019 Aquela vez em que quase fui fisicamente linchado
Na PUC-Rio, em 1997; isto é parte do ensaio «A margem direita»
Em 2018, o editor Pedro Fonseca, da Âyiné, perguntou-me se eu não queria escrever sobre a nova direita. Imediatamente pensei que não: precisava terminar o doutorado, a biografia do Bruno Tolentino (que, em 2021, ainda não chegou nem na metade). Mas comecei a escrever. E, recentemente, voltei ao tema, para terminar o ensaio «A margem direita» (cujo título é inspirado em «Da outra margem», de Alexander Herzen. Se tudo der certo, conseguirei terminar o ensaio até a semana que vem, depois da pré-estreia carioca, no dia 22, do documentário «Nem tudo se desfaz», de Josias Teófilo, em que apareço por alguns segundos, comparando a nova direita ao homem do subsolo de Dostoiévski.
Pretendo estar na pré-estreia carioca, mas devo começar o tratamento para meu pós-covid perpétuo e talvez o passaporte da vacina impeça minha presença. Dia 22 é o dia da minha segunda dose, e o médico talvez me diga para postergar a segunda dose até o fim do tratamento. Como o que tenho a dizer sobre o pós-covid é que hoje entendo as pessoas que aceitam qualquer coisa para serem curadas, «operações espirituais» feitas por médiums, idas ao México para tratamentos experimentais, etc., então realmente não sei o que será de mim. (Há, também, a barazyleira possibilidade de que ninguém esteja conferindo nada.)
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1
Não vi quem me acertou um soco na cara logo depois que o segurança da universidade, a fim de me poupar dos muitos outros socos que meus colegas prometiam, me colocou dentro de um táxi na rua Marquês de São Vicente. Ao escrever estas palavras, me dou conta de que também nunca procurei saber quem conseguiu me esmurrar, e infelizmente não porque eu seja um exemplo de mansidão, mas porque as tentativas de nocaute não tinham terminado: já no dia seguinte o caso da tentativa de linchamento da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro recebia uma nota de Marceu Vieira no Jornal do Brasil, adotando o ponto de vista dos linchadores — o mesmo que viria a ser adotado pela própria direção da universidade alguns dias depois.
Uma parte de mim achava que nosso jornalzinho universitário não teria repercussão nenhuma, porque jornais universitários são o tipo de coisa que as pessoas costumam achar bom que exista, que talvez até conte para o currículo de quem os faz, mas que ninguém realmente lê — ninguém além de outras pessoas que talvez queiram também fazer jornais universitários.
Outra parte sabia que os artigos seriam polêmicos, e tinha algum medo. Naquela época, novembro de 1997, eu e Álvaro Velloso, um de meus colegas da PUC, frequentávamos o Seminário de Filosofia de Olavo de Carvalho. Telefonei para Olavo poucos dias antes da distribuição do jornal para contar o que tínhamos preparado. Falei desse medo. «O medo é mau conselheiro» foi a resposta que ouvi. Guardei a frase.
Sim, o jornal era polêmico, e meu medo era de caras feias, talvez de alguma retaliação por parte dos professores, mas só na forma de alguma ridicularização. Afinal, àquela altura, uma professora já tinha me perguntado, em frente à toda a turma, «em qual século eu gostaria de viver», porque, segundo ela própria, «ninguém mais se interessava por metafísica», e eu aparentemente era esquisito o bastante para me interessar por ela.
Eu não temia, enfim, que Alvaro, e eu, além do nosso amigo Sergio de Biasi, fôssemos sofrer uma tentativa de linchamento por causa de nosso jornalzinho, nem imaginei que os seguranças da PUC, senhores de aparência mansa, pudessem conter as poucas dezenas de alunos que nos cercavam, nos pegavam pelos braços, nos diziam em voz alta e tom imperativo para irmos «conversar nas casinhas», isto é, que passássemos do pilotis absolutamente público para o interior de alguma das pequenas casas da vila dos diretórios, onde poderíamos «conversar melhor».
2
O jornal se chamava O Indivíduo por dois motivos. O primeiro era que nós quatro — faltou mencionar José Roberto de Barros, que teve a ventura de não estar conosco na PUC enquanto distribuíamos o jornal —, apesar de divergirmos muito, simplesmente concordávamos quanto à existência uma realidade objetiva, conhecida pela consciência individual. (Hoje a realidade objetiva voltou à moda por causa do temor das fake news, mas naquela época bater pé contra a mera ideia de que «todo fato é uma construção social» não era muito bem visto.)
Vinte e um anos depois, é claro que eu mesmo poderia discutir essa afirmação por páginas e páginas, até torná-la mais refinada, especificando o que entendo com cada um dos termos, etc. Porém, nosso objetivo era claro: contrapor o individualismo cognitivo, ou mesmo a ideia comum e talvez esquecida de primazia da vida interior, à noção de que o conhecimento seria exclusivamente uma espécie de consenso.
Que jovens de 20 anos tivessem vontade de afirmar essas obviedades no Rio de Janeiro de 1997 deve ser entendido não como prova da maluquice deles, mas como indício do quanto aquela cultura era fechada — lembremos, aliás, que mal existia internet. Leituras de fora do currículo, autores nunca mencionados nos jornais, o encontro de pessoas que destoavam de tudo, tudo isso dava a viva sensação de underground, como se, entre o hedonismo e a burocracia acadêmica, houvesse uma Praga microscópica, mil vezes mais interessante do que qualquer coisa em cartaz na burocracia acadêmica ou jornalística.
O segundo motivo era muito simples. Na PUC havia um grupo chamado «Coletivo Cultural», que para nós representava caricatamente o clichê da minoria barulhenta que pretende representar a famosa maioria silenciosa. Em oposição à langue de bois de quem pretendia inventar consensos, a preocupações que não nos diziam respeito, e à dominação do coletivo, pronto: O Indivíduo.
Aquela primeira edição do jornal trazia um artigo de Sergio de Biasi sobre os limites entre ciência e filosofia; um texto de José Roberto sobre a proposta de parceria civil de Marta Suplicy e sobre outras propostas de leis que lhe pareciam desnecessárias; um artigo de Alvaro Velloso, certamente o melhor da leva, sobre o massacre de Canudos — o Coletivo Cultural havia recentemente coberto de farinha o pilotis de farinha para «protestar» contra o massacre, o que nos parecia fazer tanto sentido quanto protestar contra a queima da biblioteca de Alexandria —; e três textos meus. O mais inofensivo, ao menos politicamente, era um poema calcado em «Memória», de Carlos Drummond de Andrade. Os outros dois, para preservar algo do vocabulário de que gostávamos à época, tirado do místico francês René Guénon, foram os motivos esotérico — a verdade oculta, para poucos — e exotérico — a verdade pública — da polêmica que se seguiu.
Rasgo de uma vez o véu do templo e começo pelo esoterismo.
O Coletivo Cultural, para mim, era «cultural» principalmente em sentido antropológico. Por isso, criei o personagem do antropólogo Cláudio Lévi’s Lee, que descreveu, ao estilo de outro grande antropólogo, Agamenon Mendes Pedreira, a máxima expressão daquela «coletividade»: a «Cambralha». Nas palavras do ilustre Lévi’s Lee, na Cambralha «os alunos organizam performances pela universidade, pintam faixas e perguntam às pessoas: “esquerda ou direita?”. Se o coitado diz que é de direita, pregam-lhe atrás um adesivo dizendo “neonazifascista”; se não sabe, chamam-no “alienado” aos berros histéricos, obrigando-o a comer um monte de cultura ao molho pardo». (1)
O talento do antropólogo não roçava o de Agamenon, mas a piada, infelizmente, não ficou no texto. Não esquecerei de ouvir, na PUC, os gritos de «QUEM É ESSE CLÁUDIO?», seguidos de bufadas e rosnadas. Quando fomos levados para a sala de alguma autoridade universitária (sinceramente não consigo me lembrar de quem era, embora me lembre de um ambiente em fórmica bege que era a típica tentativa de bom-gosto de uma administração ciosa dos custos), um dos meus potenciais linchadores reclamava que Cláudio tinha muito injustamente usado elementos reais da Cambralha em seu trabalho de campo. Suando e apontando para a parte das performances, ele bradava: «ISSO É REAL!».
Depois desse diálogo em que o objeto de estudo foi alterado pela presença do estudioso, lembro de ter explicado a um segurança que precisava fazer uma prova de segunda chamada no departamento de Letras, e fui escoltado até lá. Fiz a prova, entreguei-a na secretaria, e, ao ouvir de novo os gritos no pilotis, lembro também de ter pensado que era «melhor apanhar como um homem do que fugir como um covarde». Desci, pois, para o pilotis, mas outro segurança, notando minha vocação kamikaze, salvou-me de minha própria temeridade, mandando que eu fosse embora «imediatamente». Foi assim que ele me levou até um táxi, mas não conseguiu impedir o único soco na cara que levei até hoje.
Nem por isso deixo de ser grato ao segurança, cujo nome, confesso, também nunca procurei saber. Só fui voltar à PUC semanas depois, para cancelar minha matrícula.
3
Faz sentido falar em motivo «exotérico» porque o episódio foi parar na imprensa nas semanas seguintes, embora todo o interesse por meu heterônimo tivesse dado lugar ao interesse pelo ortônimo, autor do último daqueles três textos, intitulado «A negra noite da consciência». O artigo, devo admitir, já tinha causado algum furor na própria PUC naquele dia 19 de novembro de 1997, ao colocar-se contra a «Semana de Consciência Negra» organizada pela PUC. O leitor certamente já entendeu que a má-fé fez com que essa oposição trouxesse a acusação de racismo.
O artigo repetia as velhas platitudes sobre a «democracia racial brasileira», platitudes aliás repetidas na mesma época pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Sua motivação, porém, não era tanto denunciar o que hoje é conhecido como «racismo reverso» quanto indagar sobre a americanização da questão racial brasileira.
(Vinte e quatro anos depois, preciso realmente perguntar se a identity politics americana dominou os termos da discussão no Brasil?)
Nos anos 1990, ainda me parecia haver margem pública para alguém se contrapor à afirmação de diferenças raciais enfatizando a igualdade da espécie. Penso no judeu Shylock, de O mercador de Veneza, que se pergunta (Ato III, cena 1): «Então um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões?» Na mesma linha, a velha linha do «somos todos iguais», eu dizia no artigo: «Querer falar em uma consciência negra, como se ela fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido».
Já no dia seguinte ao da confusão da PUC — dia de Zumbi, o que ignorávamos sinceramente, até porque na época ainda não era feriado — saiu a primeira nota na imprensa. Mantendo a referência teatral, penso no jornalista Amado Ribeiro, da peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Existiu na famosa vida real um jornalista Amado Ribeiro, e diz uma lenda que Nelson teria telefonado para ele para avisar: «Amado, estou criando um jornalista aqui numa peça, um jornalista bem canalha, e vou colocar o seu nome!» Na peça, realmente, Amado Ribeiro é o mestre da capitalização do instinto persecutório, inventando acusações contra um inocente apenas para vender jornais.
Poucos dias depois, nada menos do que o Jornal Nacional praticava a arte do Ribeiro rodrigueano dentro daquele tempo exíguo que é uma limitação intrínseca ao formato televisivo — afinal, a TV nunca se distinguiu como o formato mais propício à atenção demorada e concentrada. Em sua matéria sobre o ovo da serpente da PUC-Rio, o jornal exibia na tela aquela frase do artigo citada há pouco, mas destacando em amarelo: «falar de consciência negra [...] é realmente estúpido».
A própria direção da PUC-Rio, contagiada pelos linchadores, enviou uma carta aos alunos reprovando O Indivíduo, acusando-o de promover o «individualismo egoísta» e, muito mais seriamente, de «beirar os limites do delitivo». Como racismo é crime no Brasil, fizemos um boletim de ocorrência contra os alunos que tentaram nos linchar, e entramos na justiça contra a PUC, para que ela não pudesse tomar medidas administrativas contra nós. Ganhamos.
A polêmica ardeu por mais algumas semanas. Os jornais de São Paulo, a Folha e o Estadão, tiveram a cobertura mais equilibrada, com a ressalva de que falo em equilíbrio psíquico em contraposição a instinto persecutório. A imprensa carioca, em geral, permaneceu dentro de O beijo no asfalto.
Ao nosso lado tivemos nomes como Miguel Reale, José Oswaldo de Meira Penna, Leopoldo Serran, e o incontornável Olavo de Carvalho, que reuniu boa parte dos textos em seu O Imbecil Coletivo II.
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1 «Qu’est-ce que c’est Cambralha?» In: O Indivíduo. Rio de Janeiro, 1997, p. 12.