003 — Sexo, mentiras, e videotape
Sexo, mentiras, e videotape
Domingo à noite, acabo de ver Sexo, mentiras, e videotape com minha esposa. O filme é de 1989. Steve Soderbergh escreveu-o e dirigiu-o aos 26 anos. Era um adulto. O filme é para adultos.
Na última newsletter, quase fiz uma digressão sobre a infância. Eu queria falar do primeiro livro de crítica cultural que li na vida, com 18 anos — até então eu só lia literatura diretamente, poesia, muita poesia, algum romance. Mas, nos Estados Unidos, li O desaparecimento da infância, de Neil Postman.
No livro, Postman mostra primeiro o aparecimento da infância. Com o surgimento do livro industrializado pela imprensa de Gutenberg, surge o mercado livreiro, surge o público leitor. Daí vem a ideia de que as crianças deveriam ler. São inventadas escolas para isso. Com o tempo, as crianças passam a ser agrupadas por idade, e passam a ser percebidas de maneira diferente.
Daí, a ideia de inocência infantil viria simplesmente de a criança não saber ler e não ter acesso ao que estava no livro. Imagine um mundo sem smartphones em que você pode compartimentalizar as informações atrás de uma simples barreira de competência.
(A propósito, as casas medievais tinham apenas um cômodo. E quantas histórias passadas na Europa do século XX europeu em que o autor contava que a família ainda vivia toda no mesmo cômodo. Pense no efeito disso para a “inocência”, e no quanto a inocência depende dessa compartimentalização.)
Mas, como eu dizia, Sexo, mentiras, e videotape é um filme adulto. Talvez você não queira ficar amigo dos personagens, mas existe ali um drama impossível de ser reduzido a qualquer maniqueísmo. Sim, claro, você poderia simplesmente dizer que falta religião, que existe imoralidade e tal, mas daí eu lembro do verso de Auden: “And what spiritual truth can be got / Just by looking at yourself and inserting a not?” (“E que verdade espiritual se pode tirar / só de olhar para si mesmo e inserir um não?”).
Esses versos, não por acaso, são os versos que concluem a única obra da qual me doo de inveja, aquela que, se eu tivesse escrito, pensaria ter justificado minha vida: a longa sequência de poemas intitulada “The Quest” (“A demanda”: a “demanda” é melhor do que a “busca” por remeter à “demanda do Santo Graal”).
Essa é uma ideia que nos foi legada pelo romance moderno, o qual só existe por causa daquele livro que Gutenberg industrializou: a de que a vida é uma busca muito complexa por várias coisas, como amor, significado, viabilização financeira, vocação. Não pensamos, por exemplo, que Emma Bovary é apenas uma adúltera pecadora que passava o dia inteiro vendo pornografia na internet, isto é, lendo romances sentimentais: acreditamos que ela tem o direito de buscar “algo mais”. Se você não acreditar nisso, não pode ler Madame Bovary, porque a obra se baseia nessa cumplicidade — aquela mesma que Baudelaire escancarou ao abrir suas Flores do mal chamando o leitor de “meu semelhante, meu irmão”.
Até algum tempo atrás, qualquer pessoa entenderia que reduzir Madame Bovary à história de uma adúltera seria algo infantil, que negava essa complexidade, essa “demanda”.
Assim, é fácil entender que Sexo, mentiras, e videotape faz parte dessa tradição de “demanda” do romance moderno. Dos quatro personagens, ao menos dois, quiçá três, estão em busca de “algo a mais”, ou têm algum problema que não será resolvido com uma frase motivacional — muitas vezes, aliás, essa frase é o equivalente de apenas “olhar para si mesmo e inserir um não”.
Mas isso tudo parece absolutamente distante. Por exemplo, vi “Parasita”, que ganhou o Oscar, um tanto chocado — eu não entendia por que o filme era tão celebrado. Logo vi que tratavam um filme como uma obra de “crítica da sociedade”. E depois vi o próprio diretor dizia que era isso mesmo. Ah, então ok, você quer dizer que parasita na superfície é o pobre que vai lá se aproveitar do rico, mas na verdade o rico é que é o parasita? Como dizia Paulo Francis, waaaaaal...
Onde está a demanda? Onde está a complexidade? Eu entendo que um filme ou um romance tenham um tema. Milan Kundera fala abertamente que seus romances nascem de temas (admito que me senti muito inteligente por ter pensado isso antes de ler Kundera confirmando). Mas mesmo esses temas são complexos, têm uma formulação poética. “A insustentável leveza do ser” depende de uma certa noção de leveza, e de uma certa noção de peso. Ele nunca daria uma entrevista explicando confortavelmente em 30 segundos “o que é seu filme”.
E notem que ele não resumiu o enredo em uma frase. Conseguir resumir o enredo em uma frase é muito bom. Aristóteles dá esse exemplo na Poética, diz que a Odisseia conta a história de um rei que tenta regressar à sua pátria. Mas não: o diretor de Parasita não teve a menor dificuldade em reduzir sua obra de arte — ela é na verdade o exemplo que ilustra a tese. A “crítica social” é mais complexa do que Parasita. Deveria ser o contrário, simplesmente porque criticar é tentar encontrar conceitos, limpar, resumir, simplificar, reduzir, e produzir uma obra de arte é tentar captar algo de vivo.
Essa é a pior volta ao mundo infantil. Uma espécie de retrocesso à simplificação, como se, após você repetir 800 mil vezes, como dizem os americanos, “Me explique como se eu tivesse dois anos”, você passasse a realmente acreditar que só as explicações feitas a crianças de dois anos têm algum valor. Estamos inventando uma espécie de inocência cognitiva em que aquilo que não puder ser reduzido a uma frase é rejeitado, e, pior ainda, considerado suspeito.
E vejam bem: eu nem sequer cheguei a falar da polícia politicamente correta. Ela só pode ter sucesso quando realmente o amor à complexidade já foi abandonado, e até, por que não?, completamente esquecido. A ideia da vida como essa “demanda” parece ter sumido do horizonte: hoje só se pode aspirar a não ser muito difícil de entender, e a ficar satisfeito com isso.