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1 Serendipidade
Em Technopoly, um dos livros que considero mais importantes, Neil Postman cita um exemplo de como a «tecnicização» — a submissão de tudo a processos pré-determinados — diminuiu a serendipidade até mesmo nas descobertas científicas.
Para quem não se lembra, a serendipidade é o encontro fortuito e feliz; o exemplo mais conhecido de serendipidade na ciência é a penicilina, descoberta pelo escocês Alexander Fleming, que saiu de férias e esqueceu algumas plaquetas com culturas de estafilococos. Foi quando ele voltou que percebeu que o mofo que se formou tinha impedido as bactérias de crescer.
Quais as chances de isso ter acontecido hoje? Decerto os laboratórios e os cientistas seguem protocolos mais rigorosos. Talvez haja até regulamentações estatais ou para-estatais. E provavelmente a maioria de nós prefere que haja essa regulamentação.
Aliás, na última newsletter falei da serendipidade sem pensar nela, ao citar a música «Un vestido y un amor», em que Fito Páez canta: yo no buscaba a nadie y te vi.
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Uma vantagem da escrita ensaística, como a desta newsletter, como aquela que eu gostaria que existisse nos jornais, é justamente estar mais aberta à serendipidade.
Esta semana tive (mais) um pequeno colapso de cansaço e o máximo de esforço cognitivo de que fui capaz foi ver Mulher Maravilha: 1984 na HBO Max: a primeira opção no último aplicativo que instalei.
E graças à liberdade deste formato, posso fazer agora, diretamente, algo que me custaria 50 páginas de introduções, ressalvas, e definições num trabalho acadêmico, que é comparar o orgulho da maneira como é representado na cultura pop, entre comerciais e blockbusters, ao orgulho da maneira como é representado em grandes obras da literatura — especialmente em O vermelho e o negro (o que posso fazer, estou relendo o romance).
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A Mulher-Maravilha, ainda criança, vai participar com mulheres adultas de um torneio que começa num estádio lotado, segue um percurso, e termina no estádio. As provas a serem cumpridas são proezas impressionantes até para animações feitas por computador. Ela está na frente. Porém, um acidente faz com que ela caia; por acaso — uma serendipidade do mal, digamos — ela descobre um atalho que lhe devolve alguma vantagem.
Porém, na hora em que a criança-prodígio volta ao estádio, sua tia Antíope (Robin Wright, falando um inglês assustadoramente parecido com a minha imitação de americanos falando italiano), impede-a de concluir a prova e diz que ela trapaceou; que a única coisa que importa é a verdade. No true hero is born from lies, «o herói verdadeiro não nasce da mentira», diz Antíope, numa frase que ainda será repetida por muitos coaches no mundo inteiro.
Parece uma grande lição, ou, na pior das hipóteses, uma lição inócua. Ela teria direito ao aplauso se o merecesse de verdade. Aqui estamos de volta ao terreno habitual do cinema americano. O garoto da escola que é sensível e inteligente, mas as meninas só querem os jogadores de futebol americano; como ele obterá o aplauso no fim do filme? Permanecendo fiel a si mesmo. Vai tentar ser o que não é, e vai se estrepar. A menina vai tentar agir como as garotas «populares» e vai se estrepar; porém, quando ela for fiel a si mesma, vai obter o reconhecimento e, de quebra, o namorado dos sonhos.
Talvez o leitor se lembre da campanha da «Beleza Real» da Dove. Algumas mulheres descrevem-se para um especialista em fazer retratos-falados para a polícia. Em seguida, elas são descritas por outras pessoas para esse mesmo desenhista. Os segundos retratos são muito mais bonitos do que os primeiros. Os outros veem-nas mais bonitas do que elas se veem.
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Adoro essa campanha. Sim, ela é bonita e ela deve ter tido um efeito benéfico real em muitas pessoas. Só que ela depende de algo que está ao mesmo tempo escancarado e escondido.
O que a grande obra de arte vai fazer? Vai ligar os pontos, escancarar o que já estava escancarado e escancarar também o que estava escondido. A grande obra de arte vai ofuscar.
A campanha se chama «Beleza Real». Onde a beleza «real» foi encontrada? Nos olhos dos outros.
O que o personagem de filme americano de escola ganha no final? O reconhecimento dos outros.
O que a jovem Mulher-Maravilha queria? Parecer vencedora. Mas a tia adverte que ela tem de ser a vencedora para ter direito a esse parecer.
Essa é a ideia romântica por excelência. O mérito está em você, você quer poder sentir esse orgulho verdadeiro, esse orgulho «do bem», e então os outros vão reconhecer esse mérito.
A ideia romanesca, no sentido proposto por René Girard no título Mentira romântica e verdade romanesca, é que os outros vêm primeiro. Se você acha este texto aqui interessante, bem, é porque eu o escrevi para os outros. Se eu tivesse guardado tudo isso para mim, eu poderia virar um desses caras inúteis que se acham sabichões e nunca nem sequer escrevem nada. Porém, a minha maior preocupação é escrever para os outros, não para mim.
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Os outros estão sempre em primeiro plano numa obra como O vermelho e o negro. Julien Sorel se sente primeiro intimidado pela Sra. de Rênal, depois envergonhado por sentir-se intimidado. Ele a seduz como se fosse seu ídolo Napoleão Bonaparte fazendo conquistas — ela própria, no começo, é menos relevante para Julien do que ele ver que foi capaz de imitar seu modelo. O tempo todo Julien age assim: em função de um outro próximo (a Sra. de Rênal, Mathilde, o Sr. de la Môle) ou de um modelo distante (Napoleão, o cardeal Richelieu).
O orgulho está nessa vitória diante dos olhos dos outros, como fica claro o tempo todo em O vermelho e o negro.
Porém, numa obra romântica, o orgulho quer esconder os olhos dos outros. Se venci, foi por mérito meu; você apenas reconheceu. Sou bonito; até agradeço por você reconhecer isso, porque minha única culpa era ter esquecido. Sou sensível, tenho qualidades: bastou eu ter paciência e ser fiel a mim mesmo que os outros reconheceram isso. Na obra romântica, o protagonista busca o tempo todo essa espécie de orgulho do bem, calcado no mérito, como se o olhar alheio fosse apenas acessório.
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Ao dizer isso, parece que estou tirando o chão de debaixo dos nossos pés e desmistificando a sacralidade do indivíduo como se fosse um Voltaire zombando de Joana d’Arc. De jeito nenhum.
Primeiro, como fica bem claro em O vermelho e o negro, apesar do orgulho, os personagens também têm amor e intimidade. No fim do romance, quando Julien abandona o orgulho e admite as patifarias que fez, o que lhe resta? O amor da Sra. de Rênal.
Mulher Maravilha: 1984 tem uma cena análoga. O vilão do filme — que aliás tem plena consciência de que o caminho da grandeza está nos desejos dos outros — admite todas as suas patifarias para o filho pequeno, e finalmente consegue aceitar seu amor.
É algo bonito mesmo, porque você quer ser amado pelo seu esplendor, e não a despeito das suas falhas e maldades. Você quer um amor que venha de uma admiração que você julga merecida, não um amor que seja, por exemplo, a fidelidade a uma intimidade compartilhada.
E é até interessante que a Mulher-Maravilha adulta, a pessoa que mais teria direito a um «orgulho do bem» no mundo, pode até ter todo o «orgulho do bem» do mundo — mas foi obrigada a renunciar ao amor. É mais uma verdade que a cultura de massas escancara e esconde aparentemente sem querer (nem perceber).
Assim como é interessante que são apenas os vilões do filme que admitem para si mesmos que querem ser como os outros. É por isso que, como digo (antigamente todo mundo diria), esses são filmes para crianças, e não para adultos.