Natal 2020 1/2: «Será que os Evangelhos são mitos?», de René Girard
Olá! Feliz véspera de Natal!
## PRIMEIRO AVISO
Este é o primeiro de dois textos de René Girard que enviarei para celebrar o nascimento de Cristo.
No meu perfil do Instagram, recapitulei em três lives a série de posts que escrevi em 2019 para marcar o Advento, explicando como a tradição judaico-cristã foi subvertendo o paganismo e desmistificando os mitos.
Também prometi enviar dois textos. O primeiro é este. Uma tradução minha que estava no Blog Miméticos, que foi retirado do ar.
## SEGUNDO AVISO
Em breve encerrarei as mensagens sobre «Pais e filhos», de Turguêniev. Tive uma intuição nos últimos dias que me leva a rever algumas coisas que falei nas lives a respeito. Aliás, essas lives (todas) estão disponíveis no meu perfil do Instagram.
## AGRADECIMENTO
Depois que divulguei minha lista de desejos da Amazon, algumas pessoas me enviaram alguns presentes. Fico imensamente agradecido.
Vamos ao texto de René Girard!
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Será que os Evangelhos são mitos?
por René Girard
Tradução de Pedro Sette-Câmara
First Things, abril de 1996
Desde os primeiros tempos do cristianismo, a semelhança dos Evangelhos com certos mitos é usada como argumento contra a fé cristã. Quando os apologistas pagãos do panteísmo oficial do Império Romano negaram que o mito de morte-e-ressurreição de Jesus fosse significativamente distinto dos mitos de Dioniso, Osíris, Adônis, Átis etc., não conseguiram conter a onda cristã. Porém, nos últimos duzentos anos, à medida que os antropólogos foram descobrindo no mundo inteiro mitos de fundação que se parecem com a Paixão e Ressurreição de Jesus, a ideia de que o cristianismo é um mito parece ter-se tornado dominante — mesmo entre os que creem no cristianismo.
Começando com uma violenta crise cósmica ou social, e culminando no sofrimento de uma vítima misteriosa (muitas vezes pelas mãos de uma multidão violenta), todos esses mitos concluem com o retorno triunfal do sofredor, que desse modo revela-se uma divindade. O tipo de pesquisa antropológica realizado antes da Segunda Guerra Mundial — em que os teóricos esforçavam-se para explicar as semelhanças entre mitos — é hoje considerado pela maioria dos antropólogos um absoluto fracasso “metafísico”. Seu fracasso, no entanto, não parece ter enfraquecido o espírito cético e científico da antropologia, mas apenas ter enfraquecido ainda mais, misteriosamente, a plausibilidade das reivindicações dogmáticas da religião que os teóricos anteriores pretendiam superar: se nem a ciência pode formular verdades universais sobre a natureza humana, então a religião, manifestamente inferior, deve ter menos valor ainda do que se supunha.
Essa é a situação intelectual contemporânea que os pensadores cristãos enfrentam ao ler as Escrituras. A Cruz é incomparável na medida em que sua vítima é o Filho de Deus, mas sob todos os demais aspectos, trata-se de um acontecimento humano. Uma análise desse acontecimento — a exploração dos aspectos antropológicos da Paixão, que não podemos deixar de lado se levamos a sério o dogma da Encarnação — revela não apenas a falsidade do ceticismo da antropologia contemporânea sobre a natureza humana. Ela também desacredita completamente a noção de que o Cristianismo é mitológico em qualquer sentido. Os mitos do mundo não revelam um modo de interpretar os Evangelhos, mas exatamente o contrário: os Evangelhos nos revelam um modo de interpretar os mitos.
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Jesus, é claro, compara sua própria história com algumas outras quando diz que sua morte será como a morte dos profetas: “(...) a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas que foi derramado desde a criação do mundo, do sangue de Abel até o sangue de Zacarias” (Lucas 11, 50-51). Cabe-nos perguntar que sentido a palavra como tem aqui. Na morte mais evidentemente similar à da Paixão — a do Servo Sofredor em Isaías, caps. 52 e 53 — uma multidão se une contra uma única vítima, assim como multidões semelhantes unem-se contra Jeremias, Jó, os narradores do salmos penitenciais etc. No Gênesis, José é expulso pela multidão invejosa dos irmãos. Todos esses episódios têm a mesma estrutura de todos-contra-um.
Como João Batista é um profeta, podemos esperar que sua morte violenta no Novo Testamento seja semelhante, e de fato João morre porque os convidados de Herodes transformam-se numa multidão assassina. Herodes mesmo está inclinado a poupar a vida de João, assim como Pilatos a de Jesus — porém, os líderes que não enfrentam multidões violentas acabam juntando-se a elas, e é exatamente isso que fazem tanto Herodes quanto Pilatos. Os povos antigos costumavam olhar a dança ritual como a mais mimética de todas as artes, consolidando os participantes de um sacrifício contra a vítima prestes a ser imolada. A polarização hostil contra João resulta da dança de Salomé — resultado esse previsto e espertamente arquitetado por Herodíades exatamente para esse fim.
Não há nada equivalente à dança de Salomé na Paixão de Jesus, mas nela se encontra claramente uma dimensão mimética ou imitativa. A multidão que se reúne contra Jesus é a mesma que o tinha recebido com entusiasmo em Jerusalém alguns dias antes. Essa súbita inversão é típica das multidões instáveis de qualquer lugar: em vez de um ódio arraigado por ele, ela sugere uma onda de violência contagiosa.
Pedro ilustra de maneira espetacular esse contágio mimético. Quando está cercado de pessoas hostis a Jesus, ele imita a hostilidade delas. Em última instância, ele obedece à mesma força mimética que Pilates e Herodes. Até os ladrões crucificados com Jesus obedecem essa força e sentem-se compelidos a juntar-se à multidão. E no entanto, creio, os Evangelhos não tentam estigmatizar Pedro, nem os ladrões, nem a multidão como um todo, nem os judeus enquanto povo, mas revelar a enorme força do contágio mimético — uma revelação válida para toda a cadeia de assassinatos que se estende da Paixão até a “fundação do mundo”. Os Evangelhos têm um motivo fortíssimo para sua referência constante a esses assassinatos, motivo esse relacionado a duas palavras essenciais, ainda que estranhamente negligenciadas: Satanás e skandalon.
A tradução tradicional inglesa, stumbling block [pedra de tropeço], é muito superior a traduções tímidas recentes, porque o grego skandalon designa um obstáculo inevitável que de algum jeito se torna mais atraente (e também mais repulsivo) a cada vez que tropeçamos nele. Na primeira vez que Jesus prevê sua morte violenta (Mateus 16, 21-23), sua resignação deixa Pedro chocado, e Pedro tenta imbuir alguma ambição mundana em seu mestre: em vez de imitar Jesus, Pedro quer que Jesus o imite. Se dois amigos imitam o desejo um do outro, ambos desejam o mesmo objeto. E se eles não podem compartilhar esse objeto, vão competir por ele, cada qual tornando-se ao mesmo tempo um modelo e um obstáculo para o outro. Os desejos concorrentes intensificam-se à medida que modelo e obstáculo reforçam um ao outro, seguindo-se uma escalada da rivalidade mimética; a admiração cede lugar à indignação, ao ciúme, à inveja, ao ódio, e, enfim, à violência e à vingança. Se Jesus tivesse imitado a ambição de Pedro, os dois teriam começado a competir pela liderança de uma espécie de “movimento de Jesus” politizado. Ao perceber o perigo, Jesus interrompe Pedro com veemência: “Afasta-te, Satanás! Tu és para mim um skandalon.”
Quanto mais nossos modelos impedem nossos desejos, mais fascinantes tornam-se enquanto modelos. Os escândalos podem ser sexuais, sem dúvida, mas não são primariamente questão de sexo nem de ambição mundana. Eles devem ser definidos nos termos não de seus objetos, mas da escalada modelo/obstáculo — da rivalidade mimética que é a dinâmica pecaminosa do conflito humano, com sua miséria psíquica. Se o problema da rivalidade mimética nos escapar, podemos confundir as prescrições de Jesus com uma espécie de utopia social. Antes, a verdade é que os escândalos são uma ameaça tão grande que nada deve ser poupado para evitá-los. Ao primeiro sinal, devemos entregar o objeto disputado a nossos rivais e aceitar as exigências mais ultrajantes; devemos “oferecer a outra face”.
Se escolhemos Jesus como modelo, simultaneamente escolhemos seu próprio modelo, Deus Pai. Desprovido de desejo apropriativo, Jesus proclama a possibilidade de vivermos livres do escândalo. Porém, se escolhemos modelos possessivos, vemo-nos em escândalos sem fim, porque nosso verdadeiro modelo é Satanás. Um sedutor tentador, que nos sugere os desejos com maior chance de gerar rivalidades, Satanás nos impede de obter o que quer que ele simultaneamente nos incita a obter. Ele transforma em diabolos (outra palavra que designa o modelo/obstáculo da rivalidade mimética). Satanás é o skandalon personificado, como explicita Jesus em sua censura a Pedro.
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Como a maioria dos seres humanos não segue Jesus, é inevitável que aconteçam escândalos (Mateus 18, 7), proliferando de maneiras que colocarão em risco a sobrevivência coletiva da raça humana — pois, uma vez que entendamos a força assustadora do desejo mimético ao escalar, sociedade nenhuma parece capaz de resistir a ele. E no entanto, ainda que muitas sociedades pereçam, novas sociedades conseguem nascer, e muito poucas sociedades encontram meios de sobreviver ou de regenerar-se. Alguma contraforça deve estar operando, forte não o bastante para acabar de vez com os escândalos, mas o suficiente para moderar seu impacto e mantê-los sob algum controle.
Essa contraforça, creio, é o bode expiatório mitológico — a vítima sacrificial do mito. Quando os escândalos proliferam, os seres humanos ficam tão obcecados com seus rivais que perdem de vista os objetos pelos quais competem, e começam a concentrar-se, com raiva, uns nos outros. Como o empréstimo do objeto do modelo é transferido para o empréstimo do ódio do rival, a mímese aquisitiva torna-se uma mímese de antagonistas. Cada vez mais indivíduos voltam-se contra cada vez menos inimigos, até que, no final, só resta um. Como todos acreditam na culpa da última vítima, todos voltam-se contra ela — e, como essa vítima agora está isolada e indefesa, eles podem se voltar contra ela sem risco de retaliação. O resultado é que não resta inimigo nenhum para ninguém na comunidade. Os escândalos evaporam e a paz retorna — por algum tempo.
A preservação da sociedade contra a violência ilimitada dos escândalos depende da coalizão mimética contra a vítima única e na violência limitada que se segue. A morte violenta de Jesus é, humanamente falando, um exemplo desse estranho processo. Antes que ela comece, Jesus adverte seus discípulos (especialmente Pedro) de que eles ficarão “escandalizados” por ele (Marcos 14, 27). Esse o uso de skandalizein sugere que a força mimética que opera na violência de todos contra um é a mesma violência que opera nas rivalidades miméticas entre indivíduos. Por impedir uma revolta e dispersar uma multidão, a Crucifixão é um exemplo de vitimação catártica. Um detalhe fascinante do Evangelho deixa claros os efeitos catárticos do assassinato mimético — e nos permite distingui-los dos efeitos cristãos da Crucifixão.
No fim de seu relato da Paixão, Lucas escreve: “Naquele mesmo dia, Pilates e Herodes fizeram as pazes, pois antes eram inimigos um do outro” (23, 12). Essa reconciliação tem a semelhança exterior da comunhão cristã — originando-se da morte de Jesus —, e no entanto não tem nada a ver com ela. Trata-se de um efeito catártico cuja raiz é um contágio mimético.
Os perseguidores de Jesus não percebem que influenciam mimeticamente um ao outro. Sua ignorância não anula sua responsabilidade, mas a atenua: “Pai, perdoa-lhes”, grita Jesus, “porque não sabem o que fazem” (23, 34). Uma afirmação paralela em Atos 3, 17 mostra que isso deve ser interpretado literalmente. Pedro atribui o comportamento da multidão e de seus líderes à ignorância. Sua experiência pessoal da compulsão mimética que possui as multidões impede-o de considerar-se imune ao contágio violento da vitimação.
O papel de Satanás, a personificação dos escândalos, afuda a entender a concepção mimética dos Evangelhos. À pergunta “Como pode Satanás expulsar Satanás?” (Marcos 3, 23), a resposta é: pela vitimação unânime.
De um lado, Satanás é o instigador do escândalo, a força que desintegra as comunidades; de outro, ele é a resolução do escândalo na vitimação unânime. Esse truque, um último recurso, permite que o príncipe deste mundo resgate in extremis suas possessões, quando estas estão muito terrivelmente ameaçadas por sua própria desordem. Sendo tanto um princípio de ordem como de desordem, Satanás está realmente dividido contra si mesmo.
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A famosa narração do assassinato mimético de João Batista ocorre — tanto em Marcos quanto em Mateus — como um curioso flashback. Começando com um relato de como Herodes recebeu afoitamente o rumor da ressurreição de João, e só depois voltando no tempo para narrar a morte de João, Marcos e Mateus revelam a origem da crença compulsiva de Herodes em sua própria participação decisiva no assassinato. Os evangelistas dão um exemplo breve mas precioso da gênese dos mitos — do poder ordenador da violência, de sua capacidade de fundar a cultura. A crença de Herodes é residual, sem dúvida, mas o fato de que dois Evangelhos a mencionam confirma, creio, a autenticidade evangélica da doutrina que coloca a vitimação mimética na base da mitologia.
Os cristãos modernos costumam ficar desconfortáveis com essa falsa ressurreição que parece assemelhar-se à verdadeira, mas Marcos e Mateus obviamente não compartilham esse desconforto. Longe de minimizar as similaridades, eles atraem nossa atenção para elas, assim como Lucas atrai nossa atenção para a semelhança entre a comunhão cristã e a reconciliação profana de Herodes e Pilatos que resulta da morte de Jesus. Os evangelistas enxergam algo muito simples e fundamental que nós mesmos deveríamos enxergar. No momento em que aceitamos as semelhanças entre a violência na Bíblia e nos mitos, podemos entender de que modo a Bíblia não é mítica — como a reação à violência registrada na Bíblia difere radicalmente da reação registrada no mito.
Começando com a história de Caim e Abel, a Bíblia proclama a inocência das vítimas míticas e a culpa de seus vitimadores. Como vivemos após a ampla promulgação do Evangelho, achamos isso natural, e nunca paramos para pensar que nos mitos clássicos o contrário é que é verdade: os perseguidores sempre julgam ter um motivo válido para perseguir suas vítimas. Os mitos dionisíacos consideram legítimos até os linchamentos mais horríveis. Penteu, nas Bacantes, é legitimamente morto pela mãe e pelas irmãs, porque seu desprezo pelo deus Dioniso é uma falta grave o bastante para exigir sua morte. Édipo também merece seu destino. Segundo o mito, ele realmente matou o pai e se casou com a mãe, sendo portanto verdadeiramente responsável pela peste que assola Tebas. Bani-lo não é apenas uma ação permissível, mas um dever religioso.
Mesmo que não sejam acusadas de crime nenhum, espera-se que as vítimas míticas morram por uma boa causa, e sua inocência não torna suas mortes menos legítimas. No mito veda de Purusha, por exemplo, não há menção de qualquer ato maldoso — porém, o dilaceramento da vítima é mesmo assim um ato sagrado. Os pedaços do corpo de Purusha são necessários para criar as três grandes castas, a base da sociedade indiana. No mito, a morte violenta é sempre justificada.
Se a violência dos mitos é puramente mimética — se é como a Paixão, como diz Jesus —, todas essas justificativas são falsas. E no entanto, como sistematicamente invertem a verdadeira distribuição de culpa e de inocência, esses mitos não podem ser puramente ficcionais. Decerto são mentiras, mas do tipo específico de mentira demandado pelo contágio mimético — a acusação falsa que se espalha mimeticamente por uma comunidade humana perturbada, no momento do clímax, em que os escândalos concentram-se no único bode expiatório cuja morte reúne a comunidade. A máquina de fazer mitos é o contágio mimético que desaparece atrás do mito que gera.
Não há nada de secreto nas justificativas apresentadas pelos mitos; as acusações estereotípicas de violência das multidões estão sempre disponíveis quando a busca por bodes expiatórios começa. Nos Evangelhos, porém, a máquina de bodes expiatórios está plenamente visível porque enfrenta oposição e não pode mais funcionar com eficiência. A resistência ao contágio mimético impede que o mito assuma forma. A conclusão, à luz dos Evangelhos, é inescapável: os mitos são a voz das comunidades que unanimemente se rendem ao contágio mimético da vitimação.
Essa interpretação é reforçada pelos finais otimistas dos mitos. A conjunção da vítima culpada com a comunidade reconciliada é frequente demais para ser fortuita. A única explicação possível é a representação distorcida da vitmação unânime. O processo violento só funciona se enganar todas as testemunhas, e a prova de que engana, no caso dos mitos, é a conclusão harmoniosa e catártica, enraizada num assassinato perfeitamente unânime.
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Hoje ouvimos que, por trás de cada texto e de cada acontecimento, há um número infinito de interpretações, mais ou menos equivalentes. A vitimação mimética evidencia o absurdo dessa perspectiva. Só existem duas reações possíveis ao contágio mimético, e elas fazem uma diferença enorme. Ou nos rendemos e nos juntamos à multidão perseguidora, ou resistimos e ficamos sós. A primeira delas é o auto-engano unânime que chamamos de mitologia.
A segunda é o caminho da verdade seguido pela Bíblia.
Em vez de colocar nas vítimas a culpa pela vitimação, os Evangelhos colocam-na nos vitimadores. Aquilo que é sistematicamente ocultado pelos mitos é revelado pela Bíblia.
A diferença não é apenas “moralista” (como acreditava Nietzsche), nem uma questão de escolha subjetiva. É uma questão de verdade. Quando o Antigo Testamento e os Evangelhos dizem que as vítimas deveriam ter sido poupadas, não estão apenas “se apiedando” delas. Estão abrindo um buraco na ilusão da vitimação unânime que os mitos fundadores usam como dispositivo para resolver crises e reordenar as comunidades humanas.
Na Bíblia, as causas falsas ou insignificantes da violência mítica são efetivamente descartadas numa afirmação simples e abrangente: Odiaram-me sem motivo (João 15, 25), em que Jesus cita e praticamente resume o Salmo 35 — um dos “salmos do bode expiatório” —, que literalmente vira do avesso as justificativas míticas da multidão. Em vez de a multidão falar para justificar a violência com motivos que ela percebe como legítimos, a vítima fala para denunciar a inexistência dos motivos.
Para explicar os mitos arcaicos, basta que sigamos o método recomendado por Jesus, trocando o sem motivo pelos motivos míticos falsos.
No Império Bizantino, até onde entendo, a tragédia de Édipo era lida como se fosse análoga à Paixão de Cristo. Se era assim, aqueles antropólogos primitivos estavam abordando o problema certo pelo lado errado. Sua redução dos Evangelhos a um mito comum apagou a luz evangélica com a mitologia.
Para ter sucesso, é preciso iluminar a escuridão do mito com a inteligência dos Evangelhos.
Se a vitimação unânime reconcilia e reordena as sociedades na direta razão de sua ocultação, então ela há de perder sua eficácia na direta razão de sua revelação. Quando a mentira mítica é denunciada publicamente, a polarização dos escândalos não é mais unânime, e a catarse social é enfraquecida e desaparece. Em vez de reconciliar a comunidade, a vitimação vai intensificar divisões e dissensões.
Essas consequências disruptivas deveriam ser sentidas nos Evangelhos, como de fato são. No Evangelho de João, por exemplo, tudo que Jesus diz e faz tem efeito divisivo. Longe de minimizar esse fato, o autor repetidas vezes chama nossa atenção para ele. Analogamente, em Mateus 10, 34, Jesus diz: “Vim trazer não a paz, mas a espada.” Se a única paz de que a humanidade jamais gozou depende de uma vitimação inconsciente, a consciência que os Evangelhos trazem ao mundo só pode destruí-lo.
A imagem de Satanás — “mentiroso e pai da mentira” (João 8, 44) — também expressa essa oposição entre o obscurecimento mítico e a revelação evangélica da vitimação. A Crucifixão como derrota de Satanás, a previsão de Jesus de que o reino de Satanás “não poderá continuar” (Marcos 3, 26), supõe menos um mundo ordenado do que um mundo em que Satanás está à solta. Em vez de concluir com a tranquilizadora harmonia dos mitos, o Novo Testamento abre perspectivas apocalípticas, tanto nos Evangelhos sinóticos quanto no Apocalipse. Para chegar à “paz que supera o entendimento”, a humanidade precisa abrir mão de sua antiga paz parcial fundada na vitimação — e pode-se esperar muitas perturbações disso. A dimensão apocalíptica não é um elemento estranho que deve ser purgado do Novo Testamento para que o cristianismo seja “aprimorado”. Ela é um elemento integral da revelação.
Satanás tenta silenciar Jesus pelo mesmo processo que Jesus subverte. Ele tinha boas razões apra acreditar que seu antigo truque mimético ainda produziria, tendo Jesus como vítima, aquilo que sempre produzira no passado: mais um mito como os de sempre, um sistema fechado de mentiras míticas. Ele tem bons motivos para acreditar que o contágio mimético contra Jesus se mostrará irresistível outra vez e que a revelação será sufocada.
As expectativas de Satanás são frustradas. Os Evangelhos fazem tudo o que o Antigo Testamento já tinha feito, reabilitando um profeta vitimado, uma vítima acusada erradamente. Porém, eles também universalizam essa reabilitação. Eles mostram que, desde a fundação do mundo, as vítimas de todos os assassinatos semelhantes à Paixão foram vítimas do mesmo contágio mimético que Jesus. Os Evangelhos tornam a revelação completa. Eles dão à denúncia da idolatria feita pelo Antigo Testamento uma demonstração concreta de como os falsos deuses e seus sistemas culturais violentos são gerados. Esta é a verdade que falta na mitologia, a verdade que subverte o sistema violento deste mundo. Se os Evangelhos fossem eles mesmos míticos, não poderiam prover o conhecimento que desmitologiza a mitologia.
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O cristianismo, porém, não admite a redução a um sistema lógico. A revelação da vitimação unânime não pode envolver uma comunidade inteira — do contrário, não haveria ninguém para revelá-la. Ela só pode ser o feito de uma minoria dissidente audaciosa o bastante para questionar a verdade oficial, mas pequena demais para impedir a ocorrência de um episódio de vitimação quase-unânime. Essa minoria, porém, é extremamente vulnerável, e normalmente seria engolida pelo contágio mimético. Humanamente falando, a revelação é uma impossibilidade.
Na maior parte dos textos bíblicos, a minoria dissidente permanece invisível, mas nos Evangelhos ela coincide com o grupo dos primeiros cristãos. Os Evangelhos dramatizam a impossibilidade humana insistindo na incapacidade dos discípulos de resistir à multidão durante a Paixão (especialmente Pedro, que nega Jesus três vezes no pátio do Sumo Sacerdote). E no entanto, após a Crucifixão — que deveria ter piorado as coisas mais do que nunca —, aquele ridículo punhado de fracotes de repente consegue fazer aquilo que não conseguia quando Jesus ainda estava por perto para ajudá-los: proclamar audaciosamente a inocência da vítima, desafiando abertamente os vitimadores, tornar-se os apóstolos e missionários destemidos da Igreja primitiva.
A Ressurreição é responsável por essa mudança, claro, mas até esse milagre tão espantoso não teria bastado para transformar tão completamente aqueles homens caso tivesse sido uma maravilha isolada e não a primeira manifestação da força redentora da Cruz. Uma análise antropológica nos permite dizer que, assim como a revelação da vítima cristã difere das revelações místicas porque não se baseia na ilusão do bode expiatório culpado, também a Ressurreição cristã difere das ressurreições míticas porque suas testemunhas são pessoas que em última instância superam o contágio da vitimação (como Pedro e Paulo), e não as pessoas que se rendem a ele (como Herodes e Pilatos). A Ressurreição cristã é indispensável para a revelação puramente antropológica da vitimação unânime e para a desmitologização das ressurreições míticas.
A morte de Jesus é uma fonte de graça não porque o Pai seja “vingado” por ela, mas porque Jesus viveu e morreu da maneira que, caso fosse adotada por todos, acabaria com os escândalos e com a vitimação que se segue dos escândalos. Jesus viveu como todos os homens devem viver para unir-se a um Deus cuja verdadeira natureza ele revela.
Obedecendo perfeitamente as prescrições antimiméticas que recomenda, Jesus não tem a menor tendência para a rivalidade mimética e para a vitimação. E ele morre, paradoxalmente, por causa dessa inocência perfeita. Ele se torna uma vítima do processo do qual vai libertar a humanidade. Quando um homem sozinho segue as prescrições do reino de Deus, isso parece uma provação intolerável para aqueles que não as seguem, e esse homem automaticamente se designa como vítima de todos os homens. Esse paradoxo revela por completo o “pecado do mundo”, a incapacidade do homem de libertar-se de seus caminhos violentos.
Durante a vida de Jesus, a minoria dissidente daqueles que resistem ao contágio mimético está efetivamente limitada a um homem, o próprio Jesus — que é ao mesmo tempo a mais arbitrária das vítimas (porque, menos do que qualquer outra pessoa, ele merece sua morte violenta) e a menos arbitrária delas (porque sua perfeição é um insulto intolerável ao mundo violento). Ele é o bode expiatório perfeito, o cordeiro de Deus que todos escolhemos de modo inconsciente quando não estamos cientes de estar escolhendo alguma vítima.
Quando Jesus morre sozinho, abandonado por seus apóstolos, os perseguidores são unânimes outra vez. Se os Evangelhos estivessem tentando contar um mito, a verdade que Jesus tentara revelar seria então enterrada de uma vez por todas, e o cenário estaria pronto para a revelação triunfal da vítima mitológica como fonte divina do reordenamento da sociedade por meio da violência expiatória “boa” que põe um fim à violência mimética má que tinha ameaçado aquela sociedade.
Se um mito de morte-e-ressurreição como esse não é o que temos dessa vez — se Satanás, no fim das contas, é derrotado — a causa imediata é um súbito ímpeto de coragem dos discípulos. Porém, a força para esse ímpeto não veio deles mesmos. Ela flui visivelmente da morte inocente de Jesus. A graça divina faz com que os discípulos sejam mais como Jesus, que tinha anunciado antes de sua morte que eles receberiam a ajuda do Espírito Santo da verdade. Esse é um motivo, creio, pelo qual o Evangelho de João chama o Espírito de Deus de Paráclito, palavra grega que simplesmente significa o advogado de defesa, o defensor do acusado perante um tribunal. O Paráclito é, entre outras coisas, a contrapartida do Acusador: o Espírito da Verdade que oferece a refutação definitiva da mentira satânica. É por isso que Paulo escreve, em 1 Coríntios 2, 7-8: “Pregamos a sabedoria de Deus, misteriosa e secreta (...) Sabedoria que nenhuma autoridade deste mundo conheceu (pois se a houvessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória).
A verdadeira Ressurreição se baseia não na mentira mítica da vítima culpada que merece morrer, mas na retificação dessa mentira, que vem do Deus verdadeiro e que reabre canais de comunicação que a humanidade mesma tinha fechado por causa de seu auto-aprisionamento em culturas violentas. Somente a graça divina pode explicar por quê, após a Ressurreição, os discípulos puderam tornar-se uma minoria dissidente num oceano de vitimação — capazes de entender então o que não entenderam antes: a inocência não é só de Jesus, mas de todas as vítimas de todos os assassinatos semelhantes à Paixão desde a fundação do mundo.