007: «Pais e filhos»: parte final, com discussão que não foi para a live
# AVISOS
– A primeira live sobre Liberdade, para quê?, de Georges Bernanos, está disponível no feed do Instagram. A segunda será marcada. Pode ser nesta sexta, pode ser só na outra segunda…
– O fato é que estou tentando reorganizar algumas coisas. Tenho a sensação de que o maior defeito do perfil neste estranho ano de 2020 foi a desorganização. Se você ler a newsletter até o fim, verá que não posso botar a culpa nas minhas duas infecções pelo coronavírus, nem no Bazárov.
Vamos lá. São quase três mil palavras.
– Feliz 2021!
# PAIS E FILHOS: parte final
Vou abordar três temas aqui.
Primeiro, minha visão inicial do romance como uma apresentação e um aprofundamento da crise do Degree.
Segundo, uma visão talvez mais econômica, vinda de uma releitura de René Girard.
Terceiro, Bazárov como um bode expiatório que restaura a ordem entre os personagens.
## As duas partes do romance e a «crise do Degree»
Nas lives sobre Pais e filhos, propus que o romance tinha duas partes claras.
Na primeira, era encenado o conflito principal entre a geração dos «pais» e a geração dos «filhos». Essa primeira parte seria marcada pela «crise do Degree» shakespeariana, a qual seria visível para os «filhos» e para os leitores atentos: Nikolai e Pável não conseguiam administrar a fazenda, não se importavam nem com as dívidas a receber, e Nikolai, ainda por cima, tinha um filho fora do casamento com a serva Feniêtchka, cujo papel era absolutamente indefinido: nem era mais bem serva, nem era direito senhora do lar.
Pável completava a cena de maneira um tanto grotesca: no meio daquele caos, aparecia com «unhas que poderiam estar numa vitrine», de kaftan, encarnando um ideal romântico num ambiente descuidado e desolado – com o agravante de que ele próprio nunca tinha se interessado por aquele ambiente.
(Até nisso é fácil ver a comparaćão entre a elite russa do século XIX e grande parte da elite brasileira: ela vive da Rússia, com mentalidade extrativista, mas sua cabeça não está nela.)
A segunda parte seria o segundo momento dessa crise do Degree, um momento mais explícito: já que os pais jogaram fora seus deveres, ou nem sequer se interessaram por eles, aos filhos só resta essa vida sem regras, em que tudo tenderá a um combate, a um duelo, mas como se fosse um jogo de futebol sem regras: sem limites, sem balizas, não haveria arte, nem mesmo exatamente a habilidade, restando apenas a demonstração de força.
A geração dos «filhos» ainda não está chegando às vias de fato, mas, sem deferência, sem afinidades, suas interações já são obviamente competitivas: estão todos competindo para ver quem vai impressionar o outro ao mesmo tempo em que se mostra indiferente.
Daí eu ter mencionado na live a ideia girardiana do «pseudonarcisismo», isto é, uma ideia que vai além do narcisismo de Freud. Para Freud, o narcisismo é um direcionamento da libido do indivíduo para ele próprio. Girard diz que não, que o que conta não é ser realmente autônomo, mas projetar uma ilusão de autonomia; o que conta é deixar claro que você afeta sem ser afetado.
(Recordo que, em A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq, o narrador observa que a liberdade sexual só traz alegria no primeiro momento da «liberação»; pouco depois, tudo cai, nas palavras do narrador, na «competição narcísica».)
E o tempo todo vemos isso. Sítnikov fora o primeiro «discípulo» de Bazárov. Ao rever Bazárov, quer valorizar-se aos olhos do «mestre», levando-o para conhecer Kúkchina. Na pior das hipóteses, ele proporcionará a Bazárov algumas garrafas de champagne, e assim vai merecer seu tapinha nas costas. Kúkchina, igualmente inábil no pseudonarcisismo, começa confessando que já sabe tudo sobre Bazárov, e tenta impressioná-lo de todo jeito. O leitor precisa imaginar isto: uma pessoa totalmente desconhecida sabe tudo a seu respeito e o põe no pedestal.
A situação é constrangedora não porque exista em Sítnikov e em Kúkchina alguma substância intrinsecamente ridícula. É constrangedora porque nenhum dos dois sabe manejar o pseudonarcisismo, isto é, nenhum dos dois sabe valorizar-se aos olhos do outro. Se você quer despertar o interesse de outra pessoa, você não se joga aos pés dela da maneira mais transparente. Há todo um jogo de interesses, de vulnerabilidades, que pode ser jogado com mais ou menos malícia.
(Você pode fazer um curso de duas horas a respeito disso vendo o filme As ligações perigosas, com John Malkovitch e Glenn Close; o romance em que o filme se baseia, de Choderlos de Laclos, chama-se As relações perigosas.)
O que torna essa segunda parte do livro tão enternecedora é justamente a total incapacidade dos personagens para jogar esse jogo. Turguêniev, que àquela altura já tinha apssado bastante tempo na França, decerto sabia jogá-lo. Trata-se apenas de prever as reações das pessoas, de saber aproximar-se, mas de arriscar também.
Por exemplo: Se você me acompanha, e sabe que gosto de canetas-tinteiro, talvez você possa me mandar uma mensagem a respeito de algum ponto específico relacionado a elas, talvez comecemos a conversar… Mas, se você do nada me chamar para ver sua coleção de canetas, o mais provável é que eu fuja. Botar na mesa uma afinidade não dá o direito de cobrar uma amizade.
## A distância do mediador
Nada do que eu falei até agora me aprece errado, mas, ao reler Mentira romântica e verdade romanesca (enfatizo: estou sempre relendo o livro), me dei conta de que há uma explicação muito mais econômica, que é uma das explicações que Girard dá para Demônios, de Dostoiévski. Isso aliás confirmou minha impressão de que Demônios é essencialmente um Pais e filhos com a corda toda, na máxima potência.
Numa frase, que vou explicar, a questão toda é a seguinte: na geração dos pais, o mediador estava distante, e, na geração dos filhos, o mediador está perto.
Na teoria mimética, o mediador ou modelo é aquele que indica o objeto do desejo. Assim, a geração dos pais foi influenciada pela ideia de amor romântico. Leu George Sand, leu Werther, talvez até mesmo Jane Austen; e assim quis viver segundo sentimentos nobres e elevados. Pável perseguindo uma mulher pela Europa e enchendo-a de cartas em que prova seus sentimentos elevados é o clichê disso. É o clichê que qualquer leitor da época reconheceria.
(Lembre-se de que, na época, a literatura só concorria com o teatro; não havia rádio, TV, Netflix, nem mesmo uma fotonovela… Turguêniev tinha o prestígio que teria hoje um autor de novelas, um Aguinaldo Silva ou um Manoel Carlos.)
Ainda assim, Pável e Nikolái podem alegar nobreza e sentir-se aristocráticos porque seu modelo está distante. O modelo está nos romances. Eles viveram a vida como era mostrada nos livros. Pável ainda alardeia sua forte individualidade – e o individualismo é um ideal de época também. Pável de kaftan e unhas de vitrine é a mesma coisa que Dom Quixote acreditando-se cavaleiro. Pável é Emma Bovary – e se ele não teve as mulheres reais que se interessaram por ele, é porque ele só desejava essa vida livresca, na qual só existia a mulher que perseguiu.
(Sei que isso não está dito diretamente no romance, mas é muito difícil não inferir: o personagem é muito caricato. É como você falar de um jovem barbudo com camisa do Che Guevara. Você começa a fazer várias inferências a respeito dele.)
O exotismo de um Pável mostra que seus modelos são todos distantes. Um pouco como eu mesmo exibindo minhas canetas-tinteiro e meu café extraído a frio. A excentricidade é apenas o sinal de que sua cabeça está em outro lugar, de que suas referências são outras. O excêntrico, por isso mesmo, sempre tem modelos distantes. Ele vai parecer «nobre» e «aristocrático» porque mantém distância sem perder a cortesia e a reverência.
Na geração dos filhos, é o contrário. O modelo está sempre próximo. E o problema da proximidade do modelo é que você rapidamente rivaliza com ele: idem velle, até o momento em que os dois querem a mesma mulher. Ou, no caso de Pais e filhos, querem simplesmente fazer valer seus próprios modelos. Pável quer falar da arte e das pinturas de Rafael para que Bazárov fale de outro tipo de arte e cite outro pintor como modelo. Ele esperava no máximo algo como uma discussão entre tiozões que elogiam os Beatles e sobrinhos que elogiam as bandas do dia. Bazárov, por outro lado, recusa o modelo distante, recusa a reverência; aceitar algo de Pável seria aceitá-lo como modelo, e, pior ainda, um modelo próximo: Pável só pode então ser esse modelo invertido que é um rival. Por isso, se Pável disser A, Bazárov dirá não-A. É a história do «vou ver o que ele faz para então fazer diferente».
Bazárov, que já vive no mundo explicitamente competitivo, é um pouco mais avançado no pseudonarcisismo e não vai admitir que é afetado. Mas o leitor já infere que os modelos da geração dos pais são as modas intelectuais «de antigamente», e percebe de cara que o modelo de Arkádi é Bazárov. Antes que se fale em «niilismo”, o leitor já sabe que Arkádi está enfeitiçado por Bazárov. Modelos distantes para os «pais», modelos próximos para os «filhos».
Daí a sequência: Bazárov é modelo de Arkádi, de Sítnikov, de Kúkchina; Odíntsova fica fascinada, mas seu modelo pessoal de mulher independente é mais forte do que Bazárov. Bazárov, é claro, se apaixona pela primeira mulher que não se joga aos pés dele. Ele é sempre o modelo; ele consegue afetar autonomia; consegue afetar os outros sem ser afetado; basta que alguém demonstre estar fora do alcance dele, como a própria Feniêtchka, para que ele se descubra vulnerável.
Em suma, se Pável realmente conseguisse não se indignar, se realmente conseguisse vencer Baźarov na competição de afetação de indiferença, de «o que vem de baixo não me atinge», em dois dias o próprio Bazárov estaria de kaftan e unhas feitas, e os dois estariam discutindo Geoge Sand.
A proximidade do modelo é muito desconcertante. É algo constrangedor; evitamos pensar nisso. Usamos termos diferentes. Se eu confesso minha total admiração por uma pessoa viva e próxima, dirão que faço parte de uma seita. Às vezes o comportamento insano causado pela proximidade do modelo pode ser socialmente aceito. Se eu fosse a um show do Bruce Springsteen e tirasse uma foto com ele depois, e confessasse várias coisas ridículas que fiz, ninguém me acharia anormal. Isso porque o Bruce Springsteen está lá longe, no seu mundo glamuroso, e eu estou aqui, no meu mundo banal.
É preciso entender que Bazárov é visto como esse Bruce Springsteen que de repente aprece na vida banal. É o deus que se aproxima. Enquanto o deus está longe, posso ouvir suas músicas, ser inspirado por ele, imitá-lo. Quando ele está perto, tudo se torna mágico. Se você vir o Bruce Springsteen num restaurante e ele pedir peixe e vinho branco, aquilo vai parecer significativo. Pelo resto da sua vida, toda vez que você comer peixe e tomar vinho branco, você vai crer que participa um pouco da divindidade de Bruce Springsteen. E, se você estiver com ele, e lhe oferecer vinho tinto, e ele recusar, terá a sensação de que foi lancado para as trevas exteriores, para o mundo das coisas sem valor. Como se você fosse Sítnikov e Bazárov tivesse te esnobado.
Essa é toda a questão. Pável sabe quais são as «coisas de valor». Elas foram indicadas pelos modelos que estão nos livros. George Sand e Werther não estão presentes no dia-a-dia para reprová-lo. Bazárov, porém, está próximo. O que ele aprova e desaprova? Isso pode variar a cada momento. Veja bem: o que é o ideal romântico? Longas caminhadas no campo, contemplação da natureza, cultivo de sentimentos elevados, busca da expressão sincera, respeito pelos modelos clássicos apenas na medida em que são também modelos de sinceridade… Existe um ideal.
Por outro lado, o que é o «ideal» niilista? Não existe. Ele tenta ser apenas a recusa de ideais. «Vou ver o que ele faz para fazer diferente.» E, mesmo assim, veja aonde os ideais levaram: a esse idiota de kaftan num lugar em que nada funciona. (Agora me ocorre que essa é a sensação daqueles que gostam de falar mal dos «liberais de gravata borboleta»: eles só enxergam a tosquice do Brasil e querem que você seja tosco também, para não destoar.) O niilismo é a recusa: onde a geração dos pais diz A, a dos filhos diz não-A. A geração dos pais é o modelo invertido, o antimodelo, que é tão ou mais poderoso do que o modelo mesmo. E é um antimodelo próximo.
Até por isso é sintomático o duelo pedido por Pável. Mesmo que ele tenha sido motivado pelos engraçamentos de Bazárov com Feniêtchka, é claro que toda a antipatia pregressa tem seu peso. Já que Bazárov está duelando o tempo todo, para demonstrar sua recusa, então é melhor que haja um duelo de uma vez.
Pável perde, é claro. Parece-me que, se existe alguma regra de desprezo numa situação, aquele que a explicita já perdeu. Se você é esnobado e reclama que está sendo esnobado, você já perdeu. Você não pode implorar atenção, você não tem o direito de ser ouvido, você não tem o «direito» de vencer; ou você vence, ou você perde. E reclamar é perder. Mas Pável não entende nada disso, e vive segundo um código «aristocrático». Se ele é tratado como parte de um duelo, então vai simplesmente pedir o duelo, o qual, pelas regras aristocráticas ainda vigentes, não pode ser recusado. Pável quer trazer Bazárov para seu terreno, a fim de ter alguma chance de afetá-lo. Pobre Pável! Se quisesse realmente «vencer» Bazárov, teria de incendiar uma fábrica, ou tornar-se o Stávroguin de Demônios.
Dostoiévski, aliás, pode ter intitulado seu romance Demônios (concluído apenas dez anos depois de Pais e filhos, com direito a Karmazínov, personagem que satiriza o próprio Turguêniev) por causa da violência e da maldade dos personagens, mas mesmo no mundo do pseudonarcisismo já é possível imaginar um inferno: o mediador – isto é, aquele que confere prestígio e magia – se retirou para sempre, e você, que, como Bazárov, se acha um deus, está cercado de Sítnikovs e de Kúkchinas, os quais também se julgam deuses vilipendiados por ter de viver a eternidade em tão baixa companhia.
Se essa formulação foi técnica demais, aí vem outra: imagine viver a eternidade cercado de pessoas que você despreza. Elas sentem por você o mesmo desprezo que você sente por elas. E isto é tudo. (Agora é fácil entender o risco da soberba.)
## O efeito do bode expiatório
Impossível terminar essa discussão sem falar do «efeito de bode expiatório» provocado pela morte de Bazárov. Segundo René Girard, nas sociedades primitivas uma vítima era acusada dos males que afetavam a comunidade. Depois que ela era morta, a comunidade encontrava a paz. Essa paz, por sua vez, permitia que as coisas voltassem a funcionar. A vítima era divinizada: tinha o «misterioso» poder de causar a desordem e de restaurar a ordem.
Os resquícios disso são evidentes em Pais e filhos. Podemos não enxergar a desordem da fazenda, e dirigir nossa atenção apenas para a insolência de Bazárov, vendo nele um mero criador de caso. Podemos facilmente acreditar que foi ele que causou a desordem (como se essa desordem já não viesse de antes e não fosse fruto das decisões de Pável e Nikolái, e sim fruto de entidades míticas como «a sorte» ou «tempos difíceis»). Bazárov, em primeiro plano, atrai para si essa culpa.
Agora, não é a «comunidade» que mata Bazárov, mas um erro médico. Um tipo de leitor pode ver na incompetência que impediu o tratamento precoce de Bazárov um sinal de uma Rússia atrasada: foi «ela» que matou Bazárov. Esse tipo de metáfora, quando repetida muitas vezes, torna-se estranhamente poderosa.
O leitor também pode, de certa maneira, desejar a morte de Bazárov. Pável, sem dúvida, assumiu o risco de matar Bazárov. Bazárov levou todos a um limite; livrar-se dele seria muito conveniente.
E, de fato, é só depois da sua morte que Feniêtchka é devidamente assumida; que Arkádi se casa; que até Odíntsova se casa; que Pável vai para a Alemanha, onde será menos exótico do que numa fazenda do interior da Rússia. Até a fazenda passa a ser bem administrada.
A sugestão de divinização de Bazárov, como se estivéssemos numa sociedade primitiva, em que o bode expiatório volta para trazer a paz, a ordem, as colheitas, está no pensamento de Kátia, que deseja fazer um brinde a Bazárov… mas prefere se calar. Ela sabe que, sem aquele catalisador, nada teria acontecido.
Porém, esse é o segredo que precisa ser guardado. Era esse o open secret das sociedades primitivas: as culpas, as rivalidades, as violências eram dirigidas para a vítima de todos, para que a vida pudesse prosseguir. Em vez de olhar a si mesmo, cada qual olhava a culpa dela. Em vez de tirar a trave do próprio olho, cada qual apontava o cisco no olho do outro.
Nós, leitores modernos, ainda guardamos algo desse «primitivismo». Kátia percebe tudo, mas prefere não dizer nada. Se ela dissesse, os personagens talvez fossem obrigados a fazer um doloroso exame de consciência. Talvez até o leitor que odiou Bazárov e sentiu-se aliviado com sua morte, sentiu que suas crenças estavam confirmadas, pudesse continuar a vida.
Assim como Pável, Nikolai, e Arkádi, preferimos acreditar que os tempos difíceis passaram e que aquele rapaz talentoso mas difícil teve uma morte infeliz e desnecessária. Preferimos não ver que até a ordem restaurada é devida a ele, à morte dele, e que deveríamos ser gratos. Se continuasse vivo, em algum momento ele talvez nos obrigasse a enxergar a desordem que nós mesmos causamos.