«As horas de Katharina», décadas depois
Quem estiver em São Paulo não deve perder o evento na É Realizações
Se eu estivesse em São Paulo, certamente iria nesta quinta (30/03) à É Realizações para o lançamento da nova edição de As horas de Katharina. Espero que Jessé Primo esteja na plateia e se manifeste, porque sua ausência entre os excelentes expositores é minha única crítica ao evento.
No meu trabalho com a biografia do Bruno, interrompido primeiro pelo meu doutorado e depois pelo covid (trabalho esse que será retomado, se Deus quiser este ano, este semestre!), comecei formulando uma hipótese que contraria toda a impressão inicial que temos do Bruno Tolentino combativo e anti-universitário.
O que Bruno mais queria era que sua obra fosse lida e tivesse um lugar na cultura. Porém, ele demorou anos para perceber, após sua volta ao Brasil em 1993, que o país tinha mudado mesmo. Ele saiu de um país feudal, de um Rio de Janeiro que ainda tinha algo de capital cultural. Nessa cidade, ele conhecia todos os escritores (o que, aliás, não é difícil; não era naquela época, e não é difícil hoje), e via a literatura era uma grande ação entre amigos.
Aliás, isso tudo é confirmado até pela autobiografia de Nelson Rodrigues. Conhecia as pessoas, pedia favores, trocava elogios. Jorge de Lima ficava maior do que Drummond porque Drummond não tinha se emocionado com o desabamento que, em 1967, matara o irmão de Nelson.
Mas o Brasil estava mudando. Estava ficando universitário. E o universitário é um tipo muito diferente. Não precisa do grande público, porque seu público são seus pares. Não precisa escrever bem — ele até pode escrever bem, mas isso é como o amor nos casamentos antigos, um bônus até bem vindo, mas estritamente desnecessário. O universitário vive no mundo do rigor e da impessoalidade, mas ainda é uma pessoa mais tolerante com os seus — com aqueles que já entende — e que tem, para repetir as palavras de um grande universitário, suas próprias práticas de sociabilidade.
Você poderia querer que uma faculdade de Letras fosse um grande clube do livro um pouco menos freestyle, em que o talento literário — uma certa perspicácia, um jeito para escrever, mesmo crítica — correspondesse ao sucesso. Mas ela não é nada disso.
As universidades começaram a dominar a vida literária no Brasil. Começaram a dominar os suplementos literários independentes. Quem, dentre seus autores, não tem ao menos um mestrado? Por isso, os suplementos literários começaram também a ficar secos. São universitários que se desincumbem da tarefa de falar ao grande público, o qual acharia engraçadíssima — e com toda a razão — a necessidade de demonstrar que um texto fala de coisas que estão no mundo (e não apenas em outros textos).
Mas, como eu disse, a universidade não precisa do público. Isso pode ser bom e pode ser mau. Pode ser bom porque realmente nem toda pesquisa preciosa seria viável se você tivesse de convencer os espectadores do Faustão. Pode ser mau, também, por esse motivo que apontei: uma certa endogamia que leva à esterilidade.
Porém, são os universitários que vão garantir a sua presença e a sua respeitabilidade. Não importa o que o leitor pense da palavra «respeitabilidade». Bruno Tolentino queria ser o mais puro suco de mainstream, e só não foi porque não ganhou coluna em grande jornal e morreu sem entrar para a Academia. Ele escreveu uma grande obra, grande mesmo, e queria ser lido e respeitado.
Seria muito fácil e simplista atribuir essa relativa marginalidade de Bruno Tolentino à influência de Olavo de Carvalho. De Olavo teria vindo a atitude anti-universitária. Mas o problema é: não acreditamos nas críticas que o próprio Bruno fez? Ainda que eu mesmo acredite que ele não as teria feito caso tivesse entendido que as universidades agora dominavam a vida literária brasileira, também não deixo de achar excelente que ele tenha escrito Os sapos de ontem, com seus ensaios introdutórios. O que havia no Bruno combativo não era apenas um ressentimento justo, mas um puro e simples gostar do Brasil que nos fazia muita falta. Ou que me fazia muita falta, depois de um ano e meio em Nova York.
Ao simplismo de «as universidades são malvadas, mataram a literatura» pode perfeitamente corresponder o simplismo de «as universidades são lindas, fora delas só há o horror». Estou dizendo que Bruno teria tomado uma decisão tática de não atacar as universidades. Ele não queria mudar a cultura brasileira. Queria apenas um lugar de destaque nela.
O curioso é que seu livro mais conhecido, As horas de Katharina, foi escrito por sugestão de alguém alheio ao mundo literário: seu primo José Joaquim Dutra de Andrade, valiosa fonte para a biografia. Foi José Joaquim quem sugeriu que Bruno escrevesse um livro «católico». Levou Bruno para Curitiba, e o livro foi escrito ali, entre frequentes saraus em que Bruno testava os poemas perante um público sobretudo feminino. Sim, alguns poemas e muitos temas vêm de antes, das décadas europeias, mas a maior parte parece ter sido escrita ali mesmo, naquela cidade tão segura de si. (Registre-se, a propósito, que José Joaquim é contrário à publicação da peça A Andorinha.)
Assim como A balada do cárcere, As horas de Katharina tem uma história: abandonada pelo namorado, uma mulher vai para um convento, para viver como enclausurada. Após anos de aridez, ela começa a sentir a fugidia presença de Deus. Existe uma analogia clara com uma forma de amor humano, em que a presença do amado é sentida como plenitude, e sua ausência, como o deserto, como «a noite escura da alma»: como viver depois que você conheceu as coisas mais sublimes?
Ainda faltam muitos estudos e ensaios sobre As horas de Katharina. Mas eu mesmo preciso ressaltar, antes de concluir, que esses estudos e ensaios não podem ser cobrados de outras pessoas: somos nós mesmos que temos de escrevê-los. E ainda temos de escrevê-los segundo a tática que o próprio Bruno Tolentino teria buscado: sem hostilizar as universidades, mas enxergando nelas parceiras talvez indispensáveis. Podemos, porém, fazer inveja: se nelas não é necessário escrever bem para ter sucesso, nós aqui podemos tentar inspirar nossos leitores com muito mais liberdade.