deus que, apesar de cristão, é irado e vingativo como Apolo. Nessa via, o estudo do pecado é um estudo jurídico, cheio de casuística, em que o pecado é descrito e catalogado da maneira mais minuciosa: isso pode, isso não pode, isso depende, aquilo mais ou menos, aqui é mortal, aqui é venial, temos de ver se as condições foram cumpridas, e é verdade que existem agravantes mas existem atenuantes também. Na via do medo, Deus é bom desde que você cumpra a sua parte do contrato. O pecado é a transgressão da lei divina, e Deus já mostrou que era bom porque explicou uma parte do contrato e ainda te deu a razão para você deduzir o resto. Nesse sentido, a ignorância passa a ter algo de erro moral, e o Kyrie, eleíson é entendido na melhor das hipóteses como «sou um cocô esforçado, por favor não me ignore».

Na via da compaixão, que é a via que espero estar adotando, você primeiro se identifica com o pecador, assim como o público da tragédia se identificava com o herói trágico. E, como você não acredita num Apolo vingativo, você acredita que todas aquelas enrascadas têm alguma saída; o destino não está encurralando ninguém. Você raramente tem a experiência de pensar «bem, agora estou pecando!», você primeiro age e só depois, quando está num momento mais tranquilo, talvez se arrependa do que fez, ou ao menos perceba que aquela não foi a melhor decisão. Você agiu como um herói trágico: no lugar dele, teria feito aquilo mesmo, sem nem pensar muito. Você se sentiu compelido, e compelido sem perceber; você admite a responsabilidade pelo que fez, mas sabe que não considerar que o pecado teve algo de involuntário e até de insciente (que é a melhor maneira de traduzir o inglês unaware) é de um simplismo cruel e infantil. Nesse sentido, o Kyrie, eleíson (sim, se fala «elêisson»; na transliteração grega o acento do ditongo cai na semivogal), o pedido de compaixão, tem o sentido de «me ajude aí a sair dessa enrascada!».

(O leitor mais atento da newsletter já deve estar ligando os pontos: aquilo que nos leva a atos involuntários, inscientes, pelos quais somos responsáveis sim, mas que parecem vir de uma estranha compulsão é… o double bind.)

Entendo que algumas pessoas (como eu mesmo alguns anos atrás) podem ficar um pouco escandalizadas com essa «via da compaixão» — que nada mais é do que reconhecer-se pecador desde dentro, a partir da sua situação, e não desde fora, de uma lei que você mal chega a compreender e que só pode adquirir um sentido pessoal para você depois que você sai das suas enrascadas —, achando que essa «desmoralização» do pecado levaria a uma espécie de preguiça moral. Porém, não estou falando desde a posição de delegado da polícia moral; prefiro a posição de carinha que tenta guiar a reunião dos Pecadores Anônimos, em que você está menos interessado em saber como seria o ideal com que conformar-se e mais interessado em compartilhar seus podres para ver se obtém a ajuda de que precisa para sair da lama.

Não creio, também, num duelo de vontades, como se a questão toda fosse a minha vontade impor-se às compulsões que tenho. Qualquer leitor de psicologia pop já sabe que muitos vícios têm uma origem emocional e que, se você cortar a gula, por exemplo, vai passar a descontar em outra coisa, vai ficar descompensado.

Como quer que seja, fica o convite para que o leitor venha explorar o pecado este mês a partir desta «via da compaixão» — uma exploração que será também uma aplicação da teoria mimética na nossa vida cotidiana. (Afinal, não somos todos pecadores?)

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