001 — "O Jessé realmente conhece a minha obra"
Pedro Sette-Câmara
“O Jessé realmente conhece a minha obra”
Na terça-feira, 14 de janeiro, cumpri um dever fundamental da biografia de Bruno Tolentino: fiz a primeira entrevista com Jessé Primo.
Almoçamos juntos no Manai, um quilo da Alameda Santos — peguei bife de fígado sem perceber, estranhei a textura, e, ao perceber o que era, não consegui comer mais nada — e depois sentamos no Starbucks para nossa conversa.
Depois fiquei lembrando do momento em que soube que Jessé existia.
Em 12 de maio de 2007, último dia em que estive com Bruno Tolentino, ele disse: “O Jessé realmente conhece a minha obra.” Foi uma daquelas frases que inadvertidamente ficam gravadas na memória. Não sei se a essa altura quantas recordações daquele dia já existem apenas reconstruídas, e por isso mesmo alteradas. Seria reconfortante ter confiança absoluta na própria memória, mas é claro que essa ideia mesma já parece ter algo de louco.
Assim, não sei o quanto a lembrança tem de fabricado, mas sei que a minha memória é principalmente auditiva. Vejo Bruno à contraluz de um dia nublado, fumando à janela por onde entrava uma luz ofuscante e prateada que diminuía o contraste das cores, mas será que foi mesmo naquele momento que ele disse isso?
A única certeza é a de que houve sim o momento em que ele, de pé, interrompendo alguém, talvez Martim Vasques, talvez Renato Moraes, no momento em que eles me apresentavam o que seria a futura administração da obra, disse: “O Jessé realmente conhece a minha obra.”
Lembro também de ficar um pouco atônito e de ser corroído por uma certa inveja. Afinal, ler um autor é criar uma relação secreta com ele. Foi-se o tempo em que pequenas multidões acompanhavam folhetins nas ruas, com uma pessoa lendo em voz alta para as outras. Hoje só lemos em segredo. No caso da poesia, então, o escritor Antônio Cícero chega a ser contrário à leitura em voz alta de poemas — mesmo que eu não concorde, consigo entendê-lo perfeitamente.
Àquela altura eu tinha passado já dez anos lendo Bruno Tolentino, entendendo secretamente o que ele fazia. Eu era a única pessoa que eu mesmo conhecia até então que tinha lido Yves Bonnefoy e entendido o quanto a obra de Bruno quis ser um diálogo com a de Bonnefoy. Já tinha lido bastante Auden, a quem Bruno se referia, e também Geoffrey Hill.
E de repente eu ouvia pela primeira vez Bruno mencionar esse Jessé, que ainda por cima conhecia a obra dele muito bem. Quem seria? O que significava conhecer a obra do Bruno muito bem? Mal sabia eu que significava conhecer essa obra muito melhor do que eu a conhecia.
(Aliás, doze anos depois, isso ainda é verdade.)
Bruno faleceu em 27 de junho de 2007, e em 2008 Martim Vasques organizou uma homenagem a ele no Centro de Estudos Universitários, um local ligado ao Opus Dei, onde eu mesmo dei algumas aulas de literatura grega. Nessa homenagem, assisti a uma palestra do Jessé. E fiquei chocado.
Eu me gabava comigo mesmo por ter captado algumas referências sonoras, rítmicas, em alguns poemas do Bruno. Algumas, é verdade, são óbvias, como aquele soneto de Anulação & outros reparos (na edição original, “Canção de aniversário”; na edição de 1998, o título mudou para “Como um presente?”) que imita “Os poderes infernais”, de Carlos Drummond de Andrade. Jessé, porém, esbanjava culura poética e bom ouvido. Um exemplo do que ele é capaz de fazer pode ser lido neste texto, que começa relacionando Bruno e Cecília Meireles.
Que Jessé Primo tivesse captado essas semelhanças rítmicas é inteiramente conforme com o que dizia Bruno sobre como escrever poemas. Várias vezes o vi dizer que bastava você pegar um poema do qual gostava e começar a escrever “por cima” dele. Reescrevendo e reescrevendo, logo você chegava a outro poema. Decerto isso é muito mais profissional e produtivo do que ficar esperando bater a inspiração.
Anos depois, João Cezar de Castro Rocha, meu orientador de mestrado e doutorado, começaria a insistir que apenas nas artes visuais, especialmente na pintura, ainda se guarda o valor da imitação. Eu só conseguia pensar em Bruno Tolentino, insistindo na imitação e, por tabela, fazendo de sua obra um gigantesco diálogo com inúmeros autores. A famosa originalidade é algo que surge como uma decorrência dos esforços de imitar. Uma decorrência, não uma finalidade a ser buscada.
E é assim que eu volto à minha pontada de inveja inicial do Jessé. Penso no soneto 29 de Shakespeare: Desiring this man’s art, and that man’s scope — ”querendo a arte desse homem, e a liberdade daquele”. T. S. Eliot repetiu esse verso em “Ash Wednesday” com uma modificação: “Desiring this man’s gift”. A “arte” virou o “dom”. Mas é pela imitação que você obtém a arte, e, quando você tem a arte, parece que você tem o dom. Não dá para querer ser rico sem querer o trabalho. Não dá para querer o orgasmo sem desejar outra pessoa. Não dá nem para querer o reino dos Céus sem amar outras pessoas (Cristo, aliás, é uma pessoa).
Não existe outro começo possível para esta newsletter. Se eu não admitir minha inveja, talvez nunca consiga desenrolar os fios que tenho de desenrolar para escrever os livros que tenho de escrever: até agora, a biografia de Bruno Tolentino e uma reflexão sobre a nova direita brasileira.
Pedro Sette-Câmara, São Paulo, 18/01/2020