005 — De «Pais e filhos», de Turguêniev, à nova direita brasileira
Um roteiro de leitura de Pais e filhos (1862), de Ivan Turguêniev
— Primeira parte
Um prólogo explicativo
Bastante tempo passou desde a última newsletter. Vim para o Rio com o objetivo de fazer entrevistas para a biografia de Bruno Tolentino, veio o coronavírus, eu mesmo peguei o coronavírus em abril, e acho que peguei de novo recentemente. Não fui internado, mas sem dúvida estou no grupo das pessoas que ainda sentem cansaço por causa do vírus. Consegui recuperar o ritmo de trabalho, tento lutar contra o trabalho que se acumulou; mas cada saída de casa ainda precisa ser bem pensada, e carregar peso é praticamente fora de questão. Não é que eu não consiga fazer nada hora, e sim que, no dia seguinte, é como se eu estivesse de ressaca.
Agora, sobre os nossos temas daqui. Caso você não esteja me acompanhando pelo Instagram, tenho feito uma leitura do romance Pais e filhos, publicado em 1862 por Ivan Turguêniev. Em breve devo fazer uma live de recapitulação. O texto abaixo, assim como os textos da próxima ou talvez das próximas newsletters, são as minhas anotações pessoais sobre o romance.
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Pais e filhos (1862), de Ivan Turguêniev
Pais e filhos não deve ser visto, como aliás nenhum romance digno do nome, como um embate de ideias na forma de personagens. Se Turguêniev, seu autor, quisesse falar de ideias, teria escrito um ensaio, teria dado uma palestra.
No século XIX, na Europa ocidental, até se desenvolveram o romance e a peça «de tese», com personagens representando ideias, e esse drama a serviço de ideias me parece ter atingido seu apogeu nos Estados Unidos, especialmente em séries de advogados. Em algum momento, o herói faz seu grande discurso, e, com sua retórica, deixa claro onde está o bem e onde está o mal. Os outros personagens não têm alternativa além de render-se a ele. Se é uma série de advogado, é o júri que se rende. De todo modo, na pior, na pior das hipóteses, o discurso é feito para o público.
Esse tipo de construção «de tese» cria um vício no leitor ou espectador. Se ele discorda das ideias, vai ter dificuldades para identificar-se com os personagens. Esse é o obstáculo que impede o leitor brasileiro da «nova direita» do século XXI de identificar-se com o Bazárov de Pais e filhos: Bazárov diz que é contra a autoridade, e o brasileiro queria autoridade; Bazárov é contra a aristocracia, e o brasileiro quer «valores aristocráticos»; Bazárov despreza a arte e valoriza a experimentação científica; o brasileiro pensa que, sem a arte, a experimentação científica vale pouco.
O que o brasileiro da «nova direita» deixa de ver é aquilo que Turguêniev tenta mostrar: Bazárov é inconveniente, e o brasileiro também; Bazárov não demonstra respeito nenhum por um mundo em que o respeito já foi abandonado há muito tempo, nem o brasileiro; Bazárov não respeita nenhuma autoridade real e concreta à sua frente, nem o brasileiro. A diferença, se existe, é que Bazárov já perdeu mesmo a crença em tudo, e o brasileiro tem esperança de que alguma espécie de ordem possa salvá-lo.
Não há drama nenhum de ideias em Pais e filhos. Não é nem mesmo possível dizer que os pais representam a ordem e os filhos a desordem. Os «pais» são típicos representantes da sua geração: em vez de concentrar-se em seus deveres de estado, no cuidado com as propriedades, aproveitaram a riqueza para «buscar a felicidade». Hoje essa ideia está no pano de fundo, nem sequer a olhamos mais; porém, você se lembra de que ela está na constituição americana? Que esse documento, ratificado em 1778, assegura o direito «à vida, à liberdade, e à busca da felicidade»?
Não se esqueçam de que um dos primeiros grandes temas dos romances, um tema ainda vivo hoje, é o contraste entre a «busca da felicidade» e o «dever de estado». Se você assiste à série The Crown, é isso que ela mostra: não podemos ter nossa felicidade individual porque ela contrasta com nossos deveres. Saindo da coroa britânica, o drama por excelência desse contraste é o drama de adultério: uma pessoa casada descobre a felicidade ao lado de outra que não é seu cônjuge.
Existem mil variações desse drama. Você acha que tem vocação para X, mas ganha seu dinheiro e sustenta sua família fazendo Y. Ou ainda, sem exatamente um «dever de estado»: você acha que tem vocação para X, é X que fascina você, mas outras pessoas valorizam você quando você faz Y. De muito longe, acho que esse foi o caso de Roger Scruton: com clara vocação para falar de arquitetura, com romances publicados no fim da vida, será que, nas décadas em que fez o papel de intelectual conservador, ele estava «cumprindo um dever» e não «buscando a felicidade»?
E, como eu dizia, questionar a «busca da felicidade» em pleno século XXI parece quase absurdo. Digo «quase» porque, se você é religioso, você ainda acha que, por exemplo, uma mulher não deve fazer um aborto, mesmo que diga que o bebê não apenas será um entrave na busca da felicidade dela, como também não será feliz. O direito à felicidade é mais forte do que o direito o à vida. (Não importando o que diga a constituição americana.)
Existem também desmistificações da «busca da felicidade». Talvez a primeira delas seja a parábola do filho pródigo. Depois de sair pelo mundo, o filho está na pior, e percebe que seria melhor cumprir os deveres de estado de um servo na propriedade do pai. Sob certo aspecto, o filme Two Lovers, de James Gray (com Joaquin Phoenix e Gwyneth Paltrow), também é uma desmistificação da busca da felicidade. As personagens femininas de Jane Austen, mesmo diante dos melhores partidos, mesmo que sejam ricos, jovens, e bonitos, ainda esperam aquele algo mais que seja a promessa da verdadeira felicidade. Middlemarch, de George Eliot, ainda questiona a aliança da busca da felicidade com altas aspirações morais.
Porque sim, tudo isso começa com uma alta expectativa moral. Hoje as palavras perderam muito sentido. Ninguém no século XVIII ou XIX — nem mesmo o mais devasso libertino — confundiria a «busca da felicidade» com uma vida relaxada e promíscua. A expectativa ainda era — essa é a expectativa dos meios conservadores hoje — a de encontrar uma pessoaque fosse sua parceira para a vida, com quem você pudesse dividir altos sentimentos morais, mesmo que eles contrastassem com o dever de estado.
Assim é que, em Pais e filhos, Nikolai contraria o próprio pai ao ficar com a filha de um funcionário. Quem, hoje, diria a sério que Nikolai deveria obedecer o pai? Ao menos ele foi feliz enquanto pôde. Mas por que não enxergar o mesmo descaso com a autoridade que marcou o início de seu primeiro casamento no começo de sua relação com Feniêtchka?
Pável, por sua vez, não foi feliz. Frustrou-se. Apostou em perseguir uma mulher, em pavonear a elevação moral de seus sentimentos por meio de cartas, e fracassou. O romance não precisa dizer que era isso que ele fazia nas cartas. Muitos outros romances já nos avisam disso.
(Aliás, não sei se a carta de amor alguma vez funcionou como expediente amoroso. A carta de amor era o nude da alma. A troca de cartas poderia funcionar como um jogo em si mesmo, mas a confissão direta do amor, gratuita, sem que o destinatário pedisse por ela, sempre foi a pior estratégia: desconcertante, constrangedora.)
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O leitor brasileiro do século XXI precisa fazer o seguinte exercício: se lesse um romance em que um personagem de 40 e poucos anos (a idade dos «pais» de Turguêniev) votou no Lula desde que pôde e se desiludiu a partir do mensalão, o leitor teria alguns indícios para situar o personagem e seu tempo histórico: uma pessoa com certo esquerdismo superficial, mas mais fiel aos ideais de «ética» do que aos ideais de esquerda. Seria uma pessoa, como Nikolai e Pável, que pensa segundo as modas do seu tempo.
Sim, porque Nikolai e Pável, além de terem seguido a moda do amor romântico e da busca da felicidade, também são «liberais» com os servos, seguindo as modas políticas. Outra vez, podemos concordar com esse liberalismo. Mas não é ele que está em questão. Não se trata de discutir se o liberalismo é certo ou errado (e eu acho que é certo sim), mas de prestar atenção no fato de que ele era a moda. A Rússia era retrógrada, feudal, absolutista, enquanto a França já tinha experimentado a república, e a monarquia constitucional tornava-se a norma... Até no Brasil havia uma constituição!
Vocês nunca viram os ricos brasileiros querendo «modernizar» o Brasil, com suas «ideias esclarecidas»? Esse é o papel de Pável e de Nikolai. Turguêniev, aliás, não escrevia isso com maldade ou com ironia. O próprio Turguêniev foi um grande liberal, e deu o exemplo nas terras que herdou da família. Como Nikolai e Pável, ele diminui o imposto dos servos; liberta alguns antes da emancipação, que aconteceu em 1861, e certamente não os trata com a brutalidade que fazia com que a servidão russa pudesse ser comparada à escravidão brasileira.
Nada disso fez com que Turguêniev idealizasse os camponeses, como Pais e filhos deixa bem claro. (De todo modo, Turguêniev já tinha ganho muito crédito com Memórias de um caçador, de 1855, em que conta as histórias tristes de vários servos.) Também não idealizou a aristocracia da qual fazia parte. Como eu disse no começo, é realmente importante abandonar qualquer ideia de defesa retórica ou de proposta. Mas isso discutimos melhor na próxima newsletter.