091 A ameaça nuclear: um novo sacramento para a humanidade
O cap. VI de «The Mark of the Sacred», de Jean Pierre-Dupuy
Após ver o filme Oppenheimer, só consegui pensar na bomba atômica. Já comprei Nós, filhos de Eichmann, de Günther Anders, citado neste capítulo fundamental de Jean-Pierre Dupuy, que traduzi para a discussão da Oficina de Escrita.
O texto não é acadêmico, mas é mais denso do que a maioria dos ensaios dirigidos ao grande público. Ele contém, também, muitas informações sobre a decisão de lançar a bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki. Vale como um texto de história e de indicações de fontes.
Ao fim do texto, que só pode ser lido no Substack (na web ou no app, que recomendo), Günther Anders fala de como os japoneses se recusam a culpar os americanos, tratando a bomba atômica como uma catástrofe natural.
E, se você quiser se divertir, nada como ouvir (em inglês) este debate entre Jean-Pierre Dupuy e… Slavoj Žižek!
VI A ameaça nuclear
Um novo sacramento para a humanidade
Jean-Pierre Dupuy. The Mark of the Sacred, tradução inglesa de M. B. DeBevoise, cap. VI. Tradução de Pedro Sette-Câmara. (Eu poderia ter traduzido do original francês, caso o tivesse.)
A dessacralização do mundo não é algo que gradualmente, como que por necessidade, levará à eliminação completa e definitiva da religião. Episódios secundários de ressacralização pontuaram regularmente essa longo afastamento para longe do sagrado em sua forma primitiva e perpetuaram sua característica distintiva: ao conter a violência, nos dois sentidos da palavra, o sagrado age como uma barreira à violência por seus próprios métodos violentos. Sobre a bomba atômica, costumava-se dizer, especialmente durante os anos da Guerra Fria, que ela era o nosso novo sacramento. Eram muito poucos aqueles que, entre os que eram dados a dizer esse tipo de coisa, viam nisso algo mais do que uma vaga metáfora. Porém, na verdade, há um sentido muito preciso no qual se pode dizer que o apocalipse nuclear tem a mesma relação com o pensamento estratégico que a crise sacrificial, na teoria mimética de René Girard, tem com as ciências humanas: ele é o centro ausente — ainda que radiante — do qual emergem todas as coisas; ou, talvez, para mudar a imagem, um buraco negro — e portanto visível — cuja existência pode no entanto ser detectada pela imensa atração que exerce em todos os objetos à sua volta.
De bin Laden a Hiroshima
Um dos mais notáveis teóricos das ciências humanas do nosso tempo foi um homem chamado Osama bin Laden. Suas ideias, que só recentemente foram divulgadas, são dignas de consideração cuidadosa.
Todos sabem que o local em que as torres gêmeas ficavam em Nova York hoje se chama «Ground Zero». Na noite de 11 de setembro de 2001, esse nome já tinha entrado na língua corrente, tendo sido espontaneamente adotado por jornalistas da mídia impressa e da TV, por novaiorquinos comuns, e depois por todos os americanos, antes de entrar no uso comum de gente do mundo inteiro. Porém, a origem do termo talvez seja menos conhecida. Na mente de todos os americanos cultos, Ground Zero inevitavelmente recorda o ponto preciso (denominado Trinity) em que ocorreu a primeira explosão atômica da história da humanidade, em 16 de julho de 1945, em Alamogordo, no estado do Novo México. Foi o próprio Robert Oppenheimer quem escolheu esse nome, na febril empolgação que havia em torno do desenvolvimento das bombas que devastariam Hiroshima e Nagasaki. Assim, desde o primeiro momento, os americanos compararam o terrível atentado de 11 de setembro com os ataques nucleares que puseram o Japão imperial de joelhos. Bem, era exatamente isso que Osama bin Laden queria que acontecesse.
Em maio de 1998, John Miller, repórter da ABC News, foi até o campo nas montanhas no sul da Afeganistão onde estava bin Laden, e perguntou-lhe a respeito da fatwa que convocava os muçulmanos a matar americanos em quaisquer tempo e lugar em que a oportunidade se apresentasse. Miller perguntou se o alvo era limitado a pessoal militar ou se incluía todos os americanos. Bin Laden respondeu: «Os americanos começaram, e a retaliação e a punição devem ser executadas segundo o princípio de reciprocidade, especialmente quando estão envolvidas mulheres e crianças. Ao longo da história, a América não se distinguiu por diferenciar entre militares e civis, ou entre homens e mulheres, ou entre adultos e crianças. Aqueles que [lançaram] bombas atômicas e usaram armas de destruição de massa contra Nagasaki e Hiroshima foram os americanos. As bombas sabem diferenciar entre militares, mulheres, bebês, e crianças?»1
Hoje sabemos que, nos meses anteriores ao 11 de setembro, os Estados Unidos tiveram muitos avisos de que haveria um ataque espetacular. Um deles, uma mensagem da al-Qaida interceptada pela CIA em agosto de 2000, era particularmente assustadora. Ela se gabava de que a organização de bin Laden estava planejando «um acontecimento como o de Hiroshima» contra a América.2 O uso generalizado da expressão «Ground Zero» é um indício inequívoco de que os americanos receberam a mensagem que bin Laden lhes dirigia.
Já se notou que bin Laden refere o «princípio de reciprocidade» como se estivesse citado o famoso capítulo que Lévi-Strauss dedicou a essa ideia em As estruturas elementares do parentesco (1949). Por mais absurda que possa parecer à primeira vista a sugestão de um elo entre bin Laden e Claude Lévi-Strauss, sua pertinência é inesperadamente confirmada quando se considera as palavras ditas pelo arquiteto do 11 de setembro na única entrevista transmitida pela TV que ele deu na sequência, em outubro do mesmo ano. À pergunta a respeito de seu papel nos ataques, bin Laden respondeu: «Se matar aqueles que matam nossos filhos é terrorismo, então que a história testemunhe que somos terrroristas.» E mais adiante: «Mataremos os reis dos infiéis, os reis dos cruzados, e infiéis civis, em retribuição pelas nossas crianças que eles mataram. Isso é permitido na lei islâmica, e logicamente. O entrevistador tentou ter certeza de que tinha entendido corretamente: «Então o que você está dizendo é que esse é um tipo de tratamento recíproco — eles matam nossos inocentes, por isso nós matamos os inocentes deles?» Bin Laden: «Então matamos os inocentes deles. E estou dizendo que isso é permitido na lei e na lógica islâmicas.»3
É impressionante. No debate contínuo a respeito da forma e da função da troca simbólica inaugurada pela publicação de O dom (1924), ensaio monumental de Marcel Mauss, para o qual contribuíram alguns dos maiores intelectuais franceses (não apenas Lévi-Strauss, mas também Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, e Michel Serres), bin Laden assume de maneira explícita e resoluta o lado de Lévi-Strauss. A lei humana que impõe a reciprocidade da troca é a expressão, diz ele, de uma necessidade lógica — e, portanto, mecânica. Inevitável reconhecer a contribuição decisiva de bin Laden para esse debate, pois ele conseguiu demonstrar enfaticamente aquilo que Bourdieu e os demais foram incapazes de apreender, a saber, que essa «lógica» é a lógica do mal, da violência, e do ressentimento.
Por mais escandaloso e paradoxal que possa parecer, o terrorismo islâmico é assim revelado como o reflexo monstruoso do ocidente cristão que ele diz abominar. Isso é evidenciado por sua retórica vitimária, que fala de um dever que cabia aos kamikazes muçulmanos do 11 de setembro de vingar as vítimas de Hiroshima. O próprio fato de que o nosso vocabulário se limita à palavra japonesa para pessoas que cometem ataques suicidas mostra, aliás, que é difícil dizer que essa prática terrorista tem raízes no islã. Sua origem está no ocidente e no Japão, ainda que hoje grupos islamistas pareçam ter reclamado, na prática, um monopólio dela para si, no Oriente Médio e em outros lugares.
Osama bin Laden traz a útil recordação de algo que muitas pessoas no ocidente prefeririam ignorar, a saber, que foi ocidente que jogou fora os princípios da guerra justa. Entre eles há o princípio da discriminação, que exige que o combate restrinja-se aos combatentes inimigos, poupando pessoas consideradas inocentes, em particular mulheres, crianças, e idosos; e o princípio da proporcionalidade, que exige que o grau da violência seja calibrado para adequar-se aos objetivos políticos e estratégicos em vista. Esses princípios — que pretendiam converter a guerra num ritual que é ao mesmo tempo violento e comedido em seus efeitos, um ritual que contém a violência por meio da violência — morreu uma morte horrível em Hiroshima, e seus restos foram vaporizados na detonação radioativa que, na sequência, derrubou Nagasaki. É verdade, é claro, que esses mesmos princípios já tinham sofrido graves danos apenas poucos meses antes, com o uso de bombas incendiárias em Dresden e em Tóquio.
Teórico da era atômica
Em 6 de agosto de 1945, uma bomba atômica reduziu a cidade japonesa de Hiroshima a cinzas radioativas. Três dias depois, Nagasaki, por sua vez, foi atacada. Nesse ínterim, em 8 de agosto, o Tribunal Militar Internacional em Nuremberg concedeu a si mesmo a autoridade para julgar três tipos de crimes: crimes contra a paz, crimes de guerra, e crimes contra a humanidade. Assim, em três dias, os vencedores da Segunda Guerra Mundial inauguraram uma era em que armas de destruição em massa, inconcebivelmente poderosas, faziam com que fosse inevitável que as guerras agora fossem julgadas criminosas pelas próprias normas que esses vencedores estabeleciam naquele mesmo instante. Essa ironia colossal marcaria para sempre o pensamento de Günther Anders, o filósofo alemão mais negligenciado do século XX.
Anders nasceu Günther Stern, em 12 de julho de 1902, de pais judeus alemães em Breslau (hoje a cidade polonesa de Wrocław4). Seu pai foi Wilhelm Stern, conhecido psicólogo infantil, lembrado por seu conceito de quociente de inteligência (ou QI). Quando Günther Stern começava sua carreira como jornalista em Berlim, seu editor, Bertolt Brecht, sugeriu que ele escrevesse usando outro nome, algo diferente de Stern. A partir de então ele passou a escrever com o nome Anders («outro» ou «diferente» em alemão). Essa não era a única coisa que o distinguia. Havia também seu jeito de fazer filosofia, a qual ele tinha estudado com Marburg com Husserl e com Heidegger. Anders uma vez disse que escrever filosofia moral num estilo carregado de jargão acessível apenas a outros filósofos é tão absurdo e tão desprezível quanto um padeiro fazer um pão que só pudesse ser comido por outros padeiros. Ele praticava aquilo que chamava de filosofia ocasional, um tipo de filosofia que «surge das experiências concretas e em ocasiões concretas».5 Entre essas ocasiões, estava, em primeiro plano, a conjunção de Auschwitz e Hiroshima, isto é, o momento em que a destruição da humanidade em escala industrial pela primeira vez adentrou o âmbito da possibilidade. Era a temas como esse, pensava Anders, que o filósofo deveria dedicar todas as suas energias, e cada minuto em que estava acordado.
Anders não parece ter sido muito apreciado, ao menos não por sua primeira esposa, Hannah Arendt, que lhe tinha sido apresentada por Hans Jonas, seu colega de classe em Marburg. Tanto Arendt quanto Jonas estudaram com Heidegger, assim como Anders; ambos eram judeus, assim como ele; ambos estavam destinados a tornar-se filósofos mais famosos, e muito mais influentes, do que ele jamais seria. A memória de Günther Anders é importante porque ele é um dos pouquíssimos pensadores a ter tido a coragem e a lucidez de associar Hiroshima com Auschwitz, sem privar Auschwitz de maneira nenhuma do triste privilégio de ser a encarnação do horror moral sem fim. Ele foi capaz disso porque entendeu (como a própria Arendt, embora um tanto depois) que, mesmo que o mal moral, além de um certo limite, se torne maior do que aquilo que os seres humanos aguentam, eles ainda assim continuam responsáveis por ele; e que nenhuma ética, nenhum padrão de racionalidade, nenhuma norma que os seres humanos possam estabelecer por conta própria tem a mais vaga relevância para a avaliação das consequências.
É preciso coragem e lucidez para associar Hiroshima e Auschwitz porque ainda hoje, para muitas pessoas — incluindo, ao que parece, uma vasta maioria de americanos — Hiroshima é o clássico exemplo do mal necessário.6 Com o falecimento recente de Paul Tibbetts, o piloto do Enola Gay, o B-29 que lançou «Little Boy» em Hiroshuma, velhas feridas foram reabertas, e o argumento do mal necessário outra vez saiu trotando, embora, dessa vez, não sem resistência. Tendo investido a si mesma com o poder de determinar, se não o melhor dos mundos possíveis, ao menos o menos pior entre eles, a América pôs num dos pratos da balança da justiça o bombardeio de civis e o assassinato de centenas de milhares deles, e, de outro, uma invasão do arquipélago japonês que, dizia-se, teria custado as vidas de meio milhão de soldados americanos. A necessidade moral, defendia-se, exigia que a América escolhesse acabar com a guerra o mais rápido possível, ainda que isso significasse estilhaçar de uma vez por todas tudo que até então tinha constituído as regras mais elementares da guerra justa. Os filósofos morais chamam isso de argumento consequencialista: quando a questão é de importância incomparavelmente grande, as normas deontológicas — assim chamadas porque expressam um dever de respeitar imperativos absolutos, não importando o custo nem os efeitos — devem ceder ao cálculo das consequências. Porém, qual cálculo ético e racional poderia justificar milhões de crianças judias de todas as partes da Europa para as câmaras de gás? Aí está a diferença, a lacuna, o abismo moral que separa Auschwitz de Hiroshima.
Nas décadas desde então, porém, pessoas de grande integridade e intelecto insistiram na imoralidade intrínseca das armas atômicas em geral, e, em particular, na ignomínia de bombardear Hiroshima e Nagasaki. Em 1956, Elizabeth Anscombe, filósofa de Oxford e pensadora católica, fez uma comparação esclarecedora, que ressaltou vividamente os horrores a que o raciocínio consequencialista leva quando é levado à sua conclusão lógica. Suponhamos, disse ela, que os Aliados tivessem pensado, no começo de 1945, que, a fim de derrubar a vontade de resistência dos alemães e de compeli-los a render-se de maneira rápida e incondicional, poupando assim a vida de inúmeros soldados aliados, fosse necessário massacrar centenas de milhares de civis, incluindo mulheres e crianças, em duas cidades do vale do Ruhr. Duas questões se apresenta. Primeira: que diferença teria feito, moralmente falando, entre isso e aquilo que os nazistas fizeram na Tchecoslováquia e na Polônia? Segunda: que diferença teria havido, moralmente falando, entre isso e o bombardeio atômico de Hiroshima e de Nagasaki?7
Diante do horror, a filosofia moral é obrigada a recorrer a analogias desse tipo, pois ela não dispõe de nada mais do que a coerência lógica para servir de base para a validade de seus argumentos. No caso, essa exigência mínima de coerência não bastou para que a opção nuclear fosse descartada, nem para condená-la posteriormente. Por quê? Uma resposta é que, como os americanos venceram a guerra contra o Japão, sua vitória pareceu justificar retrospectivamente a ação praticada. Esse argumento não deve ser confundido com o cinismo. Ele envolve aquilo que os filósofos denominam o problema da sorte moral.8 O juízo moral a respeito de uma decisão feita em condições de incerteza radical depende daquilo que ocorre depois de ação relevante ter sido praticada — algo que era completamente imprevisível antes, inclusive como questão probabilística.
Robert McNamara descreve essa situação difícil no conjunto extraordinário de entrevistas conduzidas pelo documentarista Errol Morris e lançada como filme com o mais clausewitziano dos títulos: The Fog of War9 (2003). Antes de atuar como secretário de defesa dos presidentes Kennedy e Johnson, McNamara tinha assessorado durante a guerra no Pacífico o general Curtis LeMay, que tinha sido responsável pelo lançamento de bombas incendiárias em 67 cidades do Japão imperial, campanha essa que culminou no lançamento de duas bombas atômicas. Somente na noite de 9 para 10 de março de 1945, cem mil civis morreram queimados em Tóquio. McNamara cita com aprovação o veredito impressionantemente lúcido de LeMay: «Se tivéssemos perdido a guerra, todos teríamos sido julgados como criminosos de guerra.»
*Ao fim deste vídeo de 3 minutos, você ouve, em inglês, a fala de McNamara a respeito de ser julgado criminoso de guerra caso os EUA tivessem perdido. — PSC
Outra resposta possível é que a moralidade consequencialista nesse caso serviu apenas como pretexto conveniente. Uma escola revisionista de historiadores americanos, liderada por Gar Alperovitz, insiste fortemente nesse argumento, afirmando que em julho de 1945 o Japão estava prestes a capitular.10 Duas condições teriam de ter sido satisfeitas para a rendição imediata: a primeira, que o presidente Truman concordasse com uma declaração de guerra imediata ao Japão por parte da União Soviética; a segunda, que a rendição japonesa fosse acompanhada por uma promessa americana de que o imperador poderia permanecer no trono. Truman recusou as duas condições em Potsdam. Um dia antes de a conferência começar, em 16 de julho de 1945, o presidente tinha recebido a «boa notícia» de que a bomba estava pronta — como tinha demonstrado o teste bem-sucedido em Alamogordo.
Alperovitz conclui que Truman quis obter uma vantagem sobre os soviéticos, antes que eles estivessem preparados para intervir militarmente no arquipélago japonês. Em outras palavras, os americanos usaram a bomba nuclear não para forçar o Japão a render-se, mas para impressionar os russos. Nesse caso, a Guerra Fria foi iniciada com uma abominação ética, e os japoneses, reduzidos ao nível de cobaias, pois a bomba não era efetivamente necessária para obter a rendição. Outros historiadores avaliam que, necessária ou não, ela não era uma condição suficiente para obter uma declaração de rendição. Alguns anos atrás, Barton J. Bernstein propôs uma «nova síntese» de várias versões revisionistas.11 Havia muito tempo que se sabia que, no dia depois de Nagasaki, o general Korechika Anami, ministro da Guerra do Japão, e o almirante Takijiro Onishi, vice-chefe do Estado-Maior Naval, instaram o imperador a autorizar um «esforço de ataque especial [kamikaze],12 ainda que isso significasse arriscar até vinte milhões de vidas japonesas, segundo sua própria estimativas, pela causa da vitória definitiva. Nesse caso, duas bombas não teriam sido suficientes. Os americanos estavam tão convencidos da necessidade de detonar um terceiro dispositivo, diz Bernstein, que o anúncio da rendição em 14 de agosto — aparentemente um resultado da sorte e de mudanças de alianças no mais alto nível do governo japonês, ainda mal entendidas pelos historiadores — chegou como uma total surpresa.13 Bernstein, porém, leva o argumento um passo adiante. Dentre as seis opções disponíveis aos americanos para forçar os japoneses a render-se sem uma invasão do arquipélago, cinco tinham sido analisadas superficialmente, separadamente e em conjunto, e em seguida rejeitadas por Truman e seus assessores: continuidade da campanha de bombardeio convencional, suplementada por um bloqueio naval; negociações não-oficiais com o inimigo; modificação dos termos da rendição, incluindo uma garantia de que o sistema do império seria preservado; esperar a Rússia entrar na guerra; e uma demonstração da bomba atômica fora do combate. A sexta opção, o uso militar da bomba, nunca foi discutida — nem mesmo por um instante; ela foi simplesmente dada como certa. O bombardeio de Hiroshima e de Nagasaki decorreu da própria existência da bomba. Do ponto de vista ético, as descobertas de Bernstein são ainda mais terríveis do que as de Alperovitz: lançar a bomba atômica, talvez a decisão mais grave já tomada na história moderna, não foi algo que tenha sido efetivamente decidido.
As interpretações revisionistas não esgotam as perguntas que precisam ser feitas. Há pelo menos mais duas. Primeiro, que sentido teve o bombardeio de Hiroshima e — o que é ainda mais perturbador, por causa da determinação grotescamente absurda de persistir na infâmia — de Nagasaki? Segundo, como pôde o verniz consequencialista da justificativa oficial para esses atos — que foram extremamente lamentáveis, mas mesmo assim uma necessidade moral — ter sido aceito como uma defesa legítima, quando, na verdade, deveria ter sido visto como a desculpa mais chocante e execrável que se pode imaginar?
A obra de Günther Anders não apenas oferece uma resposta para essas perguntas, como a oferece ao transferi-las para outro contexto. Um judeu alemão que tinha emigrado para a França e dali para a América, e depois voltado para a Europa cinco anos depois do fim da guerra — por toda parte um exilado, o judeu errante da lenda — Anders percebeu que, em 6 de agosto de 1945, a história humana tinha entrado numa nova fase — a última. Ou, antes, que o sexto dia de agosto era apenas um ensaio para o novo — aquilo que ele chamava de «síndrome de Nagasaki». O bombardeio atômico de uma população civil, uma vez que tinha ocorrido pela primeira vez, uma vez que tinha tornado real o impensável, inevitavelmente convidava a mais atrocidades, exatamente como um terremoto é inevitavelmente seguido por uma série de abalos secundários. A história, dizia Anders, tornou-se obsoleta naquele dia. Agora que a humanidade era capaz de destruir a si mesma, nada jamais poderia fazer com que ela perdesse essa «onipotência negativa», nem mesmo um desarmamento geral, nem mesmo uma desnuclearização total dos arsenais mundiais. Agora que o Apocalipse está inscrito no nosso futuro como destino, o melhor que se pode fazer é adiar indefinidamente o momento final. Agora estamos vivendo uma suspensão de pena, como que uma prorrogação da execução. Em agosto de 1945, a humanidade entrou numa era de prorrogação (die Frist), a «segunda morte» de tudo aquilo que existira: como o sentido do passado depende das ações futuras, segue-se da obsolescência do futuro, de seu fim programado, não que o passado já não tem mais sentido, mas que nunca teve sentido nenhum.14
Investigar a racionalidade e a moralidade da destruição de Hiroshima e de Nagasaki equivale a tratar as armas nucleares como um meio a serviço de um fim. Um meio se perde em seu fim como um rio se perde no oceano, e termina completamente absorvido por este. A bomba, porém, ultrapassa todos os fins que jamais podem ser atribuídos ou encontrados para ela. A pergunta a respeito de o fim justificar os meios de repente se torna obsoleta, assim como tudo o mais. Por que a bomba foi usada? Porque ela existia. O mero fato de sua existência é uma ameaça, ou, antes, uma promessa de que ela será usada. Por que o horror moral de seu uso não foi percebido? O que explica essa «cegueira diante do apocalipse»?15 A resposta é que, além de certos limiares, nossa capacidade de produzir e de fazer supera infinitamente nossa capacidade de sentir e de imaginar. Anders chama essa lacuna irredutível de «discrepância prometeana». Se Hannah Arendt diagnosticou a incapacidade psicológica de Eichmann como «falta de imaginação»,16 Anders mostrou que essa não era a fraqueza de uma pessoa em particular; era a fraqueza de cada pessoa quando a capacidade da humanidade para a invenção, e para a destruição, fica desproporcionalmente ampliada em relação à condição humana.
«Entre a nossa capacidade de fazer e nossa capacidade de imaginar», diz Anders, «abre-se uma lacuna que fica maior a cada dia.» O «grande demais» nos esfria, ele acrescenta. «Ser humano nenhum é capaz de imaginar uma coisa de magnitude tão horripilante: a eliminação de milhões de pessoas.»17
A impotência da deterrência
Imagine um homem que tem o hábito de borrifar repelente de elefante da janela do carro enquanto dirige. Ele crê que a prova de que isso remove o perigo de uma colisão inesperada com um elefante que cruze a estrada é que ele nunca viu um elefante. Não é muito diferente de dizer que a deterrência nuclear há mais de meio século salva a humanidade de ser destruída por um holocausto atômico porque essa catástrofe nunca aconteceu.
Um pacifista insistiria que a melhor maneira de a humanidade evitar uma guerra nuclear é não ter nenhuma arma nuclear. Esse argumento, que beira a tautologia, era irrefutável antes de os cientistas do Projeto Manhattan desenvolverem a bomba atômica. Infelizmente, hoje ele não é mais válido. Essas armas existem, e mesmo supondo-se que elas deixassem de existir como resultado do desarmamento nuclear, elas poderiam ser recriadas em poucos meses. Errol Morris, em The Fog of War, pergunta a McNamara o que ele acha que protegeu a humanidade da extinção durante a Guerra Fria, quando os Estados Unidos e a União Soviética permanentemente ameaçavam-se um ao outro com a aniquilação mútua. A deterrência? De maneira nenhuma, responde McNamara: «Foi sorte.» Vinte e cinco, trinta vezes durante esse período, observa ele, a humanidade chegou a um centímetro do apocalipse.
Em meu próprio trabalho, tentei ampliar o escopo da análise de Günther Anders estendendo-a à questão da deterrência nuclear.18 Durante mais de quatro décadas durante a Guerra Fria, o debate a respeito da vulnerabilidade mútua (ou, segundo a fórmula conhecida quase universalmente, mutually assured destruction19) atribuiu um papel fundamental à ideia de intenção deterrente, tanto no nível estratégico quanto no nível moral. E mesmo assim, como agora veremos, é exatamente essa ideia que constitui o principal obstáculo para o entendimento da lógica da deterrência.
Em junho de 2000, numa reunião com Vladimir Putin em Moscou, Bill Clinton disse algo impressionante. Suas palavras foram ecoadas quase sete anos depois por Condoleezza Rice, secretária de Estado de George W. Bush, outra vez falando aos russos. O escudo antibalístico que vamos construir na Europa, disseram, só pretende defender os Estados Unidos de ataques de estados párias e de grupos terroristas. Assim, fiquem tranquilos: mesmo que nós tomássemos a iniciativa e agredíssemos vocês primeiro com um ataque nuclear, vocês poderiam facilmente atravessar o escudo e aniquilar-nos. Estava claro que a lógica da deterrência nuclear na nova ordem mundial criada pelo colapso do poder soviético não era menos insana do que fora antes. Essa lógica exige que cada nação exponha sua população à destruição garantida pelo contra-ataque do outro. A segurança se torna filha do terror: afinal, se cada nação fosse proteger-se, a outra poderia crer que sua adversária julgava-se invulnerável; portanto, a fim de impedir o primeiro ataque, ela correria para lançar ela mesma esse primeiro ataque. Não é por acaso que a doutrina da mutually assured destruction veio a ser conhecida por sua sigla MAD. Num regime nuclear, os países são ao mesmo tempo vulneráveis e invulneráveis: vulneráveis porque podem morrer do ataque de outro país; invulneráveis porque não morrerão antes de ter matado seu agressor — algo que sempre serão capazes de fazer, não importando a força do ataque que os tiver posto de joelhos.
Existe outra doutrina, conhecida como NUTS (Nuclear Utilization Target Selection [Seleção de Alvo para Utilização Nuclear]), que sugere que um país esteja preparado para usar armas nucleares de maneira cirúrgica, com o fim de eliminar a capacidade nuclear do adversário, ao mesmo tempo em que protege a si mesma com um escudo antimísseis. É óbvio que MAD e NUTS invalidam uma à outra, pois aquilo que torna um tipo de arma ou vetor valioso num caso tira grande parte da sua utilidade no outro. Considere os mísseis lançados por submarino, que têm trajetórias imprecisas e cujos hospedeiros são difíceis de localizar. Se os submarinos equipados com armas nucleares têm pouco ou nenhum interesse teórico para a NUTS, eles são muito úteis — aliás, quase ideais — da perspectiva da MAD, pois têm uma boa chance de sobreviver a um primeiro ataque, e a imprecisão mesma de seus sistemas de navegação faz deles efetivos instrumentos de terror. O problema com que os Estados Unidos se deparavam era ter dito que iam continuar a jogar a MAD com a Rússia (e talvez com a China), enquanto praticavam a NUTS com a Coreia do Norte, com o Irã, e, até poucos anos atrás, com o Iraque. Isso obrigava os americanos a mostrar que o sistema de defesa contra mísseis que eles queriam construir na Polônia e na República Tcheca poderia ser penetrado por um ataque russo ao mesmo tempo em que seria capaz de deter mísseis lançados por um estado pária. O sistema reconfigurado proposto por Washington em setembro de 2009 está submetido à mesma exigência.
Que a insanidade da MAD, fosse ou não juntada com a loucura da NUTS, tenha sido considerada o apogeu da sensatez, e que tenha recebido o crédito por ter mantido a paz mundial durante um período que muitos estrategistas hoje gostariam que voltasse, é algo que foge a todo entendimento. Trinta anos atrás, porém, eram poucas as pessoas que sequer estavam perturbadas por esse estado de coisas, tirando os bispos americanos — e o presidente Reagan. Outra vez, não podemos evitar fazer a pergunta óbvia: por quê? Por muitos anos a resposta habitual era que a questão aqui é uma intenção, não a execução da intenção. Mais ainda, trata-se de uma intenção de um tipo extremamente especial, porque o fato mesmo de ela formar-se tem a consequência de que não surjam as condições que levariam ao ato correspondente. Como, por hipótese, cada lado é dissuadido de lançar o primeiro ataque, não há necessidade de antecipar-se preemptivamente atacando primeiro, o que significa que ninguém se move. A intenção deterrente é formada, em outras palavras, para não ser efetivada. Os especialistas dizem que essas intenções são intrinsecamente «auto-invalidantes».20 Porém, isso apenas dá um nome ao enigma, sem resolvê-lo em nada.
Impossível que alguém que examine o status moral e estratégico da intenção deterrente não seja avassalado pelo paradoxo. O que parece proteger a intenção deterrente da censura ética é a coisa mesma que a torna inútil desde um ponto de vista estratégico, pois essa intenção não pode ser efetiva na ausência de uma meta-intenção de agir a partir dela caso as circunstâncias assim exijam. Do ponto de vista moral, a intenção deterrente, assim como as divindades primitivas, parece unir a bondade absoluta (pois é graças a essa intenção que a guerra nuclear não aconteceu) com o mal absoluto (pois o ato que corresponde a essa intenção é uma abominação inominável).
Ao longo da Guerra Fria, foram apresentados dois argumentos que pareciam mostrar que a deterrência nuclear na forma da MAD não podia ser efetiva.21 O primeiro argumento tem a ver com a falta de credibilidade de uma ameaça deterrente nessas circunstâncias: caso se presuma uma racionalidade mínima no lado que está ameaçando uma resposta simultaneamente letal e suicida à agressão que põe em risco seus «interesses vitais», apontar seu blefe — digamos com um primeiro ataque que destrua parte de seu território — garante que ele não cumprirá sua ameaça. O objetivo mesmo desse regime, afinal, é dar uma garantia de destruição mútua caso algum dos lados perturbe o equilíbrio de terror. Porém, qual estadista, tendo para defender, no rescaldo de um primeiro ataque, apenas os resquícios de uma nação devastada, correria o risco — lançando um ataque retaliatório —, por desejo de vingança, de acabar com a raça humana? Num mundo de estados soberanos que exibem esse grau mínimo de racionalidade, a ameaça nuclear não tem credibilidade nenhuma.
Outro argumento muito distinto igualmente se dirigia à incoerência da doutrina estratégica preponderante. Para ser efetiva, a deterrência nuclear tem de ser absolutamente efetiva. Nem uma única falha pode ser permitida, pois a primeira bomba lançada já seria demais. Porém, se a deterrência nuclear é absolutamente efetiva, ela não pode ser efetiva. Na prática, a deterrência só funciona se não for totalmente confiável. Pense, por exemplo, no sistema de justiça penal: para que os cidadãos se convençam de que o crime não compensa, as violações da lei ocorrem e em seguida devem ser punidas. Porém, no caso da deterrência nuclear, a primeira transgressão é fatal. A deterrência, embora seja portanto incapaz de deter, ainda assim prefigura algo essencial — a profecia da perdição.
O sinal mais evidente de que a deterrência nuclear não funciona é que ela não fez nada para impedir um aumento irrestrito e potencialmente catastrófico do número de armas nucleares. Se a deterrência nuclear funcionasse, ela deveria ter sido a grande equalizadora. Como no estado de natureza de Hobbes, a nação mais fraca — segundo o número de armas nucleares que possui — estaria no mesmo nível que a mais forte, pois sempre poderia infligir perdas «inaceitáveis», por exemplo, ao alvejar deliberadamente as cidades do inimigo; e de fato a França enunciou uma doutrina («a deterrência do forte pelo fraco») nesse sentido. A deterrência é portanto um jogo que pode ser jogado — aliás, que deve poder ser jogado — com muito poucas armas de cada lado.
Tardiamente se entendeu que, para que a deterrência tivesse alguma chance de sucesso, era absolutamente necessário abandonar a noção de intenção deterrente.22 A ideia de que os seres humanos, por sua consciência e vontade, podiam controlar o resultado de um jogo tão aterrorizante quanto a deterrência, era manifestamente uma fantasia ociosa e abominável. Em princípio, a mera existência de dois arsenais mortíferos apontados um para o outro, sem que se fizesse a menor ameaça de seu uso fosse feita ou ao menos estivesse implícita, basta para manter as ogivas guardadas nos silos. Mesmo assim, o espectro do apocalipse nuclear não desapareceu do mundo; nem uma certa forma de transcendência. Com o nome de deterrência «existencial», os riscos do antigo jogo foram transformados de tal modo que a aniquilação mútua agora surgia como a sina da humanidade, seu destino. Dizer que a deterrência funcionava significa simplesmente o seguinte: enquanto ninguém tentar a sorte de um jeito imprudente, há uma chance de que ela esqueça de nós por algum tempo — talvez um tempo longo, longo mesmo, mas não para sempre. A partir de então, como Günther Anders foi o primeiro a entender, e a anunciar desde uma perspectiva filosófica totalmente oposta, estamos vivendo depois da expiração do prazo.23
Se a teoria da deterrência existencial é digna de crédito, as armas nucleares conseguiram manter o mundo em paz até agora projetando o mal fora da esfera da experiência humana, fazendo dele um mal sem intenção nociva; um mal capaz de aniquilar a civilização, mas sem maior malícia do que um terremoto ou um tsunami; um mal cuja força destrutiva faz com que a ira da natureza pareça comparativamente tímida. A ameaça que paira sobre as cabeças dos líderes mundiais fez com que eles tivessem a cautela necessária para evitar a abominação da desolação bíblica prometida pela guerra termonuclear, a qual dizimaria nações inteiras e, na pior das hipóteses, extinguiria a vida na terra.
O paradoxo que está no cerne dessa teoria é nada menos do que a marca do sagrado. Considere outra vez as duas razões apresentadas para fundamentar a visão de que a intenção deterrente é incapaz de atingir seu fim. A primeira é que a ameaça da retaliação não tem credibilidade: caso a deterrência falhasse, essa ameaça nunca seria cumprida. A segunda é que a deterrência perfeitamente efetiva negaria a si mesma: a parte detida nunca teria certeza de que a parte deterrente realmente quer cumprir sua ameaça de retaliação caso a deterrência falhe. Só se pode escapar desse paradoxo caso a realidade do apocalipse nuclear como que passe a fazer parte do nosso futuro, de modo que seja apreendida como sina ou destino. Parece surpreendente encontrar essas palavras nos textos dos teóricos da deterrência existencial, que se veem como pensadores «racionais» e frios estrategistas. Porém, basta que se reflita um instante para que fique claro que esse argumento, assim que é enunciado, é engolido pelo abismo da autorrefutação: a condição em que a deterrência é efetiva — que consiste em enxergarmos o apocalipse nuclear como nosso destino — contradiz o objetivo mesmo da deterrência, a saber, garantir que o apocalipse nuclear não aconteça.
Para afastar essa aparente contradição, é preciso levar a sério — mais a sério do que levou o próprio Robert McNamara — aquilo que McNamara enfatiza em suas memórias24 e em The Fog of War: durante a Guerra Fria, não foi só uma vez, foram várias dezenas de vezes que a humanidade chegou muito perto de desaparecer numa nuvem radioativa. Será que foi a deterrência que falhou? Muito pelo contrário: foram precisamente essas expedições imprevistas até a beira do buraco negro que deram à ameaça da aniquilação nuclear sua força dissuasiva. «Foi sorte», disse McNamara. Uma grande verdade — mas, num sentido muito profundo, foi o repetido flerte com o apocalipse que salvou a humanidade: se são necessários acidentes para precipitar um destino apocalíptico, um acidente, ao contrário do destino, não é inevitável. Um acidente pode não ocorrer.
A forma distintiva assumida pela autorrefutação é nesse caso típica de toda uma série de paradoxos aos quais dei o belo nome de Jonas — em referência não apenas a Hans Jonas, filósofo alemão do século XX, mas também a seu predecessor do século VIII a.C., o profeta bíblico Jonas. Ambos defrontaram-se com o mesmo dilema, aquele mesmo com que se defronta todo profeta da ruína: ele precisa anunciar uma catástrofe iminente como se esta pertencesse a um futuro inelutável, mas com o propósito de garantir que, como resultado de ele fazer exatamente isso, a catástrofe não ocorra. O Jonas da Bíblia, convocado por Deus para profetizar a destruição de Nínive, tentou evitar sua missão e fugiu. Sabemos que preço ele pagou por isso! O mesmo paradoxo está no coração de uma figura clássica da literatura e da filosofia, o juiz assassino, que «neutraliza» todos aqueles a respeito dos quais está escrito que cometerão um crime — com o resultado de que seus crimes não serão cometidos.25 Intuitivamente, você sente que o paradoxo deriva de a previsão passada não se juntar com o acontecimento futuro num loop fechado.26 Porém, a ideia mesma desse loop não faz sentido na nossa metafísica ordinária, como mostra a lógica modal da prevenção. A prevenção consiste em agir para garantir que uma ação indesejada seja relegada ao reino ontológico das possibilidades não-atualizadas. A catástrofe, ainda que não ocorra, retém o status de uma possibilidade, não no sentido de que ainda seria possível que ela ocorresse, mas no sentido de que sempre será verdadeiro que ela poderia ter ocorrido. Quando alguém anuncia que uma catástrofe é iminente, a fim de evitá-la, esse anúncio não possui o status de uma previsão, no sentido estrito do termo: você não afirma estar dizendo o que será o futuro, só o que ele teria sido caso medidas preventivas não tivessem sido tomadas. Não há necessidade de fechar loop nenhum aqui. O futuro anunciado não tem de coincidir com o futuro real, a previsão não precisa se tornar verdadeira — porque o «futuro» anunciado na verdade não é de jeito nenhum futuro, mas um mundo possível que é, e permanecerá, não-atual.27
O profeta da perdição não pode se contentar com uma espécie de metafísica de supermercado em que mundos possíveis constituem um longuíssimo corredor de opções que o comprador de futuros pode escolher com liberdade. Como fatalista, o profeta fala de acontecimentos que ocorrerão, que ocorrerão da maneira como estão escritos no grande pergaminho do Destino — imutavelmente, inelutavelmente. Como, então, você pode profetizar um futuro que você não deseja, para que ele não ocorra? Esse é o paradoxo de Jonas, cuja estrutura lógica é exatamente a mesma que a do paradoxo da deterrência perfeita (autorrefutante). A chave do enigma se encontra na dialética de destino e acidente que forma o núcleo da deterrência existencial, ao considerar o apocalipse nuclear algo ao mesmo tempo necessário e improvável. Porém, haverá algo realmente novo nessa ideia? Seu parentesco com a tragédia, clássica ou moderna, é imediatamente visível. Considere Édipo, que mata o pai na encruzilhada fatal, ou Meursault, o «estrangeiro» de Camus, que mata o árabe sob o sol incandescente de Algiers — para a mente mediterrânea, esses acontecimentos são tanto acidentes quanto atos do destino, em que acaso e destino fundem-se e tornam-se um.
O acidente, que aponta para o acaso, é o contrário do destino, que aponta para a necessidade; porém, se esse oposto, o destino não pode realizar-se. Um seguidor de Derrida diria que o acidente é o suplemento do destino, no sentido de que ele é tanto seu contrário quanto a condição de sua ocorrência. O que complica o caso atual é que se trata de um destino que absolutamente não queremos para nós, um destino do qual devemos tentar nos afastar o máximo que pudermos. O acidente, tanto como instrumento do destino e como sua negação, nos dá os meios de fazer isso.
Se rejeitarmos o Reino — isto é, se a a violência não for rejeitada universal e categoricamente — tudo o que nos resta é um jogo de imenso perigo e risco que equivale a brincar com fogo constantemente: não podemos correr o risco de chegar perto demais, para que não pereçamos num holocausto nuclear (esse é o princípio da deterrência existencial); também não podemos correr o risco de ficarmos longe demais, para que não esqueçamos o perigo das armas nucleares (esse é o paradoxo de Jonas). Não devemos nem acreditar excessivamente no destino, nem recusar-nos demais a acreditar nele. Isto é: temos de acreditar no destino exatamente como acreditamos numa obra de ficção. Em princípio, a dialética do destino e do acaso permite que mantenhamos a distância exata do buraco negro da catástrofe: como o apocalipse é o nosso destino, inevitavelmente estamos amarrados a ele; porém, como é preciso que um acidente ocorra para que nosso destino se cumpra, somos mantidos afastados dele.
Note que a estrutura lógica dessa dialética é exatamente a mesma do sagrado em sua forma primitiva, tal como elucidada por Girard. Não se pode chegar perto demais do sagrado, por temor de desencadear a violência; todavia, também não se deve ficar longe demais dele, pois ele nos protege da violência. Repito outra vez: o sagrado contém a violência, nos dois sentidos da palavra.
O fim do ódio e do ressentimento
A profunda analogia entre a deterrência existencial e o sagrado em sua forma primitiva nos leva de volta para a questão do mal. Foi provavelmente graças à influência do cristianismo que o mal passou a ser associado mais comumente com as intenções daqueles que o cometem. E contudo o mal da deterrência nuclear em sua forma existencial é um mal desconectado de toda intenção humana, exatamente como o sacramento da bomba é um sacramento sem um deus. É por esse motivo que o fim do ódio e do ressentimento pressagiado pelo advento das armas nucleares deve ser temido acima de tudo.
Em 1958, Günther Anders foi a Hiroshima e a Nagasaki participar da Quarta Conferência Mundial contra Bombas Atômicas e de Hidrogênio. Após muitas conversas com sobreviventes da catástrofe, ele anotou em seu diário: «Sua firme resolução de não falar dos culpados, de não dizer que o acontecimento tinha sido causado por seres humanos; de não guardar o menor ressentimento, ainda que eles fossem vítimas do maior dos crimes — isso realmente é demais para mim, isso supera todo entendimento.» E ele acrescenta: «Eles falam constantemente da catástrofe como se tivesse sido um terremoto ou um maremoto. Eles usam a palavra japonesa tsunami.»28
O mal que habita a chamada paz nuclear, desancorado de toda intenção maligna, inspira estas palavras, de aterrorizante intuição, ditas no livro de Anders Hiroshima ist überall (Hiroshima está por toda parte): «O caráter fantástico da situação é simplesmente de tirar o fôlego. No instante mesmo em que o mundo se torna apocalíptico, e isso por nossa própria culpa, ele apresenta a imagem […] de um paraíso habitado por assassinos sem malícia e vítimas sem ódio. Em lugar nenhum há vestígio nenhum de malícia, só há escombros.»29 A profecia de Anders é de gelar a espinha: «Guerra nenhuma da história terá sido mais desprovida de ódio do que a guerra por teleassassinato que há de vir. […] [E]ssa ausência de ódio será a mais desumana ausência de ódio que jamais existiu; a ausência de ódio e a ausência de escrúpulos a partir de agora serão a mesma coisa.»30
A violência sem ódio é tão desumana que equivale a uma espécie de transcendência — talvez a única transcendência que ainda nos resta.
Notas
1 Da transcrição oferecida pelo programa de notícias «Frontline», da PBS, em que a entrevista de Miller foi transmitida posteriormente naquele ano, disponível em www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/binladen/who/interview.html. Grifo meu.
2 Ver a transcrição do programa «Frontline» da PBS de 3 de outubro de 2002, disponível em www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/knew/etc/script.html.
3 Da transcrição em inglês da entrevista realizada por Tauseer Alouni, correspondente da Al-Jazeera, em outubro de 2001, transmitida pela CNN em 1 de fevereiro de 2002; ver www.transcripts.cnn.com/TRANSCRIPTS/0202/01/ltm.04.html. Novamente, grifo meu.
4 Pronuncia-se «Vrótsuaf». (N.T.)
5 Citado em Paul van Dijk, Anthropology in the Age of Technology: The Philosophical Contribution of Günther Anders (Atlanta, Ga.: Rodopi, 2000), 1.
6 É irônico, ou talvez apenas uma prova de cinismo, que o bombardeiro B-29 que levou a equipe de cientistas responsável por estudar as condições e os efeitos da explosão atômica de 6 de agosto de 1945 se chamava Necessary Evil [Mal Necessário].
7
8 Ver Bernard Williams, “Moral Luck,” in: Moral Luck: Philosophical Papers, 1973–1980 (Cambridge: Cambridge University Press, 1981), 20–39.
9 No Brasil, o título é Sob a névoa da guerra.
10 Ver Gar Alperovitz, The Decision to Use the Atomic Bomb and the Architecture of an American Myth (Nova York: Knopf, 1995); também Barton J. Bernstein, “A Postwar Myth: 500,000 U.S. Lives Saved,” Bulletin of the Atomic Scientists 42 (junho–julho de 1986): 38–40.
11 Ver Barton J. Bernstein, “Understanding the Atomic Bomb and the Japanese Surrender: Missed Opportunities, Little-Known Near-Disasters, and Modern Memory,” Diplomatic History 19 (primavera de 1995): 227–73.
12 Ver Robert J. C. Butow, Japan’s Decision to Surrender (Stanford, Calif.: Stanford University Press, 1954), 183; também 205.
13 Bernstein, por sua vez, afirma que o bombardeio, para ter qualquer efeito imediato, teria de ter sido combinado com a entrada dos soviéticos na guerra (em 8 de agosto) e com mudanças de alianças no alto oficialato japonês — sendo assim uma condição necessária mas não suficiente para que a rendição fosse obtida em 14 de agosto. Mesmo assim, ele acredita, como eu também, que a rendição provavelmente poderia ter sido obtida depois, antes da invasão de Kyushu, planejada para 1 de novembro de 1945, sem nenhum uso da bomba, em um de dois cenários; ver Bernstein, «Understanding the Atomic Bomb and the Japanese Surrender», 254. Nesse caos, a bomba não era necessária nem suficiente — era irrelevante!
14 Ver Günther Anders, Die atomare Drohung: Radikale Überlegungen zum atomaren Zeitalter (Munique: Beck, 1981). Antes que alguém pense que a obra de Sartre inspirou essas palavras, diga-se que o próprio Sartre admitia francamente a influência de Anders em seu pensamento.
15 Ver os oito capítulos que constituem a seção intitulada «Sobre a bomba e sobre as causas da nossa cegueira diante do Apocalipse», in: Günther Anders, Die Antiquiertheit des Menschen, 2 vols. (Munique: Beck, 1980), 1: 233–324.
16 Hannah Arendt, Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (Nova York: Viking, 1963), 287.
17 Günther Anders, Wir Eichmannsöhne: Offener Brief an Klaus Eichmann (Munique: Beck, 1964); citado da edição francesa, Nous, fils d’Eichmann, trad. Sabine Cornille e Philippe Ivernel (Paris: Payot & Rivages, 1999), 50, 54, 65.
18 Ver Dupuy, Petite métaphysique des tsunamis, 93–107.
19 Destruição mútua garantida, conhecida em inglês pela sigla MAD («louco»). (N.T.)
20 Ver Gregory S. Kavka, Moral Paradoxes of Nuclear Deterrence (Nova York: Cambridge University Press, 1987), 20–21.
21 Ver o excelente resumo desse debate em Steven P. Lee, Morality, Prudence, and Nuclear Weapons (Nova York: Cambridge University Press, 1993).
22 Ver, por exemplo, Bernard Brodie, War and Politics (Nova York: Macmillan, 1973), 392–432.
23 Em inglês, a expressão é to live on borrowed time, literalmente «viver num tempo emprestado», com o sentido de que você está vivendo num tempo que não é mais «seu». É forte, para mim, a tentação de ficar com a tradução literal, porque ela facilitaria a comparação entre tempos diferentes: o tempo da história e esse tempo «depois do prazo», que seria o tempo «emprestado», esse tempo como que de epílogo.
24 Robert S. McNamara, In Retrospect: The Tragedy and Lessons of Vietnam (Nova York: Times Books, 1995).
25 Pensamos particularmente em Zadig (1747), de Voltaire. Philip K. Dick criou uma variação sutil desse tema em seu conto «The Minority Report», de 1956; o filme de 2002 de Steven Spielberg, inspirado pelo conto de Dick, infelizmente não está à altura do padrão que estabeleceu.
26 Nas palavras de Danny Witwer, o investigador do governo no filme de Spielberg, «Se você impedir, não é o futuro.»
27 Pensemos, por exemplo, nos boletins rodoviários cujo objetivo é afastar os motoristas das rotas que ficarão engarrafadas caso os motoristas não sigam os boletins. Ver Jean-Pierre Dupuy, «The Precautionary Principle and Enlightened Doomsaying: Rational Choice Before the Apocalypse», Occasion: Interdisciplinary Studies in the Humanities 1 (15 de outubro de 2009), em https://arcade.stanford.edu/occasion/precautionary-principle-and-enlightened-doomsaying-rational-choice-apocalypse.
28 Günther Anders, «L’homme sur le pont: Journal d’Hiroshima et de Nagasaki», in: Hiroshima est partout, trad. Ariel Morabia com a ajuda de Françoise Cazenave, Denis Trierweiler, e Gabriel Raphaël Veyret (Paris: Seuil, 2008), 168. Deliberadamente modifiquei tanto a tradução francesa quanto o original alemão.
29 Ibid., 171–72.
30 Ibid., 202.