Um resumo do que vem por aí: acredito que o «sobrenatural», por sua teatralidade, acaba recebendo uma atenção excessiva, e deixamos de lado o mais importante, que é nossa maneira de desejar, nossa maneira de viver. Temos medo de fantasmas e não olhamos nosso próprio coração.
O texto tem duas partes: na primeira, mostro como uma obra de arte pode «desmistificar» outra, simplesmente trocando seus elementos «misteriosos» por outros mais verossímeis para o «naturalismo» — ficando talvez ainda mais assustadora.
Na segunda, mostro como a lógica do subsolo de Dostoiévski está presente no caso de David Berkowitz, conhecido como o assassino satanista «Son of Sam», e como a lógica masoquista do «relacionamento abusivo» está presente no caso de «Julia, a rainha satânica», personagem de destaque do livro recente Demonic Foes, do psiquiatra Richard Gallagher, que acompanha casos de exorcismo. (Essa história, aliás, deve virar filme nos próximos anos.)
(E ainda tem uma Rihanna no final, junto com uma lembrança minha muito peculiar.)
Parte 1
1 O bebê de Rosemary desmistificado por O poderoso chefão
Ao mudar-se para o edifício Bramford com Rosemary, sua esposa, o ator Guy Woodhouse sabia que sua carreira estava indo bem, mas que poderia ir melhor ainda.
Seus novos vizinhos, satanistas em sentido estrito, propõem um trato: empreste o útero da sua esposa para que o filho do Capeta possa ser gestado, e nós cuidamos da sua carreira; aliás, a sua esposa nem precisa ficar sabendo de nada, ela vai só ficar grávida, vai ser uma gravidez como qualquer outra.
Guy aceita o trato, e o sucesso vem imediatamente: em poucos dias, outro ator perde a visão, e ele vai substituí-lo.
O suspense da história — que não acabou, essa é só a premissa — vem de ela ser contada desde o ponto de vista de Rosemary, que pouco a pouco vai suspeitando de algo meio esquisito.
Eis a trama de O bebê de Rosemary — que, segundo as internets, é considerado o maior clássico do terror de todos os tempos.
Porém, acho que existe um filme muito mais aterrorizante, que conta a mesma história: O poderoso chefão.
Johnny Fontane é cantor e ator. Como Guy Woodhouse, prometia ser um grande sucesso, mas precisava de uma ajudinha: estava preso a um contrato desfavorável com o líder da banda em que cantava. Assim, pediu ajuda ao «padrinho», Don Vito Corleone, mafioso de Nova York.
Corleone, um príncipe deste mundo, primeiro tentou negociar na base do prestígio. Aqui está um bom dinheiro, e espero que o senhor líder da banda saiba com quem está falando.
O senhor líder da banda não se impressionou.
No dia seguinte, Corleone voltou a falar com o líder da banda, trazendo uma proposta financeiramente menor, mas complementada pela força persuasiva da arma que o capanga Luca Brasi apontava para sua cabeça. Era a «proposta irrecusável», como caiu na linguagem popular. I’m gonna make him an offer he can’t refuse.
Johnny Fontane fica perpetuamente agradecido — e perpetuamente endividado. No futuro (no presente do primeiro filme), Corleone o ajudará de maneira ainda mais dramática.
Agora, se O bebê de Rosemary é uma história contada do ponto de vista da incauta Rosemary, O poderoso chefão é uma história contada desde o ponto de vista do próprio chefão, do «padrinho», isto é, do próprio Satanás. E, a cada vez que Satanás ajuda alguém, avisa: olha, um dia eu vou te «pedir» algo, e você vai ter de fazer.
Será que estou indo longe demais?
Bem, o próprio filme O poderoso chefão identifica Satanás com o mafioso que é um dos príncipes deste mundo. Quase no final, o que está fazendo Michael Corleone, filho e sucessor de Don Vito, enquanto os demais chefes das famílias mafiosas de Nova York são executados por ordem sua? Está renunciando a Satanás, a suas obras, e a suas pompas, durante o batismo do sobrinho… «Renuncia a Satanás?» Corta para um mafioso sendo morto por ordem de Michael.
A única violência exibida em O bebê de Rosemary é o estupro da própria Rosemary pelo Capeta em pessoa, e ainda devo lembrar que ela achava que tinha passado a noite com o marido.
Como o ator substituído por Guy Woodhouse perdeu a visão? E aquele amigo de Rosemary, que vem dizer que há algo de podre no reino da Dinamarca? Como ficou doente? Sim, foi Satanás. Mas como? Satanás foi lá? Satanás alterou as moléculas? É um mistério.
Por outro lado, sabemos exatamente como sofreram as vítimas dos príncipes da máfia deste mundo. Tanto sabemos que o próprio Vito Corleone, ao fazer um acordo com outros mafiosos, deixa claro que faz questão de que seu filho Michael possa voltar inteiro da Itália, para onde fugira, sem que este misteriosamente caia da janela, nem misteriosamente cometa suicídio…
Interessante ainda que a vida dos mafiosos de O poderoso chefão seja o próprio retrato do reino de Satanás: um reino dominado pela vingança, a qual é muito precariamente limitada pelo interesse próprio. Os mafiosos sabem perfeitamente que a vingança poderá contagiar todos e, assim, destruir todos. Eles também sabem que de tempos em tempos isso acontecerá, e haverá guerras entre eles, as quais levarão embora as velhas hierarquias e trarão novas hierarquias. É Satanás que periodicamente expulsa Satanás. É o eterno retorno. É, na maravilhosa expressão de Bernanos em Sob o sol de Satã, «a assustadora monotonia do pecado».
Mas, como os próprios mafiosos não têm ilusões, e sabem que são só a máfia mesmo, não chegam a acreditar em nenhuma ordem transcendente; eles sabem que não foi «Satanás» quem trouxe seu sucesso — assim como sabem que estão fadados a uma vida sem descanso, que qualquer pessoa, inclusive seus familiares mais próximos, podem traí-los; que a vingança de uma violência ancestral pode abater-se sobre eles a qualquer momento. Quando, em O poderoso chefão II, Kay, esposa de Michael Corleone, brada exasperada contra «esse negócio siciliano que já dura dois mil anos», quase ouvimos a exasperação de quem protesta contra a violência que em que humanidade está enredada «desde a fundação do mundo»…
2 The Wire: como inventar algo que assuste
A mesma desmistificação acontece na quinta temporada de The Wire. A gangue do traficante Marlo é responsável pela maioria dos homicídios da cidade. Os corpos estão espalhados por casas abandonadas. A prefeitura, porém, está sem dinheiro para financiar as investigações da polícia.
Nesse momento, o detetive McNulty, o indispensável detetive que faz justiça apesar dos superiores acomodados de toda série policial, decide fabricar um serial killer a partir de um homicídio comum. É só acrescentar algumas marcas teatrais, criar uns boatos, e pronto: a cidade de Baltimore passa a ser assombrada pelo seu próprio serial killer.
Não é preciso pensar muito para captar a mensagem: um serial killer teatral, um Hannibal Lecter, mobiliza as pessoas muito mais do que um pequeno grupo de assassinos a serviço do tráfico de drogas, mesmo que o número de vítimas desse pequeno grupo seja muito maior.
A perplexidade faz com que as perguntas fiquem ecoando na cabeça de quem assiste à série. É isso mesmo? Vítimas teatrais, por definição, mobilizam mais do que vítimas banalizadas? Se Chris Partlow e Snoop espalharam cadáveres e mais cadáveres por prédios abandonados de Baltimore, não podem ser temíveis serial killers porque são meros capangas do tráfico?
Segunda Parte
3 A «configuração do nosso desejo»
Diante disso tudo, decerto alguém pensará que estou a um passo de negar realidades espirituais, «naturalizando» o capeta. Seria engraçado ouvir essa objeção e ter a oportunidade de lembrar que é a própria Igreja Católica que primeiro pede para que psiquiatras joguem a toalha antes de considerar levar a sério um caso de possessão demoníaca. É a própria Igreja quem diz: primeiro vamos desmistificar; se não der, aí sacamos o Ritual Romano — e, mesmo nesse caso, já temos explicações e sabemos como proceder.