004 — Entre peste e cólera
Entre peste e cólera
Escrevi o texto abaixo pensando nos episódios de Star Trek: The Next Generation e Star Trek: Deep Space Nine que eu via no fim da adolescência. A ficção científica estava sempre a serviço de apresentar um dilema. O drama televisivo obrigava os personagens a escolher um lado, mas sempre com uma apreciação profunda pelo lado enfim desprezado e com a tristeza de estar diante de um impasse. Não havia cólera contra o outro lado. Não havia escândalo. E assim a espaçonave Enterprise podia seguir caminho, sem ser destruída desde dentro, ou a estação Deep Space Nine permanecia no lugar. A questão não era pensar que não havia certo e errado — muito pelo contrário —, mas admitir que muitas decisões podem ser complicadas, difíceis, e respeitar quem decide de outro modo. Mas bem.
As palavras
Se em português dizemos “estar entre a cruz e a caldeirinha”, e, em inglês, “to be stuck between a rock and a hard place”, é na expressão francesa que designa estar entre duas situações igualmente péssimas que tenho pensado: “choisir entre la peste et le choléra”, ou “escolher entre a peste e o cólera”.
Vejam que escrevi “o cólera”. O francês passou a distinguir “le choléra”, no masculino, o cólera, a doença, que aliás o dicionário Grand Robert começa definindo como “doença gravíssima e epidêmica”, e “la colère”, a cólera, a ira, a raiva. O dicionário Houaiss explica que em português decidiu-se imitar essa distinção do francês (embora não diga exatamente quem tomou essa decisão).
Pulando toda uma douta digressão sobre como a palavra vem do grego, indica a bile, está relacionada a um dos humores do corpo humano, e lembra também pessoas “biliosas”, é claro que vou falar da “pandemia” — ou melhor, vou tentar formular uma impressão suscitada por ela, com a ajuda dos gregos. Vou falar de estar entre a peste e a cólera. Não “o” cólera. Vou adaptar o francês. Em vez de le choléra, vou falar de la colère, de estar “entre a peste e a cólera”.
Cólera e escândalo
Nossa mentalidade naturalista pensaria que a doença cólera, “gravíssima e epidêmica”, foi quem fez pensar no contágio da raiva, e fez com que a raiva que se espalha fosse chamada de “cólera”. Mas, como observa Jean-Pierre Dupuy em Retorno de Chernobyl (tradução minha a ser publicada algum dia pela É Realizações), foram as emoções humanas e seus correlatos sociais que deram nome aos fenômenos da natureza e foram usados para explicá-los. Por exemplo, não é a raiva que irrompe como o vulcão; é o vulcão que irrompe como a raiva. Assim, a cólera da alma, contagiosa, é que teria emprestado seu nome à cólera da bile que está dentro de nós.
A cólera, por sua vez, remete a outra palavra grega, àquilo que o Evangelho chama de skándalon, o escândalo, ou, na tradução mais precisa, a “pedra de tropeço”. Muitas coisas de que o Evangelho são realidades imediatas. O escândalo está entre nós. A toda hora enxergamos pessoas que parecem nos querer fazer tropeçar, e ficamos escandalizados, encolerizados.
Digo: “que parecem”. Já estamos predispostos ao escândalo. Uma opinião contrária parece um absurdo. Os defensores do isolamento vertical “só pensam em dinheiro”. Os defensores da quarentena indeterminada não querem evitar outra catástrofe.
A indistinção
Socialmente — por acaso eu tenho alguma competência para falar algo do ponto de vista médico? —, é fácil ver que estamos entre a peste e a cólera. E, se você lembrar que provavelmente foi a cólera de raiva que deu seu nome à epidemia da cólera, à peste da cólera, então estamos entre a peste e a peste, ou entre a cólera e a cólera.
E é inteiramente esperado que as distinções desapareçam entre a cólera e a cólera.
Por exemplo, as pessoas que batiam panelas em 2015 contra Dilma foram substituídas (foram?) pelas pessoas que batem panelas contra Bolsonaro em 2020. Não há mais distinção de paneleiros porque somos todos paneleiros. Estamos entre a cólera e a cólera.
Não existe mais distinção entre autoridades. Um epidemiologista, um burocrata, um político, um jornalista, a dona Zefa da esquina, todos temos opiniões sobre como lidar com uma pandemia, e mesmo que o epidemiologista tenha a sua primazia técnica, socialmente ela é anulada pela discordância de outros epidemiologistas e pelo simples pânico da peste. Mas qual peste? Ou qual cólera?
Ou, repetindo: de um lado, algumas pessoas dizem que a única prevenção para a peste é o isolamento total. De outro, outras pessoas dizem que a prevenção por meio do isolamento vai levar muitos à fome e à violência — isto é, elas querem uma prevenção para a cólera.
Graças às redes sociais, o isolamento físico pode até impedir o contágio da peste, mas não impede o contágio da cólera. Assim, os dois lados se encolerizam, se escandalizam um com o outro. Isolamento vertical x isolamento horizontal, o que para mim seria uma questão altamente técnica a respeito da qual eu nem sonharia em dizer nada, torna-se a disputa do dia nas praças públicas. Ao menos nesse pequeno grupo de neo-epidemiologistas amadores, a cólera venceu a disputa entre prevenir a peste e prevenir a cólera.
Édipo Rei
Cólera e escândalo mútuos: eu estou escandalizado com você, você está escandalizado comigo. Aquilo que os gregos tinham de melhor a dizer a esse respeito está em suas tragédias, particularmente em Édipo Rei.
Sim, eu poderia ter ido mais atrás. A Ilíada começa com uma peste: o deus Apolo está flechando os soldados gregos. Por quê? Porque seu templo foi saqueado, e a filha do sacerdote de Apolo foi raptada por Aquiles. Agamêmnon, rei de todos os gregos, manda Aquiles devolver a moça. E assim Aquiles fica encolerizado. É a primeira palavra de toda a Ilíada: raiva. Mênin, no acusativo (pense na mesma raiz, nas “mênades” furiosas que seguem Dioniso e destróem cidades inteiras, matando pessoas e animais). A fúria do guerreiro que saqueou o templo e raptou a moça dá lugar à cólera do guerreiro contrariado. “A cólera, canta, deusa, de Aquiles, filho de Peleu”, diz o primeiro verso da Ilíada na ordem em que as palavras aparecem. Em suma: o primeiro episódio da Ilíada é a peste, causada pela cólera do deus Apolo, e a primeira palavra do poema é a “cólera”.
Mas eu ia falar de Édipo. Édipo é o rei de Tebas. Ele se tornou rei de Tebas ao vencer a Esfinge, monstro que devorava os habitantes da cidade — para todos os efeitos, uma peste. Quando começa a peça Édipo Rei, de Sófocles, Tebas está sendo assolada por uma nova peste, e Édipo está tomando a atitude que hoje muitos esperam dos governantes: está prometendo que não medirá nenhum esforço para vencê-la. Sua primeira medida foi enviar o cunhado Creonte ao oráculo de Delfos, para perguntar a Apolo (aquele mesmo que flechava os gregos na Ilíada) qual o motivo da peste.
Creonte chega com a resposta: estamos sendo assolados pela peste porque o assassino do antigo rei Laio está entre nós. E assim Édipo, como um governante responsável que vai lutar contra a peste, promete não poupar esforços para encontrar o assassino.
Nesse momento, porém, o autor da peça, Sófocles, começa a lançar suas ironias para mostrar que peste e cólera se confundem. Os personagens recordam que Laio não tinha sido morto por uma só pessoa, mas por bandidos. Por andarilhos. Sempre no plural. Laio foi vítima de um grupo, de uma pequena multidão. Era isso que se contava. Agora Apolo, o deus que flecha os gregos, está dizendo: não foram várias pessoas, foi uma só. Encontrem-na e livrem-se dela.
Todos sabem que no final Édipo descobre que ele é o culpado, foi ele quem matou Laio, e por isso se casou com sua própria mãe, e teve quatro filhos que também são seus irmãos. Com isso, Édipo vira um símbolo da indistinção total. A ideia de “pai e irmão de suas filhas” mal pode ser formulada, ela já produz perplexidade, e um certo escândalo.
Contudo, a genialidade de Sófocloes não está em ter criado a primeira obra em que o detetive descobre que ele próprio é o culpado. Existe uma cortina de fumaça, que só penetramos quando permitimos não ficar escandalizados, isto é, quando não assumimos furiosamente um lado contra o outro. Há uma ironia, e a ironia só pode ser percebida na calma, sem cólera.
(Este argumento é de René Girard e foi desenvolvido em vários textos, a começar pelo capítulo sobre Édipo em A Violência e o Sagrado.)
Édipo quer mostrar que em Tebas ninguém tem mais fúria contra a peste do que ele. Assim, logo depois que Creonte traz a resposta do oráculo, Édipo manda chamar o profeta Tirésias, a quem diz, essencialmente: “Mas Tirésias, você é tão sábio, sabe tudo, claro que você sabe quem é o culpado, diga lá.”
Tirésias, porém, se recusa a nomear o culpado. A peça, é claro, joga com pelo menos dois pontos de vista. O público já conhece a história. A história é comum, batida. Seria como encenar a Chapeuzinho Vermelho: você vai para ver a encenação, não para se surpreender com o desfecho. Por isso é que temos de interpretar a recusa de Tirésias de duas maneiras.
A primeira é óbvia: ele não quer dizer a Édipo que o culpado é ele. A segunda depende de fazermos algumas considerações nada estapafúrdias: Tirésias não quer acusar ninguém. Tirésias não quer ser coagido.
O diálogo se desenrola mecanicamente:
“Faça isso porque estou mandando.”
“Não.”
“Faça agora.”
“Não.”
“Seu charlatão, não faz porque não sabe.”
Não é muito diferente de uma discussão da hora do recreio, que vai aumentando de intensidade até quase chegar na briga física:
“Você é bobo.”
“E você é bobo e chato.”
“E você é bobo e chato e feio.”
“...”
“... ...”
“E você matou seu pai e se casou com a sua mãe.”
Pronto. Exasperado, Tirésias lançou a bomba atômica. Assim, aquele que quis se mostrar o maior combatedor da peste, Édipo, agora pode se tornar o próprio objeto do combate. Você não está enchendo o saco querendo um culpado? O culpado é você, cacete!
Creonte volta. Édipo, já exasperado, acusa-o também de estar querendo seu trono. Jocasta, esposa de Édipo, ouve a conversa. E começa a embasar a acusação de Tirésias. A cólera de Édipo começou a contagiar a todos.
Um pastor é chamado para dizer que Édipo é o filho que o rei Laio mandou abandonar. Em Édipo rei, em Antígona, e em Bacantes, pelo menos, há uma cena em que uma pessoa de posição nitidamente inferior afirma estar apavorada por ter de falar algo desagradável na frente dos superiores — o que é fácil de entender como um modo irônico de dizer “vou falar o que esperam que eu fale”.
É irônico porque o espectador pode pensar que Édipo é o rei, então são os ouvidos dele que precisam ser agradados. Mas não, é a cólera contra Édipo que precisa ser agradada. Esse é o verdadeiro poder. (Sófocles é considerado um dos maiores autores de todos os tempos, e é por detalhes assim: quanto mais você procura, mais você acha.)
Você pode, no fim, entender a peça de duas maneiras. Uma não exclui a outra. A primeira é a tradicional: Édipo Rei é o primeiro thriller com joguinho mental em que o detetive descobre que é culpado.
A segunda é a girardiana: Édipo era um cara encolerizado que contagiou as pessoas com sua cólera, até que essa cólera se voltou contra ele próprio, trazendo a pior das acusações. (Essa interpretação ainda permite que você entenda, num nível mais simbólico, que Édipo admitiu-se culpado dessa cólera e dos crimes cometidos em função dela, abrindo o caminho de sua redenção.)
Outra ironia: na peça, a peste é logo esquecida. Resta apenas a cólera. O que pode ser um modo de Sófocles dizer que a peste é a cólera.
De Tebas ao Brasil
Tudo isso nos leva de volta ao Brasil de hoje. O diálogo entre os defensores do isolamento vertical e os defensores do isolamento horizontal, da quarentena indefinida, logo faz pensar no diálogo entre Édipo e Tirésias. Aliás, há muito tempo qualquer discordância logo passa para a troca de acusações.
Dessa vez, porém, os insultos não estão parando nas tradicionais palavras de sentido esvaziado, como “fascista” ou “neoliberal”. Temos uma nova palavra sendo transmitida de boca em boca: “genocida”.
Leio “genocida” nas redes sociais, na imprensa, e penso em Tirésias: “Ah, que saco, pare com isso, logo você, você que matou o pai e se casou com a mãe!”
Hoje pior insulto de todos — “genocida” — está sendo dirigido àqueles que dizem preferir o isolamento vertical, que dizem preferir prevenir a cólera.
Mais ainda, esse insulto gravíssimo é dirigido particularmente contra aquele governante que subiu ao trono representando a cólera do povo contra as elites, a cólera contra essa coisa difusa que é o “sistema” — ou contra a Esfinge petista que parecia estar comendo o Brasil.
Não estou dizendo que o presidente vai terminar como Édipo, efetivamente culpado ou convencido de uma culpa que não tem, ao mesmo tempo em que seria sim culpado de aproveitar-se da cólera e de incitá-la. A tragédia é uma simplificação de 70 minutos de uma história certamente mais complexa. Porém, suas linhas gerais — o contágio da cólera, a perda de sentido das palavras — estão aí para vermos, de Tebas ao Brasil.