Este texto nasceu da vontade de comentar a resposta que Matheus Araújo deu a meu texto «Tolkien, autor infantil». O próprio Matheus bem notou que meu texto parecia basear-se na pergunta «o que é uma criança?». Aqui começo a falar do assunto. E termino com uma meditação para esta Semana Santa que talvez seja um tanto adulta e transgressora demais para o seu filho pequeno: o perdão existe antes das normas. Se há uma verdade que não cabe no imaginário infantil, é essa. Boa Páscoa!
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Eu tinha 22 anos em 1999, quando foi lançado A ameaça fantasma, o primeiro filme da série de nove que comporia Guerra nas estrelas. Com um grupo de amigos, fui à pré-estreia no Cine Leblon, na expectativa de apenas me divertir, relembrando a série de filmes que eu tinha visto na infância. E qual não foi minha surpresa, primeiro, ao ver que havia pessoas fantasiadas de jedis, de stormtroopers, e pelo menos um Darth Vader — o qual começou a duelar com um dos jedis na fila do cinema, em plena Ataulfo de Paiva, diante de Monzas, ônibus, e Peugeots 206.
Não apenas aquilo me pareceu muito esquisito, como eu ainda pensei: se alguma menina de vinte anos aparecesse vestida de Barbie e confessasse sua adoração pela Barbie…
Mal sabia eu que já existia todo o universo dos cosplayers, e que a minha hipótese já estava mais do que confirmada — talvez não com a Barbie, mas certamente com a Sailor Moon.
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Não sei nada sobre o mundo da Barbie, e menos ainda sobre o mundo da Sailor Moon, mas me impressionava (e me impressiona) a persistência desse imaginário infantil em adultos. Sim, porque muitas vezes aquelas pessoas adquiriram independência financeira, passaram a morar sozinhas, se casaram, e até tiveram filhos. A pergunta «Mas por que esse imaginário infantil?» permanece.
A única hipótese que eu poderia oferecer, de cara, é que os filmes e livros «adultos» muitas vezes parecem apenas mostrar a degradação; e, por melhores que sejam como obras de arte, podem também compor um ambiente no qual você não consegue respirar por muito tempo. Talvez Euphoria seja a melhor série produzida hoje, mas eu mesmo, por saber que um dos principais motivos para gostarmos de uma obra de ficção é gostarmos de estar dentro do mundo criado por ela, não gostaria de só ter similares de Euphoria para assistir. A minha vida pessoal é bastante pacata: se os personagens de Euphoria usam drogas, vendem pornografia da internet, mentem para a polícia, bem, meus pecados publicáveis estão mais para ter tomado vinho durante a Quaresma.
(Mas não me sinto melhor do que eles por isso; sei que, como eles, posso ser igualmente viciado no desejo.)
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O desejo de querer preservar-se vai direto ao encontro do sentimento que deu origem à própria cultura «infantil» que surgiu na Europa no século XVIII, junto com outras coisas que hoje achamos totalmente «normais» mas que são invenções que causariam muito estranhamento nas pessoas dos séculos anteriores. A «infância» é uma dessas invenções, e a outra, que pretendo discutir em outros textos (não necessariamente na newsletter, mas certamente em meu perfil no Instagram) é o casamento por amor.
Veja que não estou dizendo — esse é o ponto mais importante — que a infância por si não existia, nem que literalmente ninguém se casava por amor. Estou dizendo que surgiu um ideal na cultura, um critério, chamado «infância», e outro critério, que foi o amor como base do casamento.
Esses temas não são misteriosos para quem fez um bom curso de Letras, de História, de Psicologia. Mas, se você nunca pisou numa universidade, talvez agora esteja até um pouco nervoso, descobrindo que os pressupostos da sua imaginação não estavam presentes nem na filosofia grega, nem talvez explicitados na Bíblia, mas foram propostos, discutidos, e adotados pela Europa do Iluminismo.
Ouso dizer: o que o conservadorismo de hoje deseja, essencialmente, é preservar os ideais dos séculos XVIII e XIX. Outro grande ideal do século XVIII, por exemplo, é a nação. A nação como algo maior do que a monarquia, a nação como algo expressado antes de tudo no povo, etc.
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Talvez o leitor já tenha ouvido falar do livro Teoria dos sentimentos morais, que o iluminista escocês Adam Smith publicou em 1759, dezessete anos depois de seu clássico mais conhecido, A riqueza das nações. A Teoria faz parte de um movimento cultural daquele século conhecido como «sentimentalismo», e que consiste não, como seu nome poderia sugerir, numa dieta de água com açúcar, mas no «cultivo de sentimentos elevados» — é um pouco difícil traduzir o adjetivo fine da expressão «cultivation of fine feelings».
Na minha dissertação de mestrado, associei esse cultivo a histórias de perseguição da vítima inocente, porque não há nada mais nobre do que não sucumbir a uma acusação injusta, a uma perseguição injusta, e ainda guardar a serenidade. Quis mostrar que esse é um ideal cristão, que não existia na Ilíada nem na Odisseia. Desse «sentimentalismo» vêm as histórias de amantes perseguidos, de moças que preservam sua virtude mesmo assediadas pelos poderosos, como o próprio patrão — esse, aliás, é o enredo do chatíssimo Pamela, or Virtue Rewarded, de Samuel Richardson, que menciono por ter sido o romance favorito de… Karl Marx. No livro, a empregada que resiste ao patrão acaba se tornando esposa.
Ao movimento «sentimentalista» está associada a ideia de casar-se por amor. O século XVII já tinha visto o movimento do «casamento de companheirismo» («companionate marriage»), cujo slogan era «mais do que esposa, companheira» («a companion, not just a wife»), porque, enfim, o casamento era essencialmente uma aliança de trabalhadores em nome da preservação e da multiplicação do patrimônio. Era uma decisão prática. Era esse casamento, aliás, que era «a base da sociedade», e não faltaram conservadores que dissessem que, se o amor era o critério para o casamento, então o que impediria o divórcio? E, em última instância, o que impediria o colapso da sociedade?
Porém, os conservadores parecem estar aí para serem devidamente tratorados. No fim do século XVIII, o amor como critério para o casamento já não é tão incomum. O dilema da nova situação é explorado da maneira mais evidente em Orgulho e Preconceito (1813), de Jane Austen: Elizabeth Bennett só aceita casar-se por amor, só aceita casar-se segundo os mais altos ideais, ao passo que sua amiga Charlotte, cuja aparência não lhe permite o luxo de tanto idealismo (e essa é uma das ironias que Austen deixa para o leitor), percebe que suas opções concretas são uma solteirice pobre e humilhada ou o casamento com um homem desinteressante, mas que, enfim, vai assegurar-lhe uma posição nada desprezível.
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Os parágrafos anteriores quiseram dar uma ideia do imaginário que se formava naquela época. A nobreza de sangue deixava de ser importante; importavam a nobreza de espírito, os sentimentos elevados, a capacidade de viver segundo um ideal, a possibilidade de encontrar um companheiro que fosse uma alma gêmea, porque a vida, a partir daquele momento da história humana, estava aberta. Seus pais muito provavelmente tinham tido a mesma vida que seus avós, mas você já não queria ter a mesma vida que seus pais: a vida, agora, era uma aventura.
Enquanto tudo isso acontecia, também surgia a idéia de infância. Muito, mas muito resumidamente, ela vem do seguinte: quando Gutenberg inventou a imprensa no século XV, também inventou a indústria do livro. Surgiram os primeiros romances em formato moderno, escritos para um público anônimo. Surgiu a ideia de que era importante que todos soubessem ler, e a educação infantil ganhou força. Com o tempo, as crianças começaram a ser separadas por idade. E assim também se difundiu a percepção de que, realmente, as crianças não eram adultos em miniatura, que uma criança de seis anos era bem diferente de uma criança de dez, etc.
(Insisto: não estou dizendo que «ninguém tinha percebido isso antes»; a infância já era conhecida nos mosteiros católicos que mantinham escolas. Estou falando do momento em que certas ideias se impõem como critérios na cultura geral.)
Junte tudo isso com o «sentimentalismo» e você chega à ideia de incutir nas crianças sentimentos elevados, edificando-as, preservando-as o máximo possível de tudo aquilo que é considerado baixo e vil. Assim você tem a invenção da «infância» e a elaboração de livros especificamente para crianças.
Assim, o que define a cultura infantil, a literatura infantil, não é a ausência de complexidade, não é o fato de haver um maniqueísmo, com bem e mal totalmente separados e antagônicos (esse é um traço da cultura de adulto, também; basta ver as eleições), mas o fato de que certos temas são deliberadamente excluídos, temas ligados em particular ao sexo e a certos níveis de crueldade.
Aqui você encontra o nascimento da preocupação que existe ainda hoje de «preservar os filhos». Os pais querem saber se uma obra é apropriada; a escola seleciona obras apropriadas. Essa preocupação nasce aí, no século XVII. É uma preocupação iluminista: as crianças têm de ser educadas com obras nobres ou, pelo menos, «inofensivas», isto é, em que a princesa se case com o príncipe, e talvez até troque uns beijos com ele, mas não mais; em que o herói pode ser preso, e talvez até seja açoitado, mas não sofrerá, por exemplo, tortura nos genitais.
Na Inglaterra, especialmente, tudo isso ainda se juntou com a pudicícia vitoriana, que quis ver nas mulheres seres angélicos, sem desejos sexuais. Se isso teve a vantagem de permitir que, pela primeira vez na história humana, uma mulher se sentisse mais à vontade para recusar sexo ao marido (o que antes era seu dever conjugal, e lembremos que o marido não era, necessariamente, alguém que ela tivesse algum dia desejado), e fizesse com que o próprio marido quisesse refrear-se, por outro lado essa pudicícia levou à invenção do vibrador como dispositivo terapêutico, e levava respeitáveis senhoras a receber «massagens pélvicas» de médicos, as quais lhes proporcionavam, digamos, a mesma catarse curativa que o vibrador.
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Mesmo tendo começado a publicar décadas depois, um autor como o inglês J.R.R. Tolkien ainda participa do projeto de escrever uma «literatura infantil» voltada para suscitar sentimentos nobres nas crianças e mantê-las bem longe de certos temas. Assim, quando eu digo que Tolkien é um «autor infantil», não estou dizendo que ele seja ruim, que seja simplista, que O senhor dos anéis seja uma espécie de Teletubbies com elfos; pelo contrário, talvez tenha sido o ponto máximo e jamais superado de toda a literatura infantil, o que está muito longe de ser pouco.
Mas, como o escândalo pode ser grande, vou me repetir: estou dizendo que «literatura infantil» é um gênero que, em seu projeto mesmo, exclui certos temas, e tenta manter-se «adequada» a uma certa concepção de inocência.
Este meu texto aqui nasceu como uma explicação provocada por uma contestação feita por Matheus Araújo a outro texto que publiquei no Instagram. Na contestação que ofereceu a meu texto original, Matheus trouxe algumas frases de Tolkien que desmentiriam a tese que propus ali de que não apenas Tolkien escreveria para crianças como sabia que escrevia para crianças. Matheus, porém, divide sua contestação em duas partes, uma delas se referindo à posição de Tolkien quanto aos contos de fadas; como esse não é o tema aqui, e falar da apropriação literária dos contos de fadas seria uma digressão desnecessária, vou me ater à segunda parte, comentando três citações do próprio Tolkien trazidas por ele.
Um é uma continuação para O Hobbit, que recém terminei após doze anos de trabalho (intermitente). Receio que ele seja três vezes maior, que não seja para crianças (embora isso não signifique que seja completamente inadequado).
— Carta a Naomi Mitchison, 18 de dezembro de 1949
A «continuação» citada é O senhor dos anéis. Não vejo como o trecho possa contestar ao menos o que expliquei mais longamente neste texto: Tolkien continua preocupado com a «adequação» do texto para crianças.
Minha obra escapou do meu controle e produzi um monstro: um romance imensamente longo, complexo, um tanto amargo e muito aterrorizante, bastante inadequado para crianças (se é que é adequado para alguém)...
— Carta a Sir Stanley Unwin, 24 de fevereiro de 1950
Se Tolkien chega a dizer que o romance é «bastante inadequado para crianças», é precisamente porque essa preocupação está em sua mente. Se, na cabeça de Tolkien, o critério para o romance não ser mais «adequado para crianças» é porque ele já passou a ser «um tanto amargo e muito aterrorizante», então, de fato Matheus tem razão em dizer que Tolkien não acreditava estar escrevendo O senhor dos anéis para crianças, embora seu texto dê a entender que ele sabia muito bem que a expectativa fosse de um livro para crianças, e embora, também, eu duvide um pouco do próprio Tolkien aqui.
Mas o interessante é que a terceira citação trazida por Matheus Araújo parece mais bagunçar do que esclarecer a questão:
Pensei muito mais a respeito da questão antes de iniciar a composição de O senhor dos anéis; e esta obra não era especialmente voltada às crianças ou a qualquer outra classe de pessoas, mas a qualquer um que apreciasse uma história longa e emocionante, do tipo que eu mesmo naturalmente aprecio [...]. Não estou especialmente interessado em crianças, e certamente não em escrever para elas: sim em dirigir-me direta e expressamente àqueles que não conseguem compreender a linguagem adulta.
— Carta a Walter Allen, abril de 1959
«Aqueles que não conseguem compreender a linguagem adulta» mas que não seriam… «crianças»? Quem seria então esse público almejado por Tolkien?
Continuo pensando que, como O senhor dos anéis preserva seus leitores do contato com diversos temas ligados a sexo (e também ao matrimônio) e a certos níveis de crueldade, o romance continua sendo voltado para… crianças.
E «crianças», que fique bem claro, não simplesmente no sentido de pessoas muito jovens, mas de pessoas com certa inocência, uma inocência que se aproxima da ingenuidade.
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Inevitável responder a pergunta que fica então na cabeça do leitor: mas então literatura «de adulto» seria simplesmente algo que trate de certos temas? Por esse critério, que também é o da lei, sim. Artisticamente, poderíamos ainda acrescentar: a literatura de adulto traria um tratamento adulto de temas adultos.
Agora, no mero aspecto da divisão de temas, até hoje um pai conservador gostaria de preservar seu filho (e talvez ainda mais sua filha, por adotar a crença vitoriana de que as meninas são mais puras) tanto dos vendedores de pornografia na internet quanto do respeitabilíssimo romance Madame Bovary, em que Emma é convencida por seu novo amante a fazer sexo numa carruagem em movimento, «porque é assim que se faz em Paris».
No Instagram, cheguei a fazer uma lista brevíssima de grandes obras canônicas que os pais leriam mas não dariam para os filhos:
— Enciumado, um homem estrangula a própria esposa: Otelo, de Shakespeare.
— Um homem prega a diferença entre o sexo e o amor, ficando dividido quando percebe ter sentimentos particulares por uma mulher: A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera.
— Uma menina de quinze anos é estuprada pelo próprio marido na noite de núpcias: A amiga genial, de Elena Ferrante.
— Uma mulher se prostitui, vende o cabelo, vende os dentes, tudo para pagar uma família de trambiqueiros que diz tratar sua filha como uma princesa: Os miseráveis, de Victor Hugo.
— Um homem é acusado de matar o pai e dormir com a mãe: Édipo rei. (Aliás, toda a mitologia, na versão sem filtro, é totalmente inadequada para crianças.)
— Um padre recebe de Satanás o dom de enxergar os pecados dos outros, e se depara com uma jovem de 16 anos que já fez um aborto e cometeu aquilo que a justiça chamaria de «homicídio culposo»: Sob o sol de Satã, de Georges Bernanos (o grande católico desta breve lista).
Etc. Pode brincar de pensar no enredo inadequado para crianças de quase todas as obras canônicas. Todo o Dostoiévski? Talvez…
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Agora, para mim é inevitável pensar num romance repleto de personagens virtuosos e que é profundamente adulto; um romance que, como digo há bons anos, deveria ser lido por toda jovem conservadora que sonha com seu casamento: Middlemarch, publicado por George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans) entre 1871 e 1872 — e considerado por Virginia Woolf «um dos poucos romances para adultos escritos na literatura inglesa».
Enquanto as histórias para crianças terminam no «e foram felizes para sempre» (afinal, como foi a vida do casal Elizabeth Bennett & Mr. Darcy?), Middlemarch trata de temas varridos para baixo do tapete em todas as conversas conservadoras internéticas: o tédio no casamento, e mais do que o tédio; as escolhas absolutamente virtuosas que levam a resultados mais do que amargos. Estamos ainda hoje acostumados a textos que contrapõem o amor ao dever, como Romeu e Julieta; mas o que acontece quando dois adultos casam-se com total liberdade e tudo dá errado?
Você consegue imaginar uma continuação de O senhor dos anéis em que Arwen e Aragorn se perguntam se realmente escolheram bem um ao outro? Em que ficam entediados e começam a se interessar por outras pessoas? Em que o cumprimento do dever de fidelidade vai deixando-os amargos, e eles precisam lutar contra isso? O casamento por amor de Arwen e de Aragorn não apenas é totalmente moderno por ser por amor, como ainda é um belo exemplo de ficção infantil por deixar de lado os problemas da intimidade.
Ou ainda, você consegue imaginar uma continuação de O senhor dos anéis em que Arwen e Aragorn eles acolhem uma criança que foi violentada e precisa recuperar a confiança nos outros? Em que Aragorn um dia bebe um pouco mais e quebra tudo? Em que aquela linda e poética magia dos elfos exibe suas raízes em sacrifícios humanos e animais? (É nesses sacrifícios que estão as raízes das religiões arcaicas; elas não são privilégio do lado malvado de O senhor dos anéis.)
Não me parece que Tolkien tivesse em mente as raízes sangrentas das religiões arcaicas; nem me parece que ele quisesse investigar o «outro lado» do casamento por amor. A ausência desses temas é parte de um projeto; um projeto talvez já adotado por inércia; um projeto que, na década de 1950, não precisava mais ser explicitado.
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Existe no Brasil a perpétua tentação de dar a todo texto uma conclusão retórica: «e portanto devemos fazer isto». Assim, eu terminaria este texto, já longo para os padrões da newsletter, com a recomendação de que o leitor trocasse seu Tolkien por George Eliot, porque o mundo adulto é mais vasto, porque com George Eliot fica difícil dizer que estou propondo que a nobreza mais cavalheiresca seja trocada pela mera degradação, porque a literatura adulta permitiria que o leitor verbalizasse alguns aspectos da própria vida que permanecem misteriosos — afinal, onde há magia, há mistério, e o Logos é uma desmistificação que leva a um assombro mais adulto.
Porém, prefiro encerrar tentando descrever um mistério análogo a esse que move a nós, brasileiros, a tantas conclusões retóricas, que é uma espécie de ansiedade, igualmente infantil, mas não num bom sentido, por uma norma definitiva, por decisões tão acertadas que, como flechas, nos conduzam diretamente ao centro do alvo. É uma ansiedade que define o que eu mesmo chamo há algum tempo de «mentalidade de condado», ou simplesmente de «condado».
Uma imagem poética como «o condado» pode ser suficientemente clara sem que seja definida, mas aqui creio não ter escapatória, e preciso dizer que aquilo que define esse «condado» é a necessidade de segurança intelectual. Não a necessidade de você mesmo manter-se tranquilo mesmo que não tenha uma resposta para um problema, às vezes grave, mas a necessidade de acreditar que alguém, ali dentro do condado, já tem uma resposta pronta e perfeita para todos os problemas, a qual sempre segue a mesma fórmula, tão correta quanto inútil: se você tivesse feito o certo, esse problema não existiria.
Mas, como diria Nelson Rodrigues no livro eminentemente adulto que é A menina sem estrela, «o pecado vem antes da memória». Não houve o momento de maldade deliberada em que dei um passo para fora do condado e perdi a inocência. Não vi a maçã na árvore, meditei, e fui pegar. Não houve aquele momento em que, conscientemente, «sucumbi». Antes mesmo que de ter consciência clara, eu já estava agindo em função de traumas, já estava reagindo a alguma maldade, e assim cometendo as minhas próprias maldades. Só ter a consciência do que eu estou fazendo já é um grande passo — mas não para dentro do condado das coisas certinhas, e sim para fora de um modo infantil (no mau sentido, não no mero sentido de exclusão de certos temas) de desejar e de agir, isto é, um modo em que não temos lá muita consciência da origem das nossas ações e reações.
«Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque, agora, vemos por espelho em enigma; mas, então, veremos face a face; agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou conhecido» (1 Cor 13, 11-12).
Vestir-se como jedi em plena Avenida Ataulfo de Paiva, fora do carnaval e sem a menor ironia, parece indicar o desejo de «ser conhecido» numa versão mais perfeita, mas que é uma idealização falsa. Não creio que seja preciso explicar, mas posso dizer que é falsa porque é parcial, pressupondo uma qualidade que sobrevive às impurezas, uma mentalidade de resistência, em que o perdão até existe, mas não está no centro — e não está, nessa mentalidade infantil, talvez por causa da preocupação em inculcar nas crianças a diferença entre o certo e o errado; a norma parece vir antes do perdão.
Mas — se me permitem terminar com um suspense digno da Semana Santa — Cristo na cruz perdoou-nos porque «não sabemos o que fazemos», e em seguida «entregou o espírito», isto é, soprou, como Deus no Gênesis, dando vida à nova criação.
Saber-se culpado desde a fundação do mundo, mas perdoado desde a criação — não sei se isso cabe no imaginário infantil. Porém, se você já admitiu o tédio na sua vida, e todas as abominações que já cometeu por puro tédio ou por tristeza; se sabe que está fugindo quando está fugindo; se já viu que as decisões que pareciam as mais virtuosas levaram aos piores resultados; se já conheceu a violência e o ressentimento, sabendo que fez X ou Y só para contraria alguém; se agora mesmo se sente perdido num mato sem cachorro, em que toda a conversa sobre virtudes e submeter-se às regras parece fazer tanto sentido quanto um sapato 34 num pé 43… Então a ideia de ter sido perdoado desde sempre é de fato uma boa notícia, um «evangelho», é o cachorro que faltava no seu mato, mostrando o caminho da contrição.