041 Como destacar um protagonista
Quase 200 anos depois, você corre o risco de ser seduzido e abandonado por Julien Sorel
O texto abaixo faz parte das notas que venho preparando para o curso Desejo & Orgulho. Uma ideia se tornou comum: a da pessoa mais intelectual, que gosta de ler, cercada por pessoas vulgares e anti-intelectuais. Até talvez a década de 1990, não sei se depois, a principal maneira de destacar um personagem num filme americano de high school seria mostrar que o personagem é mais sensível, tem algum interesse artístico. Ao ler O vermelho e o negro, ficamos tentados a lê-lo assim, e talvez demoremos algumas boas páginas para entender que não é esse o caso…
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Quem quer que venha a abrir um livro a respeito de outros livros provavelmente já se identificou com Julien Sorel. Primeiro ouvimos falar dele pela boca do Sr. de Rênal, que enxerga em Julien o futuro preceptor de seus filhos. Contratar o menino capaz de recitar os Evangelhos em latim é um modo de suplantar o Valenod, seu rival, e, por conseguinte, ser mais admirado pelos habitantes da cidade já o tem como prefeito: a fictícia Verrières, na França, ali para os lados da Suíça. Aliás, na paisagem deslumbrante do Jura, o Sr. de Rênal vê apenas utilidades imediatas: as árvores servem apenas para fazer sombra, ou, na melhor das hipóteses, para dar lucro. Assim Stendhal define em O vermelho e o negro a «máxima que decide tudo em Verrières: DAR LUCRO» (sim, em maiúsculas no original).
O próprio pai de Julien é também serralheiro, alguém que vive do lucro proporcionado por aquelas árvores. O leitor conhece a serraria do Seu Sorel logo após conhecer a nada pitoresca fábrica de pregos do Sr. de Rênal, e, caso tenha alguma familiaridade com o francês, sabe que o tratamento de père Sorel, o «Seu Sorel», indica seu estado de burguês e plebeu, ao passo que o Monsieur de Rênal, o Sr. de Rênal, é um nobre, com o «de» reconfirmando sua posição.
Seu Sorel, pois, flagra o filho Julien lendo em plena serraria. Dá-lhe um cascudo, e o livro, o favorito do rapaz, o Memorial de Santa-Helena de Napoleão, cai no rio Doubs, cuja corrente move as engrenagens das máquinas. Julien, claro, fica possesso de raiva. E em seguida o narrador o descreve: inteligente, vivo, mas franzino, alguém «com mais ligeireza do que vigor».
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Estamos ou não estamos diante de um contraste que, em nosso tempo, continua fazendo seus bestsellers? As jovens Lenù e Lila, em A amiga genial, também são pequenas amantes da leitura cercadas por um mundo grosseiro e tosco, que só pensa na vantagem.
Talvez a leitura — ao menos a leitura de um livro a respeito de livros, a leitura gratuita, a leitura que parece não ter uma vantagem clara, a leitura que não está a serviço da esperteza, a leitura por amor, a leitura apenas porque sim — hoje seja uma atividade de pessoas que já se sentiram ilhas cercadas de vulgaridade. Rory Gilmore, anyone?