002 – A "escrita de si", e por que ela veio para ficar
Como chegamos à “escrita de si”
– e por que ela veio para ficar
Essa semana vi um crítico revirando os olhos para a “escrita de si”. Na mesma hora me lembrei dos meus anos de mestrado e doutorado em Literatura Comparada. A sensação era de que ao menos uma vez por semana alguém apresentava um trabalho sobre a “escrita de si”, e eu, que mal sabia de que se tratava, também revirava os olhos.
Mas convenhamos que “escrita de si” é um nome péssimo. Assim como “autoficção”, ele nos coloca sob a luz fria da sala da pós, diante da lousa branca riscada do azul igualmente frio do marcador Pilot. Ou, pior ainda, o nome “escrita de si” nos transporta para a atmosfera infinitamente entediada da graduação em Letras…
Porém, porém, e porém, admito que é curioso que eu nunca tenha ido assistir a nenhuma daquelas apresentações, justamente porque o autor que me motivou a escrever a biografia de Bruno Tolentino (projeto que nasceu em 2014, no meio do mestrado) é o francês Emmanuel Carrère, mestre contemporâneo da “escrita de si”.
Foi lendo um post no finado blog de Sérgio Rodrigues no site da Veja que tive a ideia. Rodrigues mencionava o livro Limonov, de Carrère, e dizia: só aceitamos a narrativa rocambolesca desse livro porque é a biografia de Eduard Limonov, isto é, porque é real; se fosse ficção, seria inaceitável. Na mesma hora pensei: "Mas a vida do Bruno parece ser assim também."
Comprei os livros de Carrère. D’Autres vies que la mienne se tornou imediatamente um dos meus favoritos de todos os tempos (existe uma tradução brasileira, Outras vidas que não a minha, mas nunca li). Limonov, o livro, me fez descobrir que o próprio personagem Limonov também era um “autor de si”: seu primeiro livro, por exemplo, conta suas aventuras como mendigo e mordomo em Nova York, e tem o título O poeta russo prefere os negões (Em francês, Le poéte russe prefère les grandes nègres).
(A propósito, Limonov foi o grande parceiro de Aleksandr Dugin.)
(A propósito, parte 2. O típico trabalho de faculdade de Letras exploraria as relações entre um autor da “escrita de si” que escreve sobre outro autor da “escrita de si”, sem no entanto chegar a conclusão nenhuma. Muitos trabalhos de Letras têm horror a conclusões.)
Essa “escrita de si” não é simplesmente a redação de memórias. Ela consiste simplesmente em o autor narrar qualquer acontecimento assumindo explicitamente a sua própria presença e seu ponto de vista. Ela é eu escrever a biografia do Bruno Tolentino e lá para as tantas dizer: “Conheci Bruno em 1997 etc.” Também é dizer: “Fui encontrar Martine em Marselha. Aluguei uma casa baratinha perto dela. Passamos alguns dias conversando. Uma noite jantamos na casa de seu filho Raphaël, cuja foto está na orelha de Os deuses de hoje.” Ou, como gosto de dizer, é escrever apresentando algo dos bastidores da escrita.
E é claro que isso nem é novo. Na década de 1960, Tom Wolfe escreveu o famoso “Radical Chic”. Wolfe foi à casa de Leonard Bernstein em Manhattan participar de um jantar para arrecadar fundos para os Panteras Negras. Seria mais ou menos como ir à casa de um artista hoje para levantar dinheiro para… eu quase disse MST, ou MTST, mas não sei se existe uma equivalência.
Hoje em dia você faz buscas pelo termo no Google e logo se depara com textos como os daquele crítico do começo, que afirmam que a “escrita de si” só provoca tédio. Mas esse tipo de afirmação só pode valer para um leitor profissional, para um acadêmico, que lê tudo e enxerga a história da literatura toda ao mesmo tempo. Não vou entrar nessa discussão. Basta lembrar do famoso verso de Mallarmé em “Brise marine”: “La chair est triste, hélas! et j’ai lu tous les livres” (“A carne é triste, ai!, e li todos os livros”).
Eu, porém, não escrevo desde o ponto de vista de quem leu todos os livros – eu reli alguns, de maneira obsessiva, e nunca desejei ter lido tudo. Conheço pelo menos duas pessoas que têm esse apetite onívoro, e não me identifico com nenhuma delas.
Eis, então por que penso que essa “escrita de si” veio para ficar.
Mas antes, preciso fazer uma ressalva. O que vou apresentar é apenas uma impressão. Não consigo ainda nem mesmo formular a hipótese. Já tentei várias vezes, mas ainda não consegui chegar a termos menos piores.
Vamos lá. Me parece que desde o Renascimento apenas cresce, nas artes, a demanda por uma espécie de naturalismo.
Não preciso falar que a pintura renascentista se destaca por seus estudos de perspectiva e de proporção, todos a serviço da representação da natureza. Não estamos mais representando a versão ideal de um objeto, mas este objeto.
Penso em Yves Bonnefoy, que começa seu ensaio “Anti-Platão” com a frase “Trata-se precisamente deste objeto” (grifos no original; o ensaio está em Du Mouvement et de l'immoblité de Douve).
Se você ficar no campo das artes visuais, o que surge nos últimos séculos? Fotografia e cinema. Claro que você pode fazer o que quiser com fotografia e cinema, mas a inovação técnica delas consiste em captar este momento, este objeto.
E o que acontece na literatura?
A literatura moderna é também um resultado tecnológico. Ela não existiria se Gutenberg não tivesse inventado a imprensa, e, com isso, ampliado enormemente o público leitor.
O jornalismo moderno também só existe por causa da imprensa de Gutenberg. Vejam que até hoje essa é a atividade que tem o mesmo nome da tecnologia: imprensa. Ninguém diz que trabalha no telefone celular, apesar de viver produzindo conteúdo para o Instagram. Mas o nome “imprensa” passou a designar muito mais do que uma tecnologia mecanizada de reprodução de páginas, que dispensa copistas manuais.
(A escola moderna também é uma invenção da imprensa. Recomendo o livro The Disappearance of Childhood, em que Neil Postman mostra como nossa concepção de infância foi inventada pela imprensa, e como está sendo destruída pelo declínio da imprensa. Aliás, a tradução só está disponível usada.)
O jornalismo, por sua vez, é a representação dos famosos “fatos reais”. Logo a literatura também passou a buscar a verossimilhança com a vida, com a diferença de que a literatura podia ir aonde o jornalismo não consegue: à mente dos personagens.
Daí essa exigência de “naturalismo” (não estou falando da escola cientificista de literatura, lembrem): representação do cotidiano, de personagens “comuns”, recusa de idealizações, tentativa de descrever as coisas como são efetivamente vividas, sem a preocupação material em estender-se demais. A página impressa aguenta bem páginas e páginas de minúcias.
Mais ainda, isso corresponde também à tentativa de retratar os “grandes”, reis, rainhas, duques, princesas, etc., em sua intimidade, mostrando seus dilemas reais, suas necessidades reais, e também seu cotidiano – incluindo sua vontade de ir ao banheiro, seus vícios, sua vida sexual, e tudo aquilo que pertenceria à “vida privada”.
Pense, por exemplo: você pode ir a um museu na Europa e ver as coroas de uma dinastia de reis e rainhas. Mas você não teria o mesmo interesse – ou até mais interesse – em ver seus banheiros? Seus quartos? Suas camas? Minha principal lembrança da minha primeira visita ao Louvre, em 1998, são os apartamentos de Napoleão. Do palácio de Versalhes, que visitei em 2012, lembro bem do quarto de Maria Antonieta.
E se você ler um romance histórico sobre Maria Antonieta, quer ler cenas em que ela acorda e toma café, em que conversa francamente com as amigas, ou apenas cenas em que ela está magnificamente vestida – e calada? Você não quer que essa revista Caras histórica te leve também aos bastidores?
Se dermos um pulo para a TV, o que é a TV hoje? Reality shows. Na internet, o que é o Instagram? O maior reality show da história humana, com milhões de personagens.
É fácil ver como a “escrita de si” faz parte disso tudo. Em vez de escrever um romance sobre como artistas ricos se relacionam com militantes violentos, Tom Wolfe simplesmente narra uma festa.
É claro que o romance, como formato, continua existindo, e continua “válido”. Mas a verdade... A verdade hoje está nisto: Wolfe conta da festa a que foi – sem fazer análise sociológica! –, Carrère conta de quando conheceu Limonov…
Cada vez menos existe o larger than life. O espectador quer participar do making-of. Podemos ler Wolfe ou Carrère, mas em que exatamente seu ponto de vista franco e íntimo é diferente do Big Brother? Sim, claro, há o nada pequeno detalhe do talento narrativo, mas a premissa é a mesma.
É por isso que tendo a crer que a “escrita de si” ainda tem uma longa carreira. Porque continuamos querendo “realismo”. Porque esperamos que até a ficção represente de maneira verossímil certas profissões, certas vidas.
Porque esperamos que a “escrita de si”, ao ir além da suposta objetividade do realismo, crie uma espécie de “nova verdade”, isto é, um ponto de vista que tendemos a aceitar como verdadeiro, uma nova fonte de credibilidade: um texto que diga não apenas “testemunhei isto”, mas também “eu sou assim”.
Uma espécie de realização literária da máxima orteguiana de “eu sou eu e minha circunstância”.
Eu mesmo, para chegar até este ponto da argumentação, falei das minhas experiências pessoais. A “verdade” que eu apresento é aquela que eu mesmo adquiri, não é algo que “simplesmente li num livro”, mas algo que vivi, que se misturou com o que li, que deu origem a um certo texto. A diferença é que nestes textos, esse processo, esse jogo entre o eu e a circunstância (os livros lidos, os interesses, as viagens, as visitas, as pessoas) está todo explicitado.
Pedro Sette-Câmara, São Paulo, 09/02/2020 (embora eu tenha demorado vários dias para escrever este texto)