079 Memórias democráticas
Não se preocupe com «fake news», meu velho: a realidade é uma construção social
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Sempre que vejo a esquerda chocada com «fake news» e com o desrespeito às instituições, começo a lembrar da minha infância e da minha adolescência.
Após o fim da ditadura em 1985, eu vi algum dos meus professores celebrar o novo regime democrático? Só me lembro de críticas ao Estado burguês, à falsa democracia, à democracia que nunca existiu. Depois dessas críticas, por que alguém preservaria as opressoras instituições da democracia de fachada brasileira?
Alguma vez vi alguém pedir respeito ao presidente? A ideia me parece tão exótica quanto o jantar com cérebro de macaco comido por Indiana Jones em O templo da perdição.
E não foi na escola, nas minhas escolas de zelite da Zona Sul do Rio de Janeiro, que aprendi, nas décadas de 1980 e de 1990, que a TV Globo era a voz do patrão?
Não era a opinião de todos que a concentração midiática nas mãos de Roberto Marinho era um pecado que clamava aos céus por vingança?
Brizola não era celebrado porque prometia acabar com a concessão da Globo?
Não foi no começo de 1994 que começou a circular no Brasil, devidamente pirateado, em fitas VHS, o documentário Beyond Citizen Kane, produzido pelo Channel 4 inglês, que falava da fatia de mercado gigantescamente peculiar da Globo no Brasil, e de como ela editou um debate presidencial para desfavorecer Lula?
Aliás, em 2006, esse mesmo Lula não foi celebrado por sua esperteza para ganhar as eleições, afirmando, como última cartada, que Alckmin pretendia privatizar a Petrobras? Não era essa uma engenhosa mentira inventada por João Santana, então um invencível gênio do marketing?
E, voltando à minha experiência cotidiana, quantos não foram os adultos, inclusive professores, que riram na minha cara adolescente quando insisti na existência de uma verdade objetiva? Hoje esses mesmos adultos acham que «fake news» são a própria peste.
Porém, só me sinto inclinado a lhes dar tapinhas nas costas e repetir o que eu ouvia: relaxe, meu velho, a verdade é relativa, a realidade é uma construção social. Não foi isso que o senhor me ensinou?
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Agora, devo dizer que isso de termos uma geração mais antiga que nem sequer concebe que a geração mais nova seja efetivamente sua filha está longe de ser uma situação nova. Ela já ocorreu pelo menos uma vez, na Rússia de meados do século XIX.
Em 1862, Turguêniev publicou Pais e filhos, romance que foi (muito injustamente) entendido como (apenas) uma crítica dos «pais» à geração dos «filhos». De onde poderia ter saído essa gente que não respeita nada? Se os filhos eram assim, então eram filhos apesar dos pais, não por causa deles.
A geração antiga estava apenas perplexa, e ria com escárnio dos jovens «niilistas» que zombavam de tudo que era importante. A perplexidade dos «pais» do romance era refletida nos «pais» da sociedade. Quanto aos jovens niilistas, esses sentiram-se caricaturados e abandonaram Turguêniev.
Eu mesmo creio que uma leitura só um pouquinho mais atenta do romance já mostra que os pais são mesmo os legítimos pais dos filhos. O jovem niilista do romance declara não respeitar nada, mas o velho também já não respeitava. Só não falava nisso abertamente.
Nove anos depois, Dostoiévski decidiu aumentar o volume publicando Demônios, para mim uma clara resposta a Pais e filhos. Os «pais» são um tanto piores, e os filhos, bem, nem se fala. E, outra vez, a geração dos pais, horrorizada e perplexa, nem sequer cogita reconhecer a paternidade dos filhos.
Exceto num momento. Stiepan Trofímovitch, figura central do livro, na hora da morte percebe que foi ele mesmo quem gerou os «demônios» do título. Esse reconhecimento, é claro, é um momento sublime de uma obra de ficção, sem dúvida associado ao reconhecimento por que passou o próprio Dostoiévski, que via sua própria juventude revolucionária nos «demônios» retratados.
No Brasil, algum professor que tenha ensinado vinte, trinta, quarenta anos atrás que «a verdade é relativa» e que «a nossa democracia é apenas uma fachada para o Estado burguês» terá a grandeza de Stiepan Trofímovitch? Ou vai continuar dizendo que a verdade é relativa, e a realidade, uma construção social?
Há uns dias, numa festa repleta de esquerdistas, imaginei algo semelhante ao que disse: se começassem com afetação política a minha resposta seria “isso aí é relativo”.