Natal 2020 2/2: «O mito de Édipo, a verdade de José»
## AVISO
Ontem enviei o primeiro texto, «Será que os Evangelhos são mitos?». Agora envio o segundo.
Estou preparando um texto para finalizarmos a leitura de «Pais e filhos», de Turguêniev.
E na semana que vem começo a leitura de «Liberdade, para quê?», minha tradução de Georges Bernanos. A primeira live será na terça, 29/12 às 20h, no meu perfil do Instagram.
## O MITO DE ÉDIPO, A VERDADE DE JOSÉ
René Girard (Oedipus Unbound, cap. V, pp. 107-113)
Tradução: Pedro Sette-Câmara
A cidade de Tebas é assolada pela peste. Um oráculo religioso anuncia que um único indivíduo dentro da cidade é responsável pelo desastre: ele ofendeu os deuses matando o pai e casando com a mãe. Busca-se um culpado e acha-se um culpado. É o novo rei. Ele não tinha ideia dos próprios crimes horrendos, porém realmente os cometeu. Criança, fora banido pelos pais por causa de um oráculo, e o mesmo oráculo outra vez previu a coisa mesma que depois aconteceu: que ele mataria o mai e se casaria com a mãe. Isso ele acabou fazendo ao voltar para Tebas, adulto e totalmente desconhecido. Outra vez, o resultado foi que Édipo foi expulso da comunidade.
Um minucioso exame revelará semelhanças entre esse mito e a história de José. José tinha doze irmãos e Édipo não tinha nenhum, mas os dois protagonistas foram rejeitados por suas respectivas famílias. Édipo pelos pais, e José pelos irmãos. Nas duas histórias o protagonista é expulso; primeiro, da comunidade a que pertencia por nascimento; segundo, pela comunidade a que pertencia por adoção.
Tanto Édipo, depois de seu retorno a Tebas, quanto José, ao ser levado para o Egito, podem ser descritos como imigrantes extremamente bem-sucedidos. Por sua habilidade em interpretar charadas, ambos resolveram problemas difíceis, e assim se tornaram grandes líderes. Édipo foi rei de Tebas, e José uma espécie de primeiro-ministro do Egito.
Os dois protagonistas têm de exercer seu poder recém-obtido contra um desastre natural. No caso de Édipo, a peste; no caso de José, a grande fome.
Édipo, porém, era culpado de parricídio e de incesto. José nunca cometeu esses crimes, mas em sua carreira há um incidente bem parecido com o incesto de Édipo. A esposa de seu senhor e benfeitor egípcio acusou falsamente o rapaz de tentar seduzi-la. O marido tratara José como filho, e José deveria tê-la respeitado como sua própria mãe. Essa acusação de certo modo lembra o incesto com a mãe. Como José era estrangeiro e a mulher era egípcia, os egípcios acreditaram nela, e José passou um tempo preso.
Há portanto grandes semelhanças, e acho que devemos olhar as semelhanças em vez de disfarçá-las para que vejamos a diferença — a única diferença que tem uma importância enorme.
Mesmo pequeno, Édipo já é potencialmente culpado do parricídio e do incesto cometidos depois. Os pais tinham portanto bons motivos para mandá-lo embora. Os tebanos depois tinham bons motivos para mandar Édipo embora outra vez. Sua presença entre eles era responsável pela peste.
No caso de José, a questão é bem diversa. Os irmãos não tinham motivo para se livrar de José. Tinham só ciúmes dele. Os egípcios não tinham motivo para prender José. A esposa do benfeitor de José tinha ciúmes dele, como ficamos sabendo.
No que diz respeito à peste, Édipo supostamente é culpado. Talvez os egípcios, tolos, pudessem suspeitar de que José era responsável pela fome, mas a história de José faz questão de mostrar que ele, longe de ser culpado, foi o único que previu a catástrofe; e suas excelentes políticas salvaram o país.
Nas duas histórias, dois protagonistas semelhantes são postos em circunstâncias semelhantes, e as consequências são semelhantes até certo ponto. Porém, no que diz respeito ao papel do protagonista, a interpretação do mito e a interpretação da Bíblia são diametralmente opostas.
Será que as comunidades a que Édipo e José pertencem agem com justiça ao expulsar esses personagens de seu meio? Essa é a pergunta que, na minha opinião, domina os dois textos, mas que está apenas implícita no mito de Édipo porque a resposta muda do mito é sempre sim. O que quer que Édipo sofra, é justo que sofra. Na Bíblia a pergunta fica totalmente explícita porque a resposta é um não retumbante. O que quer que José sofra, não é justo que sofra; ele é vítima do ciúme.
Porém, que diferença faz, talvez o leitor pergunte, se uma história fica do lado da comunidade contra a vítima, ao passo que a outra fica do lado da vítima contra a comunidade violenta? Afinal, são apenas histórias. Se a história mítica é ficcional, será que a história bíblica também não é ficcional? Se a história de Édipo é um mito, a história de José pode ser um mito mais humano, mais ético. Porém, mesmo assim, ela deve ser um mito. Esse é o raciocínio que a maioria dos estudiosos usaria diante do que estou dizendo.
A diferença entre a mitologia e a Bíblia nos parece ética. A Bíblia está mais interessada nas vítimas do que a mitologia, e com a possibilidade de que os indivíduos sejam vitimados injustamente. Essa diferença ética é óbvia o bastante para ser reconhecida amplamente, ainda que não universalmente. Porém, mesmo aqueles que a reconhecem nem sempre acham que ela tem grande importância.
Ela costuma ser considerada acidental e superficial no nosso mundo por causa da tremenda ênfase que nossa sociedade moderna põe nas realizações intelectuais, e particularmente nas realizações científicas. A oposição essencial para nossa sociedade é entre ciência e mitologia, e aqui mitologia significa religião. A maioria dos estudiosos da religião diria que a diferença ética a favor da Bíblia não tem relação com o tipo de verdade buscado pelo mundo moderno — por exemplo, as ciências sociais. A história de José pode ser um mito mais reconfortante, mas é tão ficcional quanto o mito de Édipo.
Considero essa posição errada. Acredito que a diferença na história de José tem implicações de humanidade, claro, mas não são as únicas. Elas são absolutamente inseparáveis de implicações enormes para o conhecimento em sentido científico. Acho que elas são uma revelação da natureza enganosa e violenta da mitologia.
A fim de esclarecer o que quero dizer, chamarei a atenção outra vez para os temas do mito de Édipo. Aqueles que conhecem as histórias de turbas violentas na Idade Média, ou da violência das turbas em qualquer lugar do mundo, perceberão que há uma grande semelhança entre os temas desse mito e a visão distorcida que as turbas violentas têm de suas próprias vítimas.
Durante boa parte da história ocidental, especialmente em momentos de grandes desastres, como pestes e fomes, muitos indivíduos indefesos foram objeto de uma dupla acusação. Eles eram acusados de torpeza moral exterior, no estilo do parricídio e do incesto de Édipo, e, ao mesmo tempo, eram acusados de ter causado o desastre geral. As duas acusações estavam conectadas entre si da mesma maneira irracional como estão conectadas no mito de Édipo.
Durante as grandes pestes medievais, por exemplo, os judeus muitas vezes eram vítimas dessas acusações, assim como os estrangeiros e forasteiros que por acaso estavam em alguma cidade tomada pelo pânico. Um ou dois séculos mais tarde, o mesmo padrão acusatório reaparece na grande epidemia de caça às bruxas do mundo ocidental. Nós a encontramos outra vez de maneiras ligeiramente distintas mas ainda assim reconhecíveis, na repressão totalitária dos dissidentes.
Durante grandes desastres, turbas irracionais usam violência contra vítimas que elas consideram culpadas, ainda que essas vítimas não possam ser responsáveis por vastas catástrofes sociais. Por seu recurso à violência arbitrária, o povo desesperado consegue esquecer seu desespero diante de acontecimentos incontroláveis.
Quando entendemos isso, vemos que as vítimas são bodes expiatórios. Não estamos pensando aqui no ritual em Levítico 16; apenas queremos dizer que as vítimas são inocentes, que elas são escolhidas arbitrariamente pelos perseguidores, que conseguem convencer a si mesmos de que elas são culpadas de crimes ao estilo de Édipo.
Suponhamos que uma turba tenha acabado de cometer um linchamento do tipo que mencionei. Se você pedisse aos participantes que contassem o que realmente aconteceu, o relato deles se pareceria com o mito de Édipo ou com outros mitos incontáveis.
Assim, faz sentido supor que o mito de Édipo tenha surgido de alguma violência coletiva do tipo que descrevi. O fato de que não temos prova histórica não é muito importante. Não faz diferença onde e quando essas coisas aconteceram. O que importa é que é possível entender todos os temas e que é possível juntar tudo. Tanto Édipo quanto José são estranhos em suas comunidades. Creio que uma pista adicional a favor da gênese que acabo de esboçar está em Édipo ser manco. Numa comunidade em pânico, a chance de um indivíduo ser selecionado como vítima aumenta muito se, além de ser um estranho altamente visível e poderoso que teve sucesso rápido demais, ele for afligido por alguma enfermidade física que a multidão considere esquisita, como, no caso de Édipo, ser manco. A conjunção de temas que encontramos na mitologia não pode ser produto de uma imaginação pacífica e puramente poética.
Os historiadores estão perfeitamente cientes disso quando lidam com documentos históricos, mas os mitólogos ainda não se deram conta da possibilidade de que a mitologia como um todo poderia ser associada ao mesmo tipo de fenômeno. Se eu fosse examinar outros mitos aqui, descobriríamos que eles também se assemelham muito à perspectiva de perseguidores delirantes. Minha conclusão, portanto, é que a mitologia e as religiões mitológicas baseiam-se nesse tipo de violência, que tem uma importância cultural enorme na sociedade primitiva.
Um modo explícito de ilustrar essa teoria que acabo de esboçar seria pegar um mito e reescrevê-lo de um jeito que corrigisse no mito aqueles pontos, e apenas aqueles pontos, que são distorcidos pela hostilidade cega de uma comunidade contra seus bodes expiatórios. A história não seria inteiramente nova. Ou seja: ela se pareceria com um mito. Muitas coisas permaneceriam iguais. Somente seriam alterados aqueles aspectos do mito, devo repetir, que nos impedem de reconhecer um bode expiatório inocente num herói mítico. Ainda haveria um desastre como uma peste ou uma fome, mas o protagonista não seria responsável por ela. Ele seria acusado de crimes graves como incesto ou adultério, mas não seria culpado deles. Essa nova hstória não fingiria que nunca um inocente foi vitimado; ela apresentaria essa vitimação como algo injusto, algo incitado pela inveja individual e coletiva contra um estranho bem-sucedido demais. Essa história, é claro, já existe. É a história de José.
A cada momento, a história bíblica ridiculariza o nonsense das provas contra o bode expiatório apresentadas pela mitologia e as substitui por argumentos a favor da vítima. A mitologia repudiada é repudiada como mentira. Toda vez que José é vitimado, ou pelos irmãos ou pelos egípcios, a Bíblia mostra que as acusações contra ele são delírios nascidos da inveja e do ódio. Assim, temos tanto a versão que os irmãos apresentam ao pai quanto a denúncia dessa versão. Após livrar-se do irmão, eles dizem ao pai que ele foi morto por um animal selvagem. Em muitos mitos, o processo do bode expiatório é descrito nos termos de uma destruição por um grupo de animais que caçam juntos, ou por um animal isolado. A história dos irmãos é, creio, um mito desses.
Não é só a história de José na Bíblia que repudia os enganos e a violência do mito. Eu poderia pegar outras histórias bíblicas e mostrar toda vez que a diferença absolutamente essencial que estou discutindo está presente. Eu nunca diria que essa é a verdade da Bíblia, sua verdade inteira, mas sua verdade antropológica. As histórias da verdade dizem o que tentei dizer, mas muito melhor. Elas são um instrumentos mais explícito e mais inteligível para destruir a credibilidade da mitologia do que qualquer construção teórica. Elas denunciam a crença de que a mitologia depende como um sistema de representação coerente e cruel. O herói mítico é culpado e devidamente punido mesmo que seja um deus e mesmo que depois restaure a ordem, ao passo que a figura bíblica é punida indevidamente; ela é inocente.
A Bíblia mesma conhece muito bem sua oposição a todas as religiões mitológicas. Ela as chama de idólatras, e acho que a revelação do delírio do bode expiatório na mitologia é parte essencial do combate à idolatria. Poderíamos por exemplo tomar a história de Caim e Abel e compará-la ao mito de Rômulo e Remo. Na história de Caim e Abel, o assassinato de um irmão pelo outro é apresentado como um crime que também é a fundação de uma comunidade. Porém, na história romana, essa história de fundação não pode ser vista como crime. Trata-se de uma ação legítima de Rômulo. O ponto de vista da Bíblia sobre esses acontecimentos é imensamente distinto do ponto de vista do mito.
Assim, não acredito que a teoria da mitologia que esbocei aqui seja nova. Não acho nem sequer que seja minha. Acho que ela não passa de uma tradução e transposição fraca, acadêmica, do conteúdo antropológico da Bíblia. Também acredito que a capacidade que temos no mundo moderno de não nos deixar enganar por perseguições a bodes expiatórios do tipo que discuti, sejam as da Idade Média ou as que ocorrem hoje no mundo totalitário — nossa capacidade de não sermos enganados por essa perseguição coletiva vem da Bíblia. O fato de que muitas pessoas são enganadas mas que, em última instância, em nosso mundo a verdade da perseguição sempre venha à tona, é aquilo que nos torna inteiramente distintos de todas as sociedades anteriores. Não é o fruto da razão humana sem auxílio, como os philosophes do século XVIII e os humanistas gostariam que acreditássemos, mas a influência da Bíblia em nós, influência essa que não é percebida a maior parte do tempo.
A religião comparada não percebeu a superioridade da perspectiva bíblica porque permaneceu perdida num sonho de «ciência e objetividade» que, se interpretado de certo modo, é o mito moderno por excelência, o mito de um meio termo entre os perseguidores e as vítimas que abole as diferenças entre a infinita diversidade dos delírios dos perseguidores e a singularidade da verdade das vítimas. Não apenas a Bíblia não é mito; ela é a fonte de toda “desmitologização” que ocorreu em nosso mundo e ocorrerá no futuro. Ao mesmo tempo, a Bíblia está ciente da enorme demanda ética que isso impõe à humanidade.
Para concluir, vou falar do último episódio, do último momento na história de José, que é muito bonito e revela muito claramente que a questão de a vítima pagar pelos outros de maneira injusta realmente é o tema da história. No último episódio, vemos José, como primeiro-ministro, bolar uma espécie de teste para ver se os irmãos vão procurar outro bode expiatório. Ele queria testar a possibilidade de seu coração ter mudado. De início eles tinham vindo ao Egito para pedir cereais porque não tinham cereais na Palestina, e José, agora primeiro-ministro, no comando de tudo, advertira-os de que só receberiam cereais da segunda vez se trouxessem consigo Benjamin, o irmão caçula, que tinham deixado em casa. Além de José, Benjamin era o único outro filho que Jacó tivera com Raquel, sua querida esposa, e eles não queriam que nada acontecesse com ele, especialmente nada como o que tinha acontecido com José.
Porém, a fome fica tão grave que os irmãos voltam, e dessa vez voltam com Benjamin. Por ordem de José, um precioso cálice que lhe pertencia é posto na bolsa de Benjamin. Quando os onze irmãos são revistados antes de voltar para a Palestina, o mais jovem é culpado pelo roubo e José anuncia que ele será detido. Nesse momento, Judá, um dos outros dez irmãos, um dos dez que tinha originalmente expulsado José, se oferece para tomar o lugar de Benjamin como prisioneiro, por medo, diz ele, de que o pai morra de tristeza. Essa dedicação de Judá é simetricamente oposta ao ato original de violência coletiva, que é anulado e revelado. Ao ouvir Judá, José começa a chorar e revela sua identidade.
Essa conclusão é profundamente comovente porque une as potentes dimensões intelectuais e éticas da Bíblia. Ela nos diz que a Bíblia anseia por um mundo em que todos os homens se tratem não como irmãos rivais mas como irmãos reais, um mundo em que a violência cultural que dividiu e separou as comunidades humanas do passado será inteiramente revelada e abolida.