Meu texto sobre a nova direita fica para breve. Faço progressos lentos. A questão toda do ensaio está em como ordenar melhor o que tenho a dizer para obter o máximo de clareza. Por ora, deixo uma reflexão sobre a tentação de achar que, como disse Jorge Manrique, «cualquiera tiempo pasado / fue mejor».
1
A nova direita brasileira tende a agir como se o presente fosse quase o território natural da esquerda, e esse é um dos motivos pelos quais a direita tende a perder. (Não que me pareça que, na luta que se anuncia entre direita e esquerda, vá surgir algum vencedor.) A direita tem a mentalidade de retrair-se e fugir, run for the hills, como dizemos em inglês bíblico. Enquanto isso, «o mundo», «a esquerda» aproveitaria feliz o presente, supostamente refestelando-se em seu esquerdismo.
Eu não discordo de que haja muita coisa ruim no presente, mas até no jardim do Éden não havia uma serpente e um casal que caiu na lorota dela? E depois um filho desse casal não matou o outro filho? Na Ilíada, o velho Nestor já não desdenhava de Aquiles e Diomedes, dizendo que antigamente é que era bom? Pois a persistência do tema «antigamente é que era bom» basta para me proteger da sensação de «mas hoje é diferente».
Essa é uma prisão mental de pura negatividade. Se só o passado é bom, se só resta o famoso resgate, então o que fazer do futuro? Só podemos, no máximo, restaurar o passado? Não podemos tentar descrever o presente assim como fizeram tantas figuras canonizadas no panteão da famosa «alta cultura»? Toda grande obra está necessariamente no passado?
E ainda, como desculpa, você pode ouvir que, já que ainda não leu Homero, Virgílio, Horácio, Dante, Goethe, Austen, Machado, etc., etc., etc., então não vale a pena ler os contemporâneos. Mas ora, todos os grandes autores um dia foram contemporâneos. A ficção em prosa dirigida para gente anônima que compraria livros um dia foi considerada um vício burguês, mas lá estavam os autores escrevendo mesmo assim.
Pior ainda, existe um culto totalmente mitológico do «tempo»: «os clássicos passaram no teste do tempo». Como se não fosse possível que um grande autor caísse no esquecimento. Essa lição eu aprendi com Octavio Mora, cujo Ausência viva, jamais reeditado, hoje difícil de encontrar, é um dos grandes livros de poemas da língua portuguesa de todos os tempos. Bruno Tolentino, também, pode perfeitamente vir a ser esquecido. Não existe «o tempo» como um agente que preserva o que é bom e descarta o que é mau: existe a ação humana, a deliberação de preservar, de promover, de trazer o que tem valor para o... presente.
E isso pode ser traduzido na prática assim: para preservar uma obra, você tem de copiá-la, garantir que o texto está perfeito, produzir estudos históricos, produzir estudos que expliquem aquilo que tenha ficado obscuro (por exemplo, quando Camões diz que Inês de Castro é «mísera e mesquinha», o que ele quer dizer é, em português de uso contemporâneo, que ela era algo como «pobre e coitadinha»). Em suma, você tem de garantir que a obra seja acessível ao presente — como naquelas edições de Shakespeare que vêm com glossário em todas as páginas.
2
Não só. Transformar os clássicos canonizados num obstáculo para o conhecimento do presente é trair o espírito «clássico», porque esse espírito não consiste em fixar-se nos mestres do passado, mas em absorver neles o que há de perene e reproduzir isso hoje.
Afinal, se uma obra clássica se volta para aquilo que é perene (a estrutura da cognição humana, alguma verdade que ela vá apreender, a fruição do processo), é óbvio que aquilo que é perene também está vivo no presente. Além disso, nas obras de espírito clássico aquilo que é perene triunfa sobre a erudição. O autor de espírito clássico pode fazer mil referências a seus predecessores, mas essas referências não podem atrapalhar a fruição da obra. As referências vão aparecer para quem procurá-las, mas você não precisa captá-las para uma apreciação inicial, exatamente como não precisa conhecer mil receitas de brigadeiro e conhecer a história do brigadeiro para apreciar um brigadeiro.
Esse espírito clássico ainda está presente no desenho e na pintura. O iniciante precisa tanto reproduzir obras de mestres quanto reproduzir as coisas, diretamente. O trabalho de imitação dos mestres vai educando o olhar e o traço, mas ninguém cogitaria abandonar a reprodução das coisas. Afinal, você está buscando os mestres e se educando para quê? Para só olhar os mesmos mestres e o passado? O presente, você vai deixá-lo para os outros, é isso? Nenhum artista visual acredita que o presente é indigno de ser pintado.
Aliás, esse espírito também está presente na culinária.
3
Vale deixar aqui algumas recomendações de obras contemporâneas que eu mesmo li e que me conectam com o presente.
Brás, Quincas & Cia. — Antonio Fernando Borges publicou este romance em 2002. Lembro de lê-lo nos primeiros meses do governo Lula. Alguma coisa no texto captou perfeitamente meus sentimentos; gostaria de voltar ao romance vinte anos depois para rever minha reação. Porém, à época, o impacto foi grande.
A primeira história do mundo — não entendo por que este livro de Alberto Mussa não é um bestseller, por que ainda não existem o filme, a minissérie, tudo o que for possível. O que temos aqui é uma espécie de romance-documentário que conta o primeiro crime registrado na história do Rio de Janeiro, pontuado por várias explicações sobre os mitos e a cultura indígena. Como dizem os americanos, um page-turner.
Até você saber quem é — Diogo Rosas G. parte de Guimarães Rosa para reconstruir a parte mais interessante da vida cultural do Brasil no fim dos anos 1990. Junto com o livro de Antonio Fernando Borges, ele vai fazer você realmente trazer o seu imaginário para o aqui e agora. (Em literatura, vinte anos não são nada. Aliás, o romance no século XIX tinha muito de investigação de presente. Até hoje, é o que mais me interessa.)
Um imenso Portugal — esta coletânea de artigos de Evaldo Cabral de Mello deve ser a melhor maneira de preparar-se para o bicentenário da independência em 2022. É um texto muito importante para mim.
A amiga genial — o link vai para o primeiro volume da tetralogia. Elena Ferrante como que escreve uma peça de Shakespeare que dura uma vida inteira. Duas amigas, uma modelo e rival da outra, o texto claro a ponto de deixar a rivalidade evidente sem que essa rivalidade não resvale numa briga. Duas amigas, uma crescendo em função da outra, no estilo romance realista do século XIX. Difícil parar de ler. Férias de um mês? Leve consigo a tetralogia da Amiga genial. Depois, quando você for ver o Conto de inverno, de Shakespeare, pense que a primeira cena é uma Amiga genial hipercondensada. Um texto vai enriquecer o outro.
Fora isso, na poesia, não posso deixar de mencionar os livros de Érico Nogueira e aqueles publicados pela editora Mondrongo; tenho certeza de que o último livro de Alexandre Soares Silva é excelente, mas ainda não o li, assim como ainda não li o livro de Luiz Carreira. Na Argentina, Samantha Schweblin é bem interessante. Se você ler francês, procure a coleção «Tracts», da Gallimard, para ensaios rápidos a respeito de temas contemporâneos.
Pior ainda é pensar que faltou falar de muita gente. O presente é muito interessante. Não leia só os clássicos. Arrisque-se também. É bom estar aqui, agora.