092 Indagações argentinas
Como será o próximo capítulo da história do ressentimento e da acídia?
Eu adoraria estar escrevendo este texto em Buenos Aires. Estaria com o iPad num café, tomando uma taça de vinho, passando um frio danado na rua, e não aqui no computador, em casa, no Rio de Janeiro, cidade que parece me expelir, tomando água mineral na garrafa. Eu poderia dizer que meu amor pela França nasceu do meu interesse pela cultura francesa, mas meu amor pela Argentina é totalmente gratuito. Todos os dias, sem exceção, lamento não caminhar da minha casa perto da esquina de Castillo y Thames até o entorno da Plaza Armenia, ou lamento não ir, depois do jantar, escolher um dos trezentos sabores de sorvete de doce de leite na Helados Daniel (que até hoje Priscila e eu chamamos, mesmo cientes do erro, de Daniel Helados), na direção de Villa Crespo.
Com a aproximação das PASO, penso ainda mais na Argentina. PASO é a sigla que indica Primarias, Abiertas, Simultáneas, y Obligatorias. Não são «primárias» como as americanas, porque as primárias americanas são eleições internas de cada partido. As PASO argentinas têm basicamente o objetivo de preparar a eleição geral, deixando de fora quem não tem ao menos 1,5% dos votos e organizando as listas de candidatos. Este ano é de eleição presidencial. As PASO serão dia 13 de agosto, a eleição geral será no dia 22 de outubro, e o segundo turno, se houver, em 19 de novembro.
Cada eleição argentina reaviva o drama que o Brasil abandonou com o Plano Real: será que vamos sair da inflação? Nos seis meses que passei em Buenos Aires, fiquei impressionado com o fato de o real e o dólar serem aceitos em muitos restaurantes; de haver plaquinhas alardeando a aceitação de cartões de débito (em vez de preferir o efectivo, isto é, dinheiro vivo), como se fosse algo grandioso; e, sobretudo, fiquei impressionado com o anúncio de um apartamento a ser comprado na planta cuja oferta trazia o seguinte trunfo: «financiamento em pesos!» Isso porque os preços dos imóveis são todos em dólar — e muitas vezes até os aluguéis são em dólar.
Os argentinos se ressentem, com razão. Não é apenas bom ganhar numa moeda mais forte do que o peso e viver em Buenos Aires: é excelente. Isso vai encarecendo a cidade para os próprios portenhos, que veem os brasileiros fazendo compras nas lojas mais chiques e reclamam: ¡para ellos, está todo regalado! («para eles, tudo está de graça!»). É verdade. E você fica com aquela sensação de que, se o problema econômico argentino fosse resolvido, não teria para ninguém. Buenos Aires seria caríssima, uma cidade para sheiks árabes, para os grã-finos de Nelson Rodrigues, com limusine com fonte e filhote de jacaré. A viagem para a Argentina seria como a viagem para a Europa: um sonho que a classe média sonha com cautela. Imigraríamos para lá não por puro amor, como eu imigraria (ou, mais exatamente: eu moraria lá, conectado com o Brasil), mas porque seria melhor ser garçom em Córdoba do que professor em Curitiba. Morreríamos de inveja, e nos perguntaríamos: como encontrar o segredo argentino?
E será que grande parte do charme de Buenos Aires não está em ela ser tão acessível? Não apenas barata para um brasileiro, mas também plana, feita para flanar, cheia de opções. Um dos raros lugares em que você tem aquela sensação de que cultura é importante, em que você acredita que o dinheiro da família já pode ter acabado há séculos, mas não as aulas de piano, nem as leituras apaixonadas de Quiroga e de Victoria Ocampo. (Sinto que muitos portenhos diriam que estou amplamente iludido: que hoje só o que resta é startup de matcha latte com leite de amêndoas encaixotado com canudinho.) Além disso, há o sotaque. Os hispanos em geral odeiam, assim como muitos brasileiros odeiam o sotaque carioca. Eu adoro. Acho muito divertido chamar alguém de pelotudo e reclamar de su boludez. Gosto da teatralidade, do jeito autoconfiante.
Dirão que sou carioca, portanto marrento, e que só por isso tolero os portenhos. Que boludez. Sou carioca, acho o carioca marrento, mas vejo o cuidado com que os argentinos fazem as coisas. É algo que encontramos em São Paulo também. Pelo simples e popular critério «quem ama, cuida», os paulistanos amam São Paulo muito mais do que os cariocas amam o Rio. E os paulistanos zelam muito mais por aquilo que fazem. A teatralidade do Rio tem dois ou três personagens, a teatralidade de São Paulo e de Buenos Aires é imensa.
E obviamente, este preâmbulo serve para falar de Javier Milei, o libertário que está dominando as pesquisas e pode muito bem ser o próximo presidente. Ele tem mais de Trump do que de Bolsonaro, no sentido de ser alguém que veio da mídia para o sistema político: virou uma celebridade nos programas de entrevistas, ganhou seguidores na internet, elegeu-se deputado, e é candidato à presidência, prometendo dolarizar a economia do país. Porque, repito, o problema da Argentina é a economia. Não é a segurança. É um mercado fechado, com muita inflação. É um país em que, como no Brasil dos anos 1980, todos conhecem o FMI.