[PEDRO SETTE-CÂMARA] Avisos; «Pais e filhos», segunda parte da recapitulação
006 — Avisos | Pais e filhos: segunda parte da recapitulação
# AGENDA DA SEMANA
O clima aqui é de busca do tempo perdido. Serei breve, antes de passar ao roteiro da recapitulação de Pais e filhos.
Esta semana teremos algumas lives no meu perfil do Instagram:
— Segunda às 20h: Pais e filhos, recapitulação
— Terça às 20h: Pais e filhos, fim
— Quarta às 20h, no perfil do Grupo Tempo: «Como nascem os monstros», discutindo que Girard diz sobre Sonho de uma noite de verão
— Quinta às 20h: Discuto a série de posts do Advento que fiz em meu perfil no ano passado. Segunda live de três.
(Todas essas lives com grandes inspirações girardianas…)
# NOVIDADES
Bom, retomando uma tradição dos antigos tempos de oindividuo.com (que ainda está no ar…), decidi criar uma lista pública de desejos. Era maravilhoso ganhar presentes surpresa dos leitores. Como agora é a Amazon, ainda inseri equipamentos com preços, digamos, fora da curva. Se alguém quiser me dar um iPad novo, serei eternamente grato.
Mas, com o equipamento de que disponho, quero terminar um ensaio de cerca de 20 mil palavras (essa é a projeção) até o Natal. Já tenho muito material escrito. Falta a organização que vai me permitir terminar o ano mais contente. Por isso, a reta final desse projeto deve ter destaque nos próximos dias no Instagram.
Agora vamos ao romance de Turguêniev.
# PAIS E FILHOS, SEGUNDA PARTE DA RECAPITULAÇÃO
1. Os pecados dos pais
Na newsletter passada ressaltei as — digamos — opções de vida da geração dos pais: o amor antes do dever, o desejo de seguir as modas liberais. Também ressaltei que, ao menos nesse último caso, essa tinha sido a opção do próprio Turguêniev. E, mais do que tudo, quis chamar a atenção para o seguinte: nós mesmos estaríamos de acordo com essas opções. Não apenas acreditaríamos que o coração deve ter precedência, como consideraríamos a servidão russa absolutamente desumana. Qualquer medida paliativa nos pareceria o mínimo do mínimo. Aliás, eu mesmo, se vou discutir aqui os efeitos impremeditados do «amor», não conseguiria nem por um segundo ver um benefício na servidão russa.
Vejamos pois os problemas do amor.
A ideia de «ser fiel ao próprio coração» lembra um pouco o que diz São Paulo: «para os puros, tudo é puro». Isto é, se o coração não se enganasse; se o coração fosse realmente puro; se esse coração de fato fosse nada menos do que a expressão de uma grande força moral… Por isso mesmo, a literatura também logo desmistificou o «amor», mostrando que ele precisava ser cultivado, que ele não era tão simples, isto é: que não basta tomar apenas uma decisão aparentemente «correta», como «seguir o coração», para que o final feliz venha automaticamente.
E, não importando quais sejam as críticas (limitadas) de Theodore Dalrymple ao sentimentalismo em Podres de mimados (que eu mesmo traduzi), aquilo que dominava Pável e Nikolai era justamente o sentimentalismo, já com o nome mesmo de sentimentalismo, praticado desde o século XVIII: a busca de sentimentos elevados.
(Depois é que passaram a ser apenas sentimentos, mas foi no século XVIII que isso começou. Digo que a crítica de Dalrymple é limitada por não levar isso em conta. O tema é imenso.)
Os resultados desse sentimentalismo são aquilo que Arkádi e Bazárov encontram quando chegam a Marino, a casa da família de Arkádi. Este me parece um ponto importante para entender o ponto de vista de Bazárov. Hoje os ambientes conservadores julgam que houve uma grande traição da geração que foi jovem na década de 1960. Bazárov e Arkádi não queriam um retorno ao passado, mas também viam uma inutilidade na geração dos pais: não foram capazes de modernizar a Rússia, e se refugiaram na estética — exatamente como as pessoas de esquerda que não derrubaram a ditadura brasileira (a qual foi embora porque quis) e se refugiaram na pose.
2. Promessas não cumpridas
O desrespeito com que Bazárov trata os pais de Arkádi e as famosas «instituições» pode parecer gratuito até o momento em que percebemos que ele está diante de várias promessas jamais cumpridas. Logo no começo do romance, ficamos sabendo que nada na fazenda funciona direito, que as dívidas não são pagas, e os donos não estão realmente preocupados. Com esse pano de fundo, as unhas perfeitas de Pável parecem realmente muito pitorescas.
A dificuldade da leitura está justamente em olhar apenas a petulância de Bazárov. Basta ter em mente todas essas promessas não cumpridas para ver que ele está na verdade desempenhando um papel comum: está sendo a caricatura, grotescamente exagerada, de seus anfitriões. Então Pável e Nikolai menosprezam o dever em nome do amor? Pois Bazárov menospreza o dever e o amor: o amor é apenas algo fisiológico. Como não atentar para isso quando o próprio Nikolai tem um filho pequeno com uma serva e não cumpre seus deveres? Como não ver na relação entre Nikolai e Feniêtchka, até aquele momento, apenas algo fisiológico?
A crise já estava instalada na família Petrovitch muito antes da chegada de Bazárov. Em vários sentidos, ele é apenas a pessoa que, ao não seguir as aparências, vai obrigar cada um a examinar-se. Ele vai tirar todo mundo da inércia.
Porém, a ideia do desrespeito não se encerra aí. Tente imaginar que tudo é uma promessa. Uma fazenda é uma promessa: de produtividade, de um certo estilo de vida. Um casamento é uma promessa. (Os noivos inclusivem fazem promessas.) Quando uma promessa deixa de ser cumprida, tudo entra em xeque. A palavra realmente vale alguma coisa? Podemos confiar, isto é, ter fé? Se a aristocracia não se interessa pelo dever, se ela não se dá ao respeito, por que deveríamos respeitá-la?
Essa é a mesma situação que aparece na Ilíada, quando Aquiles decide que não vai mais guerrear porque está de birra (a famosa «cólera de Aquiles») com o rei Agamêmnon. Se o chefe permite ser questionado dessa maneira, quem é o chefe? Também é a mesma situação do professor que não se dá ao respeito. É claro que qualquer aluno — ou guerreiro grego — pode já trazer a irreverência, mas ela não deve partir do professor. Sempre que os papéis são confundidos, sempre que há um aumento da igualdade — quando aluno e professor estão em pé de igualdade —, há um aumento da rivalidade.
Afinal, por que você é o aristocrata, o Conde do Raio que o Parta, se você não cumpre dever nenhum? Se a promessa da aristocracia é apenas uma piada? Por que respeitar o professor que não tem autoridade? Vejam que não estou falando da autoridade do chicote. Se Pável e Nikolai realmente administrassem seu feudo, se Nikolai tivesse desde sempre assumido Feniêtchka, Bazárov não veria neles um alvo tão fácil.
Essa é a mesma coisa que vemos hoje no Brasil. Comparo Bazárov à nova direita também porque é a nova direita quem mais se ressente das promessas não cumpridas. Uma vez, por exemplo, eu conversava com Trevor Merrill, autor do sensacional Livro da imitação e do desejo, enquanto andávamos por Botafogo, aqui no Rio, e dizia a ele que sim, grande parte do meu liberalismo radical era puro ressentimento. O Estado brasileiro é uma piada, vamos acabar com ele. Agora, na França, eu não me sentia tão violentamente liberal: as promessas do Estado francês eram mais cumpridas do que as promessas do Estado brasileiro. A breve experiência na França me fez perceber que boa parte da minha suposta pureza ideológica vinha do ressentimento.
Agora, é importante observar — e é por isso que nem coloco este trecho entre parênteses — que a justiça de uma acusação pode não ter nada a ver com o ímpeto de acusar. A indignação moral deve ser o único estado da alma mais falsificado do que o amor. Normalmente nos ressentimos, odiamos primeiro, e só usamos o pecado do outro para atacá-lo, como alguém que sempre esteve à espreita. Aliás, a bem da verdade, não sei se algum dia eu mesmo experimentei ou ao menos testemunhei uma verdadeira indignação moral.
Nem é de indignação moral que se trata em Pais e filhos. Bazárov não finge estar indignado; ele apenas quer deixar claro que não está nem aí; ele quer mostrar que é mais indiferente. Porque também não se trata — raramente se trata — de «realmente ser» indiferente, mas de ser percebido assim.
Mas aqui já dou um passo adiante. Voltemos.
3. A crise do Degree
Em Teatro da inveja (outro livro que traduzi), René Girard apresenta a ideia de crise do Degree. Deixo em inglês por dois motivos: a noção vem de Shakespeare, da peça Troilo e Cressida, e porque a tradução brasileira que usei, de Carlos Alberto Nunes, traduz Degree como «jerarquia», palavra que só vi usada até hoje na tradução dessa peça.
Troilo e Cressida passa-se justamente na guerra de Troia, e a crise em questão é justamente aquela de Aquiles contra Agamêmnon. Quem é o chefe quando o chefe se deixa desafiar? E se o chefe não é o chefe, quem é o sub-chefe, quem está em cima, quem está embaixo, quem é o aluno, quem é o professor? Se eu tivesse o gosto pela modernidade, diria que Shakespeare está antecipando a ideia de ecologia: tire uma coisa do lugar, e você não tem a situação X menos essa coisa. Você tem toda uma nova situação, que vai permanecer em crise até se reconfigurar inteira de maneira estável. Aliás, não por acaso, é depois que Bazárov morre que a ordem é restabelecida em Pais e filhos.
Agora, porém, o importante é que fique claro o seguinte. Se eu não respeito o superior, então na melhor das hipóteses estamos no mesmo plano. Se existe igualdade, então existe rivalidade. Se Bazárov não vê motivo para respeitar Nikolai, então por que ele deixaria de associar-se a Feniêtchka? Para preservar uma ordem social na qual ele não acredita?
Como o romance até deixa claro depois, se não há deferência nem reverência, então a qualquer momento podemos resvalar na rivalidade, isto é, entrar no duelo. Tudo é um duelo. Nikolai e Pável não são verdadeiros aristocratas: são figuras pitorescas que por ora hospedam Bazárov. Ele pode enfrentá-los. Não há motivo nem para a hipocrisia, no sentido em que a hipocrisia é «o tributo que o vício paga à virtude». E a sua posição em cada interação social não vem determinada pela sua posição social. Ninguém mais precisa respeitar você porque você é um aristocrata. Agora você tem de ganhar cada duelo, tem de sair por cima em cada conversa em que haja algum antagonismo.
Se você tem alguma dificuldade para entender isso, pense apenas nas vezes em que teve de discordar de alguém e quis preservar a amizade ou ao menos a boa relação. Na cultura hipersensível do Brasil, você cercou a discordância de várias precauções, como se fosse um lacaio que tivesse de discordar da rainha da Inglaterra. E fez isso não por ter uma personalidade subserviente, mas porque você sabe, por instinto, que, no Brasil, essa discordância pode rapidamente virar rivalidade, briga. A discordância de um vira o sarcasmo de outro, e o um responde com um xingamento…
Na geração dos filhos de Turguêniev, o duelo torna-se permanente. E a melhor maneira de vencer um duelo verbal, um duelo que não vira um duelo de fato, é dar a entender que você está acima dele. O oponente não é digno de respeito, nem de ser ouvido. Pável e Nikolai não têm a menor chance: eles estão tentando respeitar Bazárov, eles ainda têm esse resquício de boa vontade. Eles estão chocados, perplexos; Bazárov quer deixar claro que não está nem aí — e em grande medida, é claro, você precisa realmente acreditar na própria indiferença para que os outros também acreditem nela.
Volto à ideia de caricatura. Pável e Nikolai querem o duelo. Querem que Bazárov fale a língua deles, no terreno deles, segundo regras estabelecidas. Bazárov quer deixar claro que a melhor maneira de vencer um duelo é deixando bem claro que é desprezível duelar. O senhor, Bazárov, não respeita o pintor Rafael? Não, não respeito, diz Bazárov, como quem na verdade quer se livrar daquele incômodo.
Em suma: quando não há reconhecimento dos papéis sociais, porque — como é o caso — eles são promessas não cumpridas, estão todos em pé de igualdade. Na igualdade, há rivalidade. E, na rivalidade, é preciso vencer. Vence quem convencer os outros de que venceu. Se você parar para analisar os conteúdos dos argumentos, já perdeu. É tudo um jogo de impressões. (E se houvesse mesmo uma crise civilizacional, isto é, da vida civil, da vida não-violenta, venceria apenas o mais truculento. Bazárov seria trucidado por algum brutamontes.)
É isso, o parecer autônomo e superior aos olhos dos outros, que René Girard denomina (em vários textos) «pseudonarcisismo». Bazárov não tem um transtorno na alma que faz com que ele, para usar os termos que usa o dr. Freud para falar do narcisismo, dirija sua libido para si mesmo. Ele apenas entende que está num mundo sem lei e que precisa de uma estratégia para vencer, e nesse mundo vencer significa sempre parecer superior aos olhos dos vencidos.
4. Sítnikov e Kúkchina
Agora já temos elementos para entender os relacionamentos que vão aparecer depois dos primeiros embates de Pais e filhos. Quem é Sítnikov? É um antigo «discípulo» de Bazárov. O que Bazárov fez por ele? Disse-lhe que não era preciso respeitar as autoridades, e sua vida mudou.
Só que, assim como Bazárov leva a um ponto mais extremo o desrespeito dos pais (Girard diria: como ele imita, aumentando um ponto), Sítnikov caricatura a situação de seguidor. Ele desconhece totalmente as regras do pseudonarcisismo. Em vez de fingir alguma autonomia, como Arkádi faz o tempo todo, em vez de fingir que não depende de Bazárov para tudo, Sítnikov logo confessa da maneira mais abjeta sua sujeição a Bazárov.
Isso, é claro, é vergonhoso. Como Bazárov pode parecer admirável quando se depara com um fã que é francamente ridículo? Ninguém quer ser admirado por pessoas que parecem desprezíveis. Imagine que você está lendo este meu texto e gostando. Agora imagine que você descobre que este texto também circula, com grande admiração, entre pessoas que você considera ridículas. Logo você dirá que o Pedro é o guru dos idiotas… O que não é nada diferente de reclamar que aquela banda secreta da qual você gostava agora ficou popular demais. Esse é o mal-estar de Bazárov. Arkádi — o novo discípulo, um discípulo admirável, um amigo genial (sim, a referência clara é à tetralogia de Elena Ferrante) — está vendo Bazárov ser admirado por um amigo nada genial…
E esse amigo, Sítnikov, vai fazer de tudo para também conquistar alguma admiração de Bazárov. Tudo que queremos daquele que parece superior é que ele nos admire também; assim, pelo menos, não estamos absolutamente na sarjeta. Por isso Sítnikov leva Bazárov e Arkádi à casa de Kúkchina: a expectativa é de que champagne e ideias progressistas possam render pelo menos um tapinha nas costas.
Kúkchina, porém, revela-se tão inábil quanto Sítnikov. Logo admite que sabe tudo sobre Bazárov, que ele já é conhecido — isto é, que Sítnikov já contou tudo e que ela própria está fascinada. Então ela faz de tudo para atrair escancaradamente a atenção e a simpatia de Bazárov. Pense por exemplo naquilo de que você gosta e que de certa maneira distingue você. Se você me acompanha no Instagram, sabe que falo de cafés, de canetas-tinteiro. E aqui estou falando de literatura russa. Imagine alguém tentando me seduzir tentando demonstrar — sem que eu tenha feito pergunta nenhuma — seu amplo domínio desses assuntos. Espero que eu mesmo não seja um Bazárov, mas essa tentativa escancarada de, primeiro, conquistar a minha simpatia, e, segundo, de até parecer gostar mais dessas coisas do que eu mesmo, me pareceria um tanto constrangedora.
Nem eu, nem você, vamos querer nos relacionar com pessoas que se jogam a nossos pés ou que tentam de maneira desajeitada e escancarada conquistar nossa simpatia. (Se você ler Crepúsculo e vir o total desprezo com que a jovem & bonita narradora trata os pretendentes que se jogam aos pés dela…) Sítnikov e Kúkchina estão fazendo isso. Bazárov estava sendo chamado para o duelo na casa de Arkádi; agora, ao contrário, as pessoas se jogam aos pés dele. E ele, é claro, fica constrangido e detesta isso.
O que vamos ver, na última parte, é que Bazárov precisa ser vencido — e só Odíntsova consegue isso. Justamente porque, no jogo da indiferença, no jogo do pseudonarcisismo, ela é mais experiente e mais inteligente do que Bazárov.