Playback speed
×
Share post
Share post at current time
0:00
/
0:00

Paid episode

The full episode is only available to paid subscribers of Pedro Sette-Câmara

081 Maravilhosas mentiras de Michel Houellebecq

«Aniquilar»: conversão romanesca ou mais do mesmo?

Aviso 1: O curso Escrever com clareza está com as inscrições reabertas até sexta (23/12).

Aviso 2: Este texto tem 5 mil palavras, quatro vezes mais do que a média de textos da newsletter. Pretendo enviar aos assinantes pagantes um ensaio mais longo por mês.

Não existe amor na liberdade individual, na independência, isso é pura e simplesmente mentira, e uma das mais grosseiras que se pode imaginar; só existe amor no desejo de aniquilação…

— Michel Houellebecq, A possibilidade de uma ilha

1. Dia desses fiquei sabendo, ao ouvir o Répliques dedicado a Annie Ernaux, que Milan Kundera e Philip Roth nunca ganhariam um Nobel. São considerados «misóginos». Roth já acho difícil de entender, mas Kundera? Alguém precisa me explicar.

Agora, se Roth nunca teria ganhado o prêmio Nobel por esse motivo, então Houellebecq, autor «reacionário» oficial da França, não deve ter a menor chance.

2. Seu primeiro romance, Extensão do domínio da luta (1994), abre com a menção a uma moça que, numa festa, tira toda a roupa e fica só de calcinha, causando para sua tristeza mais constrangimento do que interesse. Em seguida, o narrador, já passando mal depois da quarta vodka, ouve duas colegas de trabalho cantarolando (sim, cantarolando) a respeito de como nunca vão se vestir para os outros, mas apenas para si mesmas.

Em contraste com essas mulheres caricaturais, que, como pequenos países surgidos de guerras de secessão, só serão «independentes» quando outros países reconhecerem sua independência, nos romances seguintes de Houellebecq as mulheres «boas» são aquelas que, antes de tudo, desejam agradar.

Não por acaso, há muitas prostitutas.

3. Porém, aquele narrador de Extensão do domínio da luta não é particularmente maldoso. Logo depois da festa, se perde do próprio carro, e, para não enfrentar a humilhação de admitir que não consegue encontrá-lo, decide ir à polícia para dizer que foi roubado. O narrador tem um bom emprego de programador, mas não tem namorada. Ele mesmo seria o modelo do próprio incel, caso já não tivesse tido ao menos uma namorada, e se esse papel não tivesse sido reservado ao colega, que soma, às qualidades do narrador, uma virgindade absoluta e involuntária.

O narrador ainda terá um problema no coração — perceberam a metáfora? — e induzirá o colega a ir atrás de uma mulher e, depois, a estuprá-la. O colega viverá a cena clássica do homem preterido, a qual se repetirá no romance seguinte, Partículas elementares: ver a mulher desejada dançando agarrada com outro. O colega, frustrado, morrerá num acidente de carro na mesma noite em que cogita o estupro. Ou será que ele se matou, tendo sido induzido ao suicídio? Não sabemos — só sabemos que o narrador termina incapaz de viver «normalmente», e passa a viver num hospital psiquiátrico.

4. Qualquer francês percebe que já está tudo no título: Extensão do domínio da luta. Nele temos o grande pavor do país, que é o pavor da competição trazida pelo liberalismo. Sim, porque o francês, ao ouvir «liberalismo», escuta «competição» e imediatamente conclui: «lei do mais forte». Barbárie. Selva. Vale tudo. Difícil, até, imaginar vida mais difícil do que a de um defensor do liberalismo econômico na França: o público invariavelmente escuta «você, seu monstro, quer tirar a escola do meu filho e a pensão da minha avó».

Ou, na voz de Houellebecq: a competição sexual desenfreada leva ao desespero os homens mais fracos, e, no fim das contas, traz infelicidade para todos os envolvidos.

Daí a sacada genial que fez o sucesso de Houellebecq: descrever toda essa corrosão da sociedade pelo liberalismo usando o estilo do terror, emprestado de H.P. Lovecraft. Um narrador impassível pode mostrar a infelicidade como a atenção à feiúra comercial que resta: produtos minuciosamente descritos, corredores de supermercados, comidas congeladas.

Howard Phillips Lovecraft, o mestre americano do terror, mestre da história em que pequenos e estranhos sinais levam incautos personagens a descobrir horrores indescritíveis. Houellebecq diz ter devorado Lovecraft (na tradução francesa) na adolescência.

5. O primeiro livro de Houellebecq — «o primeiro romance», nas palavras do próprio — é na verdade um texto de pouco mais de vinte mil palavras a respeito de Lovecraft: Contra o mundo, contra a vida, de 1988.

The full video is for paid subscribers

Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
Authors
Pedro Sette-Câmara