Infelizmente, uma veneranda tradição do catolicismo de direita já foi o antissemitismo. Já conheci católicos que se apressavam em defender o marechal Pétain e a expulsão dos judeus da península ibérica («eles tiveram um ano para sair» — ouço a voz até hoje dizendo essa frase). Georges Bernanos escreveu um livro para defender Édouard Drumont, líder antissemita, com o título (verdadeiro precursor da lacração) La Grande peur des bien pensants. O título é difícil de traduzir: o grande medo… dos bem-pensantes? Dos isentões? Do establishment? Igualmente difícil de traduzir (nem pretendo tentar) é a primeira frase, famosíssima: J’ai juré de vous émouvoir — d’amitié ou de colère, qu’importe?. Bernanos depois condenou violentamente o franquismo e a colaboração, junto com Pétain. E, segundo Sébastien Lapaque, foi no Brasil, frequentando o mosteiro de são Bento do Rio de Janeiro, que Bernanos deixou o antissemitismo — porque soube de como o mosteiro ajudou a trazer para o Brasil o dinheiro dos judeus europeus.
Toda semana escuto um judeu francês, Alain Finkielkraut, que já declarou que, apesar de ter sempre na cabeceira O caminho de Cruz das Almas, coletânea de artigos de Bernanos, não sentiu amitié nenhuma quando leu La Grande peur, mas sim colère. Finkielkraut, filho de imigrantes poloneses, profundamente conectado com a Segunda Guerra, fala com frequência do antissemitismo que existe ainda hoje na Europa, fala das áreas da região da Île-de-France (o entorno de Paris) onde não há mais judeus, e um dia mencionou que em Malmö, na Suécia, haveria o objetivo de tornar a cidade Judenfrei.
Tenho uma pergunta.
O antissemitismo europeu velho de guerra, até onde sei, está muito ligado a um anti-«dinheirismo». Judeu é o cara dos empréstimos, é o Shylock de O mercador de Veneza (em que Shakespeare exibe o antissemitismo dos personagens ao mesmo tempo em que denuncia esse antissemitismo, porque todos eles são tão venais quanto Shylock). O antissemitismo de um Bernanos estava muito ligado à ideia de que «existem valores maiores do que o dinheiro» e a seu nacionalismo (um nacionalismo muito peculiar, que ele apresenta como o contrário do racismo), numa atitude do tipo «não podemos deixar que a nação seja controlada por financistas». A velha ideia europeia de que «os judeus mataram Cristo» me parece mais um pretexto; na verdade, o problema daqueles reaças era o suposto dinheirismo judaico.
Hoje, porém, o antidinheirismo nunca esteve tão na moda. Pelo menos duas séries de TV se baseiam integralmente no ódio aos ricos: Billions, em que Paul Giammatti faz o papel de promotor público que caça bilionários (e devo confessar que, com o fim da série em duas semanas, sofrerei não pouco), e The White Lotus, que nos convida a rir da falta de noção dos ricaços. Temos um fascínio dostoievskiano pelos ricaços, vemos que eles se guiam por outros padrões, sentimos ódio por eles e continuamos seguindo suas vidas como aquela pessoa que cria uma conta anônima só para seguir morbidamente o blogueiro que ela afeta desprezar. Contudo, hoje ninguém ousaria recordar que o bilionário Mark Zuckerberg é… judeu. Entre os bien-pensants do nosso tempo, tudo bem odiar os ricos, mas só porque eles são ricos, por causa da igualdade, viva Alexandra Ocasio-Cortez, etc.
(O que me lembra que ontem fomos parados na rua em Copacabana por uma senhora que queria ver nossa cachorra, Ágatha. Daí ela disse que tinha uma cachorra chamada Heloísa Helena, a qual já tinha dezesseis anos.)
Dado o contexto, enfim pergunto: se o antissemitismo foi dissociado do antidinheirismo, então o antissemitismo de hoje, que parece associado à causa palestina, ao sentimento anti-Israel, é o mesmo de antes, ou é diferente?
(Será que os gilets jaunes que insultam Finkielkraut são os últimos representantes da tradição antidinheirismo & antissemitismo?)
Pergunto porque não consigo ver nos imigrantes muçulmanos da Europa herdeiros dos colaboracionistas franceses da Segunda Guerra, embora consiga ver, inclusive no Brasil, e com grande facilidade, um certo espírito de colaboracionismo — penso especificamente nos grandes jornais publicando informes publicitários do Partido Comunista Chinês, nos amigos do governo chinês que no entanto estão horrorizados com a «extrema-direita» brasileira.
Consigo enxergar uma afinidade entre direitistas católicos brasileiros e uma certa visão do Islam, em que os muçulmanos aparecem como verdadeiros defensores dos bons valores sociais, como pessoas que levam a sério seus preceitos da maneira como nós, cristãos ocidentais decadentes, não levamos. Porém, esses mesmos direitistas seriam os primeiros amigos de Israel. Seria preciso procurar com vontade entre os católicos mais tradicionalistas aqueles que ainda preservam um discreto antissemitismo, e mesmo esses seriam mais fortemente anti-islamistas.
Penso ainda na grande piada de Michel Houellebecq em Submissão: a esquerda francesa prefere aliar-se a um partido muçulmano, levando a uma França submetida à lei islâmica, a permitir que a direita assuma a presidência. No romance, os judeus da França — reproduzindo um movimento que já ocorre na famosa vida real — começam a se mudar para Israel. Para mim, é impossível não pensar nessa piada porque me parece que, para as pessoas de esquerda, o antissemitismo da própria esquerda é apenas um problema lamentável, mas ainda humano, ao passo que o bolsonarismo continua sendo deploravelmente desumano. A esquerda prefere o antissemitismo declarado de pessoas supostamente sérias e respeitáveis ao bolsonarismo de tias do Zap que vivem no automático. Là, ça me fait un certain peur.
E, falando em medo, eu poderia terminar numa digressão, mas logo me ocorre que não seria uma digressão: a violência extrema acaba revelando que de fato a civilização — aqui no mero sentido da civilidade que garante a paz e permite que tenhamos vidas criativas, amorosas, etc. — está sempre por um fio. Nem tão no fundo, a ideia de uma democracia baseada em consensos frágeis que se sucedem de maneira imprevisível, numa tensão perpétua, não nos agrada muito. Queremos encontrar um inimigo comum, e queremos esse inimigo com tanta pertinácia que podemos mudar de pretexto, mas continuamos tendo nosso alvo de eleição, nosso povo eleito.
Para parte da esquerda, não há pecado maior que uma minoria que não é uma vítima. Se os judeus tivessem sido dizimados pelo Holocausto, estariam chorando os mortos até agora. Porque não só sobreviveram, como criaram um país, prosperaram, tem um cultura orgulhosa e vibrante, há um esforço para colar no judeu as piores acusações dos tempos atuais, algumas claramente querendo associá-lo aos algozes nazistas: genocidas, colonialistas, racistas, promotores de apartheid.