088 «Por que a escola deve ser desinstitucionalizada»
Talvez o texto mais subversivo que você vá ler este ano, por Ivan Illich
Existem duas razões adicionais para ler este texto de Ivan Illitch, que discutimos esta semana na Oficina de Escrita de Inverno. Digo «adicionais» porque o texto merece ser lido por si mesmo.
A primeira é ter um gostinho do que já foi o debate público. O texto de Illich, hoje, parece absolutamente subversivo, impensável, assustador. Porém, ele foi publicado no Brasil pela respeitável editora católica Vozes; uma editora de esquerda, sim, e de uma esquerda que não tinha medo de ser libertária. Hoje o debate público se tornou, para usar os termos da velha esquerda, totalmente «neoliberal» e «tecnocrático»: ele trata apenas de como fazer o Estado resolver melhor uma quantidade cada vez maior de problemas. Quando Illich propõe que fosse criada para a educação uma lei semelhante à primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, isto é, algo como «este governo não legislará sobre educação», está dizendo algo que, hoje, é cada vez mais impensável, ou que só é pensável em grupos anarquistas e marginais.
A segunda razão ajuda a contextualizar certos debates contemporâneos. Um Jonathan Haidt está aparentemente obcecado com o mal que as mídias sociais causam aos jovens americanos (e, por tabela, imaginamos, aos jovens do mundo inteiro). O número de jovens que tira carteira de motorista, que tem vida social, que faz sexo, diminui barbaramente, e não por um aumento da virtude. Haidt também aponta que os jovens cada vez mais são ensinados a buscar figuras de autoridade e a desejar segurança. Assim, pergunto: mas não era exatamente disso que falava Ivan Illich em 1970, quando publicou A sociedade sem escolas? A perda da iniciativa pessoal não é uma decorrência pura e simples de uma cultura que, cada vez mais, espera que processos funcionem sozinhos, que autoridades assumam cada vez mais a responsabilidade pela segurança alheia?
O texto de Illich acaba sendo mais uma demonstração da força que o ensaio independente já teve. O próprio discurso de Haidt talvez seja mais coerente consigo mesmo, mais amarrado, mais acadêmico, e por isso mesmo mais seguro. Mas o texto de Illich é mais ousado, mais perspicaz, e, como o leitor pode verificar, enxerga mais longe.
Agora, algumas observações:
— O original pode ser lido aqui: https://monoskop.org/images/1/17/Illich_Ivan_Deschooling_Society.pdf.
— A tradução foi retirada daqui: https://colectivolibertarioevora.files.wordpress.com/2013/11/ivan_illich_-_sociedade_sem_escolas.pdf.
— Fiz algumas revisões na tradução. Vale ainda observar que o livro de Illich se chama Deschooling Society, e que o tempo todo, no texto original, ele usa o verbo to school. O inglês permite que qualquer substantivo seja transformado em verbo. Seguindo essa lógica, a tradução do título seria Desescolar a sociedade, e as vezes em que lemos, na tradução, o verbo «escolarizar», poderíamos ler «escolar». Digo isso porque as palavras «escolarizar» e «escolarização» têm em português os sentidos de «permanecer na escola». Porém, Illich está interessado na escola principalmente como instituição, como solução tecnológica institucional, como molde de pensamento, e não no «conteúdo» do que é ensinado. Ele não está questionando a comida do restaurante, mas a própria ideia do restaurante.
«Por que a escola deve ser desinstitucionalizada»
Ivan Illich, cap. I de A sociedade sem escolas
Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo, «escolarizado» a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é «escolarizada» a aceitar serviço em vez de valor. Identifica erroneamente cuidar da saúde com tratamento médico, melhoria da vida comunitária com assistência social, segurança com proteção policial, segurança nacional com aparato militar, trabalho produtivo com concorrência desleal. Saúde, aprendizagem, dignidade, independência e faculdade criativa são definidas como sendo um pouquinho mais que o produto das instituições que dizem servir a estes fins; e sua promoção está em conceder maiores recursos para a administração de hospitais, escolas e outras instituições semelhantes.
Nesses ensaios quero mostrar que a institucionalização de valores leva inevitavelmente à poluição física, à polarização social e à impotência psíquica: três dimensões de um processo de degradação global e miséria modernizada. Explicarei como este processo de degradação se acelera quando necessidades não materiais são transformadas em demanda por mercadorias; quando saúde, educação, mobilidade pessoal, bem-estar, recuperação psicológica são definidos como resultados de serviços ou «tratamentos». Faço isso porque tenho a impressão de que a maioria das pesquisas realizadas atualmente sobre o futuro tende a pleitear maior incremento na institucionalização de valores e porque acho que devemos definir condições que permitam acontecer exatamente o contrário. Necessitamos de pesquisas sobre a possibilidade de usar a tecnologia para criar instituições que sirvam à interação pessoal, criativa e autônoma e que façam emergir valores não passíveis de controle substancial pelos tecnocratas. Necessitamos de pesquisas que se oponham à futurologia em voga.
Desejo levantar a questão geral da definição comum de natureza humana e da natureza das instituições modernas que caracterizam nossa mundividência e linguagem. Para isso, escolhi a escola como paradigma. E só indiretamente abordarei outras instituições burocráticas do Estado: a família-consumidora, o partido, o exército, a igreja, os meios de comunicação. Minha análise do currículo escolar secreto poderá evidenciar que a educação pública tiraria proveito da desescolarização da sociedade, assim como a vida familiar, a política, a segurança, a fé e as comunicações tirariam proveito de processo análogo.
Começo minha análise, neste primeiro ensaio, tentando mostrar o que a desescolarização de uma sociedade escolarizada poderia significar. Neste contexto será mais fácil compreender minha escolha dos cinco aspectos específicos pertinentes a este processo, dos quais tratarei nos capítulos subsequentes.
Não apenas a educação, mas também a própria realidade social tornou-se escolarizada. Dá quase na mesma escolarizar pobres e ricos nas mesmas dependências. O gasto anual por aluno, seja numa favela ou num rico subúrbio de qualquer cidade dos Estados Unidos, está na mesma proporção, sendo às vezes favorável às favelas.1
Pobres e ricos dependem igualmente de escolas e hospitais que dirigem suas vidas, formam sua visão de mundo e definem para eles o que é legítimo e o que não é. O medicar-se a si próprio é considerado irresponsabilidade; o aprender por si próprio é olhado com desconfiança; a organização comunitária, quando não é financiada por aqueles que estão no poder, é tida como forma de agressão ou subversão. A confiança no tratamento institucional torna suspeita toda e qualquer realização independente. O progressivo subdesenvolvimento da autoconfiança e da confiança na comunidade é mais acentuado em Westchester do que no Nordeste do Brasil. Em toda parte, não apenas a educação, mas a sociedade como um todo precisa ser «desescolarizada».
As burocracias do bem-estar social reivindicam um monopólio profissional, político e financeiro sobre a imaginação social, estabelecendo padrões para o que é proveitoso e o que é possível. Este monopólio está na raiz da modernização da pobreza. Qualquer simples necessidade para a qual foi encontrada uma resposta institucional permite a invenção de nova classe de pobres e nova definição de pobreza. No México, dez anos atrás, era normal nascer e morrer em sua própria casa e ser enterrado pelos amigos. Apenas os cuidados pela alma eram assumidos pela igreja institucional. Agora, começar ou terminar a vida em casa é sinal de pobreza ou de especial privilégio. Agonia e morte passaram à administração institucional de médicos e agências funerárias.
Tendo uma sociedade transformado as necessidades básicas em demandas por mercadorias cientificamente produzidas, define-se a pobreza por padrões que os tecnocratas podem mudar a bel-prazer. A pobreza se aplica àqueles que ficaram aquém de algum ideal de consumo propagandizado. No México, pobres são os que não frequentaram três anos de escola; em Nova York, os que não freqüentaram doze anos.
Os pobres sempre foram socialmente impotentes. A crescente confiança nos cuidados institucionais adiciona nova dimensão à sua impotência: impotência psicológica, incapacidade de defender-se. Os camponeses dos altos Andes são explorados pelos donos da terra e pelos negociantes; e, uma vez estabelecidos em Lima, passam a depender também de chefes políticos e são desqualificados por causa da falta de escolarização. A pobreza moderna combina a falta de poder sobre as circunstâncias com a perda de força pessoal. Esta modernização da pobreza é um fenômeno universal e está na raiz do subdesenvolvimento contemporâneo. Manifesta-se, obviamente, de formas diferentes nos países ricos e pobres.
É mais fortemente sentida nas cidades norte-americanas. Em nenhum outro lugar a pobreza é objeto de cuidados mais dispendiosos. Em parte nenhuma também o tratamento da pobreza produz tanta dependência, angústia, frustração e ulteriores demandas. E em parte nenhuma ficou tão evidente que a pobreza — uma vez modernizada — tornou-se imune a um simples tratamento em dólares. Requer uma revolução institucional.
Hoje em dia, nos Estados Unidos, os negros e mesmo os migrantes podem aspirar a um nível de atendimento profissional inimaginável há duas gerações, o que parece ridículo à maioria das pessoas do Terceiro Mundo. Por exemplo, os pobres, nos Estados Unidos, podem contar com um funcionário que providencia a volta de seus filhos «gazeteiros» à escola até que tenham dezessete anos, ou com um médico que lhes providencia um leito no hospital e que custa sessenta dólares por dia — o equivalente ao ganho de três meses para a maioria das pessoas no mundo. Mas este cuidado somente os torna dependentes de mais atenções; torna-os progressivamente mais incapazes de organizar suas próprias vidas, a partir de suas experiências e recursos, dentro de suas próprias comunidades.
Os pobres, nos Estados Unidos, melhor do que ninguém, podem falar sobre a situação que ameaça todos os pobres do mundo que se moderniza. Estão descobrindo que nenhuma quantia de dólares pode remover a inerente destrutividade das instituições de bem-estar, uma vez que as hierarquias profissionais dessas instituições convenceram a sociedade de que seu trabalho é moralmente necessário. Os pobres dos bairros urbanos dos Estados Unidos podem demonstrar, por experiência própria, a falácia sobre a qual está construída a legislação social numa sociedade «escolarizada».
William O. Douglas, magistrado da Suprema Corte, observou que «a única maneira de estabelecer uma instituição é financiando-a». O corolário que se segue também é verdadeiro. Somente tirando os dólares das instituições que atualmente cuidam da saúde, educação e bem-estar, pode ser sustado o progressivo empobrecimento que resulta de seus destrutivos efeitos colaterais.
Devemos ter isto em mente quando avaliamos os programas de ajuda federal. Para ilustrar, de 1965 a 1968 foram gastos nas escolas dos Estados Unidos mais de três bilhões de dólares para compensar as desvantagens que afetavam seis milhões de crianças. Conhecido como Título Um (Title One), foi o programa compensatório em educação mais caro que já se realizou em qualquer parte do mundo, ainda que não se conseguisse perceber significativa melhoria na aprendizagem dessas crianças «em desvantagem». Comparadas com seus colegas, provindos de famílias de renda média, permaneceram mais atrasados ainda. Como se isso fosse pouco, durante a execução do programa, profissionais descobriram mais dez milhões de crianças que estavam em condições econômicas e educacionais desvantajosas. Existem agora mais razões para solicitar mais verbas federais.
Esse total fracasso no incremento da educação dos pobres, apesar das atenções bem dispendiosas, pode ser explicado de três formas:
1. três bilhões de dólares são insuficientes para melhorar o rendimento, em quantidade mensurável, de seis milhões de crianças ; ou
2. o dinheiro foi incompetentemente gasto: eram necessários, e teriam resolvido o caso, diferentes currículos, melhor administração, ulterior concentração das verbas na criança pobre e mais pesquisas; ou
3. a desvantagem educacional não pode ser sanada confiando-se na educação ministrada nas escolas.
A primeira forma é verdadeira na medida em que este dinheiro tiver sido aplicado pelo orçamento escolar. O dinheiro, na realidade, foi para as escolas que possuíam mais crianças «em desvantagem», mas não era gasto com as crianças pobres como tal. Essas crianças para as quais foi destinado o dinheiro eram apenas metade dos componentes das escolas que tiveram seus orçamentos aumentados pelos subsídios federais. O dinheiro foi gasto, portanto, com inspetores, ensino e seleção vocacional, bem como com educação. Todas essas funções diluem-se inextricavelmente em instalações, currículos, professores, administradores e outros componentes-chave dessas escolas e, portanto, de seus orçamentos.
Essas verbas extras fizeram com que as escolas provessem desproporcionalmente as necessidades das crianças relativamente mais ricas que também estavam «em desvantagem» por terem que frequentar a escola em companhia dos pobres. No máximo uma pequena fração de cada dólar destinado a remediar as desvantagens educacionais de uma criança pobre podia atingi-la através do orçamento escolar.
Poderia ser verdade também que o dinheiro fosse gasto incompetentemente. Mas nenhuma incompetência, por mais crassa, pode competir com a incompetência do próprio sistema escolar. As escolas, por sua própria estrutura, opõem-se à concentração de privilégios naqueles que estão, de outra forma, em desvantagem. Currículos especiais, classes separadas ou aulas mais longas constituem mais discriminação, a um custo mais elevado.
Os contribuintes fiscais ainda não se acostumaram a permitir que desapareçam três bilhões de dólares no Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar Social,2 como acontece com o Pentágono. O atual governo pode crer que vai arcar com a ira dos educadores. Os americanos da classe média nada perdem se o programa é extinto. Os pais pobres acham que eles perdem, e desejam, inclusive, um controle das verbas destinadas a seus filhos. Maneira lógica de cortar o orçamento e — esperamos — aumentar os benefícios é o sistema de bolsas de estudo, da forma como foi proposto por Milton Friedman e outros. Seriam destinadas verbas ao beneficiário, que poderia comprar à vontade sua parte de escolarização. Se tais créditos fossem limitados a compras pertinentes a um currículo escolar, tenderiam a garantir maior igualdade de atendimento, mas não fomentariam, com isso, a igualdade das necessidades sociais.
É óbvio que, mesmo com escolas de igual qualidade, uma criança pobre raras vezes poderia nivelar-se a uma criança rica. Mesmo frequentando idênticas escolas e começando na mesma idade, as crianças pobres não têm a maioria das oportunidades educacionais que tem naturalmente uma criança da classe média. Essas vantagens vão desde as conversas e os livros em casa até as viagens de férias e uma diferente percepção de si mesma, e isto vale para as crianças que gozam dessas vantagens, tanto na escola como fora dela. O estudante pobre geralmente ficará em desvantagem porquanto depende da escola para progredir ou aprender. Os pobres necessitam de verbas para poderem aprender, não para se certificarem, pelo tratamento, de suas pretensas deficiências desproporcionais.
Isto vale para nações pobres e ricas, mas naquelas aparece de maneira diferente. A pobreza modernizada, nos países pobres, afeta mais pessoas e de forma mais visível, mas também — ao menos até agora — de maneira mais superficial. Dois terços das crianças na América Latina abandonam a escola antes de concluírem o grau fundamental, mas esses «desertores» nem por isso se arranjam tão mal, como aconteceria nos Estados Unidos.
Poucos países permanecem hoje vítimas da pobreza clássica, que era estável e dificilmente vencível. A maioria dos países da América Latina atingiu o ponto de arrancada (take-off) para o desenvolvimento econômico e consumo competitivo e, portanto, para a pobreza modernizada; seus habitantes aprenderam a pensar como ricos e viver como pobres. Suas leis prescrevem seis ou dez anos de obrigatoriedade escolar. Não só na Argentina, mas também no México e no Brasil, o cidadão médio define a educação adequada pelos padrões norte-americanos, mesmo que a possibilidade de conseguir escolaridade tão prolongada fique restrita a uma pequena minoria. Nesses países a maioria já está amarrada à escola, isto é, está escolarizada num sentido de inferioridade para com os mais escolarizados. Seu fanatismo pela escola possibilita serem explorados duplamente: por um lado, permite uma crescente aplicação de verbas públicas para a educação de uns poucos; e por outro, permite uma crescente aceitação de controle social.
Paradoxalmente, a convicção de que a escolarização universal é absolutamente necessária mantém-se mais firmemente nos países em que menos pessoas foram e serão servidas por escolas. Na América Latina, a maioria dos pais e crianças ainda pode tomar diferentes rumos em relação à educação. As somas governamentais investidas nas escolas e professores podem ser proporcionalmente mais elevadas do que nos países ricos, mas esses investimentos são totalmente insuficientes para atender a maioria, e mesmo para possibilitar quatro anos de frequência escolar. Fidel Castro fala como se intencionasse caminhar para a desescolarização quando promete que, por volta de 1980, Cuba estará em condições de acabar com sua Universidade, uma vez que toda a vida em Cuba será uma experiência educacional. Ao nível da escola primária e secundária, porém, Cuba — como qualquer outro país latino-americano — age como se a passagem por um período definido como «idade escolar» fosse um objetivo inquestionável para todos, retardado apenas por uma carência temporária de recursos.
Os enganos gêmeos da intensa escolaridade, como se verifica nos Estados Unidos e como é prometida na América Latina, complementam-se um ao outro. Os norte-americanos pobres estão sendo incapacitados pelos doze anos de escolaridade cuja falta estigmatiza os latino-americanos pobres como irremediavelmente atrasados. Nem na América do Norte nem na América Latina os pobres obtêm a igualdade por meio da escolarização obrigatória. Mas em ambas regiões a simples existência de escolas tanto desencoraja os pobres de assumirem o controle da própria aprendizagem quanto os incapacita para isso. Em todo o mundo a escola tem um efeito anti-educacional sobre a sociedade: a escola é reconhecida como a instituição especializada em educação. Os fracassos da escola são tidos, pela maioria, como prova de que a educação é tarefa muito dispendiosa, muito complexa, sempre misteriosa e muitas vezes quase impossível.
A escola se apropria de dinheiro das pessoas e da boa vontade disponível para então desencorajar outras instituições de assumir tarefas educativas. O trabalho, o lazer, a política, a vida na cidade e mesmo a vida familiar dependem da escola, por causa dos hábitos e conhecimentos que pressupõem, em vez de converterem-se nos meios de educação. E ainda, tanto as escolas como as outras instituições que dela dependem atingem custos vultosos.
Nos Estados Unidos, o custo «per capita» da escolarização subiu quase tanto quanto o atendimento médico. Mas a intensificação do atendimento, tanto escolar quanto médico, andou a passos com o declínio de resultados. Os gastos médicos com pessoas acima de 45 anos duplicaram várias vezes num período de 40 anos, ao passo que a esperança de vida aumentou apenas 3%. O aumento de gastos escolares produziu resultados mais estranhos ainda; caso contrário, não teria ocorrido ao Presidente Nixon prometer, nesta primavera, que toda criança teria, em breve, o «direito de ler» antes de deixar a escola.
Nos Estados Unidos seriam necessários 80 bilhões de dólares para assegurar o que os educadores chamam de igual tratamento para todos, na escola primária e secundária. Isto é mais do que o dobro dos 36 bilhões que são gastos agora. As projeções de custos, feitas, independentemente, pelo Departamento de Saúde, Educação e Bem-Estar Social e pela Universidade da Flórida indicam que para 1974 as cifras correspondentes serão de 107 bilhões contra 45 bilhões projetados agora; e estas cifras omitem totalmente os vultosos custos do que se chama «Educação Superior», para a qual a demanda cresce ainda mais rapidamente. Os Estados Unidos, que em 1969 gastaram perto de 80 bilhões de dólares no esquema de «defesa», incluindo a manutenção das tropas no Vietnã, são, evidentemente, pobres demais para oferecer igualdade de escolarização. O comitê presidencial para o estudo das finanças escolares deveria perguntar não como aguentar ou dar um jeito nesses custos crescentes, mas como evitá-los.
A escolarização obrigatória, igual para todos, deve ser reconhecida como impraticável, ao menos economicamente. Na América Latina, a quantia de numerário público gasta com cada estudante de grau universitário é 350 e 1.500 vezes a quantia gasta com um cidadão médio (isto é, o cidadão que está na faixa intermédia entre os mais pobres e os mais ricos). Nos Estados Unidos, a discrepância é menor mas a discriminação é mais refinada. Os pais mais ricos, uns 10%, podem oferecer a seus filhos educação em estabelecimentos particulares e conseguir que se beneficiem das verbas de fundações. E, além disso, obtêm dez vezes a quantia «per capita» do erário público se fizermos a comparação com a média «per capita» gasta com os filhos dos 10% mais pobres. As principais causas são que as crianças ricas permanecem mais anos na escola, que um ano numa universidade é desproporcionalmente mais caro que um ano no secundário e que a maioria das universidades particulares depende — ao menos indiretamente — do dinheiro arrecadado pelos impostos.
A escolarização obrigatória polariza inevitavelmente a sociedade; ela também hierarquiza as nações do mundo de acordo com um sistema internacional de castas. Países cuja dignidade educacional é determinada pela média de anos-aula de seus habitantes estão sendo classificados em castas, classificação que está intimamente relacionada com o produto nacional bruto e é muito mais dolorosa que esta última.
O paradoxo das escolas é evidente: quanto maiores os gastos, maior sua destrutividade tanto no interior de um país quanto no estrangeiro. Este paradoxo deve tornar-se assunto público. Admite-se geralmente, agora, que o ambiente físico será em breve destruído pela poluição bioquímica, a não ser que invertamos as tendências atuais de produção de bens físicos. Dever-se-ia reconhecer também que a vida social e pessoal está ameaçada igualmente pela poluição de Saúde, Educação e Bem-Estar Social, o inevitável subproduto do consumo obrigatório e competitivo de bem-estar.
A escalada das escolas é tão destrutiva quanto a escalada armamentista, mas de modo menos visível. Em toda parte do mundo os custos escolares aumentaram mais rapidamente do que as matrículas e que o Produto Nacional Bruto; em toda parte os gastos escolares permanecem sempre aquém das expectativas dos pais, mestres e alunos. Em toda parte esta situação desencoraja tanto a motivação quanto o financiamento de um plano em grande escala para a aprendizagem não-escolar. Os Estados Unidos estão provando ao mundo que nenhum país pode ser suficientemente rico para manter um sistema escolar que satisfaça as demandas que esse mesmo sistema cria pelo simples fato de existir, porque um sistema escolar bem sucedido escolariza pais e alunos para o supremo valor de um sistema escolar mais amplo cujo custo aumenta desproporcionalmente quando graus mais elevados estão em demanda e se tornam mais escassos.
Em vez de dizer que a igualdade escolar é temporariamente impraticável, devemos reconhecer que ela é, por princípio, economicamente absurda, e que tentá-la é algo intelectualmente castrador, socialmente polarizador, e destruidor da credibilidade do sistema político que a promove. A ideologia da obrigatoriedade escolar não aceita limites lógicos. A Casa Branca deu, recentemente, um ótimo exemplo disso. O Dr. Hutschnecker, o «psiquiatra» que tratou Nixon antes que fosse declarado idôneo para a candidatura, recomendou ao Presidente que todas as crianças entre seis e oito anos fossem examinadas por psiquiatras para se descobrir as que tinham tendências destrutivas e estas deveriam receber tratamento. Se necessário, deveriam ser reeducadas em instituições especializadas. Esta recomendação o presidente mandou-a ao Departamento de Saúde, Educação e Bem- Estar Social para ser apreciada. Realmente, campos de concentração preventivos para pré-delinquentes seriam um aperfeiçoamento lógico do sistema escolar.
A igualdade de oportunidades na educação é meta desejável e realizável, mas confundi-la com obrigatoriedade escolar é confundir a salvação com a Igreja. A escola tornou-se a religião universal do proletariado modernizado, fazendo promessas inúteis de salvação aos pobres da era tecnológica. O Estado-nação adotou-a, moldando todos os cidadãos num currículo hierarquizado, à base de diplomas sucessivos, algo parecido com os ritos de iniciação e promoções hieráticas de outrora. O Estado moderno assumiu a obrigação de impor os ditames de seus educadores por meio de inspetores bem intencionados e de exigências empregatícias; mais ou menos como o fizeram os reis espanhóis que impunham os ditames de seus teólogos pelos conquistadores e pela Inquisição.
Há dois séculos os Estados Unidos lideraram um movimento mundial para acabar com o monopólio de uma igreja única. Agora precisamos abolir constitucionalmente o monopólio da escola e, com isso, de um sistema que combina legalmente preconceito e discriminação. O primeiro artigo de uma Carta de Direitos de uma sociedade moderna e humanística corresponderia à primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos : «O Estado não fará leis para regulamentar a educação». Não haverá um ritual obrigatório para todos.
Para isto, precisamos de uma lei que proíba toda discriminação na contratação empregatícia, nas eleições, na admissão a centros de aprendizagem baseados na frequência prévia a determinado curso. Isto não excluiria a aplicação de testes de qualificação para o exercício de algum papel ou função, mas eliminaria a absurda discriminação atual em favor das pessoas que obtiveram determinada habilidade às custas de maiores somas do erário público, ou — caso bastante semelhante — que conseguiram um diploma que não tem relação nenhuma com qualquer emprego ou trabalho concreto. Somente resguardando as pessoas de serem desqualificadas por qualquer coisa em sua carreira escolar, pode a abolição constitucional da escola tornar-se psicologicamente efetiva.
A escolaridade não promove nem a aprendizagem e nem a justiça, porque os educadores insistem em embrulhar a instrução com diplomas. Misturam-se, na escola, aprendizagem e atribuição de funções sociais. Aprender significa adquirir uma nova habilidade ou compreensão, ao passo que a promoção depende da opinião formada de outros. A aprendizagem é, muitas vezes, resultado de instrução, ao passo que a escolha para uma função ou categoria no mercado de trabalho depende, sempre mais, do número de anos de frequência à escola.
Instrução é a escolha de circunstâncias que facilitam a aprendizagem. Os papéis são atribuídos por meio do estabelecimento de um currículo de condições que o candidato deve preencher a fim de ser aprovado. A escola associa a instrução, mas não a aprendizagem, a esses papéis. Isto não é nem razoável, nem libertador. Não é razoável porque não vincula as qualidades relevantes ou competências com os papéis, mas apenas o processo pelo qual se supõe sejam tais qualidades adquiridas. Não é libertador nem educacional, porque a escola reserva a instrução para aqueles cujos passos na aprendizagem se ajustam a medidas previamente aprovadas de controle social.
O currículo sempre foi usado para consignar um posto social. Às vezes podia ser pré-natal: o karma lhe determina uma casta e a linhagem o insere na aristocracia. Podia tomar também a forma de um ritual, de uma sequência hierarquizada de ordenações sacras; ou consistia numa sucessão de feitos na guerra ou caça; e posteriormente podia até depender de uma série escalonada de favores do príncipe. A escolaridade universal visava a separar a atribuição de funções da história pessoal individual. Visava a dar a cada um igual oportunidade para qualquer emprego. Ainda hoje em dia há pessoas que erroneamente creem que a escola faz depender a confiança pública das realizações relevantes da aprendizagem. Contudo, ao invés de igualar as oportunidades, o sistema escolar monopolizou sua distribuição.
Para separar competência de currículo, as investigações sobre o histórico da escolaridade de uma pessoa deveriam ser proibidas, da mesma forma como o são sobre credo político, freqüência à igreja, linhagem, hábitos sexuais ou origem racial. Leis devem ser promulgadas que proíbam a discriminação baseada na escolaridade prévia. Obviamente, as leis não podem acabar com os preconceitos contra os não-escolarizados, nem pretendem forçar alguém a casar-se com um autodidata, mas podem desencorajar a discriminação injustificada.
O sistema escolar repousa ainda sobre uma segunda grande ilusão: de que a maior parte daquilo que se aprende é resultado do ensino. O ensino, é verdade, pode contribuir para determinadas espécies de aprendizagem sob certas circunstâncias. Mas a maioria das pessoas adquire a maior parte de seus conhecimentos fora da escola; na escola, apenas enquanto esta se tornou, em alguns países ricos, um lugar de confinamento durante um período sempre maior de sua vida.
A maior parte da aprendizagem ocorre casualmente e, aliás, a maior parte da aprendizagem intencional não é resultado de uma instrução programada. As crianças normais aprendem sua primeira língua casualmente, ainda que mais rapidamente quando seus pais prestam atenção nelas. A maioria das pessoas que aprende bem outra língua aprende-a graças a circunstâncias particulares, e não à aprendizagem sequencial. Vão passar algum tempo com seus avós, viajam ou se enamoram de um estrangeiro. A fluência na leitura é também, quase sempre, resultado dessas atividades extracurriculares. A maioria das pessoas que lê muito e com prazer crê que aprendeu isso na escola; quando questionadas, facilmente abandonam esta ilusão.
Mas o fato de grande parte da aprendizagem parecer dar-se ocasionalmente e ser um subproduto de alguma outra atividade, definida como trabalho ou lazer, não significa que a aprendizagem planejada não se beneficie da instrução planejada e que ambas não necessitem de aperfeiçoamento. O aluno fortemente motivado que se defronta com a tarefa de adquirir uma habilidade nova e complexa pode beneficiar-se muito da disciplina atualmente associada com o mestre do passado que alfabetizava, ou ensinava hebraico, catecismo ou tabuada na base da decoreba. A escola tornou esse tipo de ensino raro e ignominioso, ainda que haja muitas aptidões que um estudante motivado e com capacidade normal possa assimilar em poucos meses, se ensinado nesta maneira tradicional. Isso vale tanto para aprender uma segunda ou terceira língua, quanto para ler ou escrever; para aprender as linguagens especiais da álgebra, programação em computadores, análise química, bem como para aprender habilidades manuais para ser datilógrafo, relojoeiro, encanador, eletricista, consertador de televisão; ou também dançar, dirigir carros e mergulhar.
Em certos casos, a admissão a um programa de aprendizagem que vise à obtenção determinada habilidade pode pressupor competência em outra habilidade, mas não deverá jamais depender do processo pelo qual tais habilidades pressupostas foram adquiridas. Consertar um aparelho de televisão pressupõe saber ler e alguma matemática; mergulhar exige saber nadar; dirigir carros, bem pouco de ambos.
O progresso na aprendizagem de habilidades é mensurável. Não é difícil precisar quais os melhores recursos necessários, em tempo e material, para um adulto médio motivado. O custo de ensinar uma segunda língua da Europa Ocidental, atingindo um nível elevado de fluência, fica entre quatrocentos a seiscentos dólares nos Estados Unidos; para uma língua oriental o tempo de instrução necessário poderá ser o dobro. Isto seria ainda muito pouco, comparado com o custo de doze anos de escola na cidade de Nova York (condição para admitir um funcionário no Departamento de Saneamento) — quase quinze mil dólares. Não há dúvida de que tanto o professor quanto o tipógrafo e o farmacêutico protegem seu comércio mediante a ilusão pública de que sua formação é muito cara.
Atualmente as escolas têm prioridade na maioria dos fundos educacionais. A formação profissionalizante que custa menos que a escolarização correspondente é, hoje, privilégio dos suficientemente ricos para dispensar a escola e daqueles que são enviados pelo exército ou por grandes empresas para se formarem no seu campo de trabalho. Num programa de gradativa desescolarização da educação nos Estados Unidos, haverá, no início, uma limitação dos recursos disponíveis para a formação profissionalizante. Mas, posteriormente, ninguém teria obstáculos para, em qualquer época de sua vida, escolher um tipo de instrução entre centenas de habilidades possíveis, às custas do erário público.
Já agora poderia ser providenciado um sistema de crédito educacional em todo e qualquer centro de capacitação, com quantias limitadas, para pessoas de todas as idades, e não apenas para os pobres. Eu imagino este crédito sob a forma de um passaporte educacional ou uma «carteira edu-crédito» («edu-credit card») , entregue a cada cidadão ao nascer. Para favorecer os pobres que provavelmente não usariam logo seus subsídios anuais, poderia haver uma cláusula dispondo que haveria certas vantagens para os usuários tardios dos «direitos» acumulados. Esses créditos vão permitir que a maioria das pessoas adquiram as habilidades mais demandadas quando quiserem, melhor, mais rapidamente, com menor custo e com menos efeitos colaterais indesejáveis do que na escola.
Já não faltarão por muito tempo professores potenciais de habilidades porque, por um lado, a demanda por uma habilidade se desenvolve com sua prática dentro de uma comunidade e, por outro, uma pessoa exercendo determinada habilidade também poderia ensiná-la. Mas, atualmente, os que exercem habilidades que estão em demanda e que exigem um professor humano são desencorajados a partilhar essas habilidades com outros. Isso é feito por professores que monopolizam as licenças de ensino ou por sindicatos que protegem seus interesses de classe. Centros de habilidades que fossem julgados pelos clientes a partir de seus resultados, e não a partir dos funcionários ou do processo usado, abririam oportunidades de trabalho insuspeitadas, com frequência até para aqueles que hoje são considerados inimpregáveis. Não há razão para que esses centros não possam estar no próprio local de trabalho, onde o empregador e sua força de trabalho fornecessem instrução, bem como empregos, para aqueles que escolhessem usar seus créditos educacionais desta maneira.
Surgiu em 1956 a necessidade de ensinar rapidamente espanhol a várias centenas de professores, assistentes sociais e ministros de religião na Arquidiocese de Nova York para que pudessem comunicar-se com os portorriquenhos. Meu amigo Gerry Morris anunciou por uma rádio hispânica que precisava de pessoas do Harlem que falassem espanhol. No dia seguinte havia uma fila de aproximadamente duzentos adolescentes diante de seu escritório, e ele escolheu quarenta e oito — muitos dos quais haviam abandonado a escola antes de concluírem o curso fundamental obrigatório. Treinou-os no uso do Manual de Espanhol publicado pelo Instituto de Serviço aos Estrangeiros dos Estados Unidos e indicado para uso de linguistas com treinamento superior, e em uma semana seus professores estavam trabalhando sozinhos, cada qual cuidando de quatro novaiorquinos que desejavam aprender a língua. Em seis meses a missão estava realizada. O cardeal Spellman pôde anunciar que havia 127 paróquias em que ao menos três membros da equipe sabiam comunicar-se em espanhol. Nenhum programa escolar teria obtido esses resultados.
Os instrutores tornam-se escassos por causa da crença no valor das licenças. O certificado constitui uma forma de manipulação mercadológica e é plausível apenas para uma mente escolarizada. A maioria dos professores de artes e comércio são menos hábeis, menos inventivos e menos comunicativos do que os melhores artesãos e comerciantes. A maioria dos professores de espanhol e francês que lecionam no secundário não falam essas línguas tão bem quanto seus alunos falariam depois de meio ano de treinamento adequado. Experiências feitas por Angel Quintero, em Porto Rico, mostram que muitos adolescentes, se tiverem incentivos adequados, programas e acesso a instrumentos, são muito mais eficientes para guiar seus colegas nas explorações científicas das plantas, das estrelas, e da matéria, e na descoberta de como e por que um motor ou rádio funciona do que a maioria dos professores escolares.
Se abrirmos o «mercado», as oportunidades de aprendizagem de habilidades podem ser vastamente multiplicadas. Isso depende de conjugar o professor certo com o aluno certo quando bem motivado por um programa inteligente, sem o constrangimento de um currículo.
A formação profissionalizante livre e aberta à concorrência é uma blasfêmia subversiva para o educador ortodoxo. Ela dissocia a aquisição de habilidades da educação «humanística» empacotada pelas escolas, e por isso favorece uma aprendizagem não-licenciada, bem como um ensino não-licenciado, para fins imprevisíveis.
Está em voga atualmente uma proposta que parece, à primeira vista, ser muito ajuizada. Foi elaborada por Christopher Jencks, do Center for the Study of Public Policy, e endossada pelo Office of Economic Opportunity. Ela defende que os «direitos» educacionais ou os subsídios educacionais sejam entregues aos pais ou alunos para que os gastem nas escolas de sua escolha. Essas prerrogativas individuais poderiam significar um importante passo na direção certa. Precisamos de uma garantia para o direito de cada cidadão a uma parte igual dos recursos educacionais oriundos dos impostos, o direito de fiscalizar esta parte, o direito de mover uma ação caso esta lhe seja negada. É uma forma de garantia contra a taxação regressiva.
A proposição de Jencks começa, porém, com a sinistra afirmação de que «conservadores, liberais e radicais, todos se queixaram, numa época ou noutra, de que o sistema educacional americano dá muito pouco incentivo aos educadores profissionais para que eles possam fornecer à maioria das crianças uma educação de alta qualidade». A proposta condena a si própria ao advogar subsídios educacionais que deveriam ser gastos em escolarização.
É o mesmo que dar a um coxo um par de muletas e recomendar- lhe que só as use amarradas uma na outra. Da maneira como se apresenta agora a proposta de subsídios educacionais, ela favorece o jogo não só dos educadores profissionais, mas também dos racistas, dos promotores de escolas religiosas, e de outros cujos interesses são socialmente segregacionistas. Enfim, restringir os «direitos» educacionais para uso exclusivo nas escolas favorece o jogo de todos os que querem continuar vivendo numa sociedade em que o progresso social está vinculado não a um conhecimento comprovado, mas a uma genealogia de aprendizagem pela qual se supõe que este seja adquirido. Esta discriminação em favor das escolas que predomina nas explanações de Jencks pelo refinanciamento educacional pode desacreditar um dos princípios mais necessários para a reforma do ensino: a devolução, ao educando ou ao seu tutor mais próximo, da iniciativa e responsabilidade financeira pela sua aprendizagem.
A desescolarização da sociedade implica um reconhecimento da dupla natureza da aprendizagem. Insistir apenas na formação profissionalizante seria um desastre; igual ênfase deve ser posta em outras espécies de aprendizagem. Se as escolas são o lugar errado para se aprender uma habilidade, são o lugar mais errado ainda para se obter educação. A escola realiza mal ambas as tarefas; em parte porque não sabe distinguir as duas. A escola é ineficiente no ensino de habilidades, principalmente por ser curricular. Na maioria das escolas, um programa que vise a fomentar uma habilidade está sempre vinculado a outra tarefa irrelevante. O ensino de História está ligado ao progresso em Matemática; e a assistência às aulas, ao direito de usar o campo de jogos.
A escola é ainda menos eficiente na concatenação das circunstâncias que incentivam o uso aberto e explorador das habilidades adquiridas, para o qual reservo o termo «educação liberal». A principal razão disso é que a escola é obrigatória e a escolarização tornou-se um fim em si mesma: uma estadia forçada na companhia de professores, compensada pelo duvidoso privilégio de poder continuar nessa companhia. Assim como o ensino de habilidades deve ser libertado de cerceamentos curriculares, também deve a educação liberal ser dissociada da freqüência obrigatória. Tanto a aprendizagem de habilidades quanto a educação do senso inventivo e criativo podem ser favorecidos por disposições institucionais, mas estes são de natureza diversa e muitas vezes oposta.
A maior parte das habilidades é adquirida e aperfeiçoada por exercícios práticos, porque uma habilidade implica o domínio de um procedimento definido e previsto. O ensino de uma habilidade pode basear-se, por isso, na simulação das circunstâncias em que ela será usada. Mas a educação do uso das habilidades criativas e inventivas não pode basear-se em tarefas repetitivas. A educação pode ser o resultado de uma instrução, mas de um tipo de instrução totalmente distinto da repetição. Ela deriva de uma relação entre colegas que já possuem algumas das chaves que dão acesso à informação memorizada e acumulada na comunidade e pela comunidade. Baseia-se no esforço crítico de todos os que usam estas memórias criativamente. Baseia-se na surpresa da pergunta inesperada que abre novas portas para o pesquisador e seu colega.
O instrutor de habilidades se apóia num conjunto de circunstâncias que permitem ao aprendiz desenvolver respostas padronizadas. O guia ou mestre educacional está preocupado em ajudar parceiros que combinam entre si a encontrar-se, para que o aprendizado possa acontecer. Ele junta indivíduos que partem de suas próprias questões não resolvidas. No máximo, ajuda o aluno a formular sua perplexidade, pois somente uma clara formulação do problema lhe dará a possibilidade de encontrar seu companheiro, movido, assim como ele, naquele momento, a investigar o mesmo assunto no mesmo contexto.
Reunir colegas para fins educacionais parece, à primeira vista, mais difícil que encontrar instrutores de habilidades e parceiros para um jogo. Uma das razões é o profundo medo que a escola implantou em nós, medo esse que nos torna severos. A troca não-autorizada de habilidades — mesmo de habilidades indesejadas — é mais viável e por isso parece menos perigosa do que a oportunidade ilimitada de reunir pessoas que compartilham um interesse que para elas, naquele momento, é social, intelectual e emocionalmente importante.
O professor brasileiro Paulo Freire sabe disso por experiência. Ele descobriu que qualquer pessoa adulta pode começar a ler em questão de quarenta horas se as primeiras palavras que decifrar estiverem carregadas de significado para ela. Paulo Freire faz com que os «alfabetizadores» se desloquem para algum lugarejo e descubram palavras que traduzam assuntos importantes e atuais, como o acesso a um açude ou as dívidas com o patrão. À noite os moradores se reúnem para discutir essas palavras-chave. Começam a perceber que cada palavra permanece no quadro-negro mesmo depois que o som dela tenha desaparecido. As letras continuam a revelar a realidade e a torná-la manejável como um problema. Constatei muitas vezes como os participantes dessas discussões cresciam em consciência social enquanto aprendiam a ler e a escrever. Parecia que tomavam a realidade em suas mãos quando escreviam-na no papel.
Lembro-me de um homem que se queixava do pouco peso do lápis : era difícil manejá-lo porque não pesava tanto quanto uma pá; lembro-me também de outro que no caminho para o trabalho parou com seus companheiros e escreveu no chão, com a enxada, a palavra que haviam discutido: água.
A combinação educacional entre pessoas que foram devidamente escolarizadas é tarefa diferente, mas os que não precisam dessa ajuda são minoria, mesmo dentre os leitores de sérias revistas acadêmicas. A maioria não pode, nem deveria, ser reunida para discutir um slogan, uma palavra em um quadro. A idéia, porém, é a mesma: poderão reunir-se em torno a um problema escolhido e definido por eles mesmos. A aprendizagem criativa e pesquisadora requer que os participantes todos estejam igualmente perplexos perante os mesmos termos ou problemas. Grandes universidades tentam inutilmente alcançar esta aprendizagem multiplicando os cursos; mas geralmente fracassam porque estão presos a currículos, estruturas de curso e administração burocrática. Nas escolas, inclusive nas universidades, gasta-se a maioria dos recursos tentando comprar o tempo e a motivação de um número limitado de pessoas para que elas assumam determinados problemas e os resolvam segundo um programa ritualmente definido. A mais radical alternativa para a escola seria uma rede ou um sistema de serviços que desse a cada homem a mesma oportunidade de partilhar seus interesses com outros motivados pelos mesmos interesses.
Para esclarecer, tomemos um exemplo: como poderia funcionar um encontro intelectual em Nova York. Qualquer pessoa, em qualquer momento e por um preço mínimo, poderia identificar-se num computador dando-lhe endereço, número de telefone e indicando o livro, artigo, filme ou gravação sobre os quais gostaria de discutir com um parceiro qualquer. Dentro de poucos dias poderia receber pelo correio uma lista de outras pessoas que, recentemente, tomaram a mesma iniciativa. Com esta lista poderia combinar, por telefone, um encontro com pessoas que inicialmente seriam conhecidas apenas pelo fato de terem procurado um diálogo sobre o mesmo assunto.
Congregar pessoas de acordo com seus interesses por determinado assunto é muitíssimo fácil. Permite a identificação simplesmente à base do mútuo desejo de discutir uma afirmação feita por uma terceira pessoa, e deixa a iniciativa de combinar o encontro com o indivíduo. Levantam-se normalmente três objeções contra essa minha sugestão, que ainda está em estruturação. Vou apresentá-las não só para esclarecer a teoria subjacente à sugestão — porque elas ilustram a arraigada resistência à desescolarização da educação e à separação da aprendizagem do controle social — mas também porque podem ajudar a sugerir recursos existentes e que não são atualmente usados para fins de aprendizagem.
A primeira objeção é: por que a auto-identificação não pode ser baseada também numa idéia ou num tema? Certamente, esses termos subjetivos também poderiam ser usados num sistema de computador. Os partidos políticos, as igrejas, sindicatos, clubes, associações de vizinhos e sociedades profissionais já organizaram suas atividades educacionais dessa maneira e, na realidade, atuam como escolas. Congregam pessoas para examinar certos «temas»; estes são tratados em cursos, seminários e currículos em que os presumíveis «interesses comuns» estão previstos. Esses encontros temáticos são, por definição, centrados em professores: requerem uma presença autoritária que defina para os participantes o ponto inicial de sua discussão.
Em contrapartida, nos encontros por motivo de um título de livro ou filme, etc., na sua forma mais simples, deixa-se ao autor definir o linguajar específico, os termos e a estrutura em que se coloca determinado problema ou acontecimento; e isto possibilita aos que aceitam este ponto de partida identificarem-se uns aos outros. Reunir, por exemplo, pessoas em torno da idéia de «revolução cultural» leva, geralmente, à confusão ou à demagogia. Mas reunir interessados em ajudar-se mutuamente a entender determinado artigo de Mao, Marcuse, Freud ou Goodman está dentro da vasta tradição de aprendizagem liberal, desde os Diálogos de Platão — que se baseiam em supostas afirmações de Sócrates — até os comentários de Tomás de Aquino sobre as sentenças de Pedro Lombardo. A idéia de reunir-se em torno a um título é, pois, totalmente diversa da teoria em que se baseou a criação dos clubes de leitura de clássicos: em vez de basear-se na seleção de alguns professores de Chicago, quaisquer dois parceiros podem escolher qualquer livro para uma análise mais aprofundada.
A segunda objeção: por que não incluir na identificação dos que procuram parceiros informações sobre idade, antecedentes, visão de mundo, competência, experiência, ou outra característica? Novamente, não haveria razões contrárias à possível ou efetiva introdução dessas restrições discriminatórias em algumas das muitas Universidades — com ou sem paredes — que poderiam usar a combinação de credenciais como instrumento organizacional básico. Consigo imaginar um sistema destinado a incentivar encontros de pessoas interessadas em que o autor do livro escolhido esteja presente ou representado; ou um sistema que garanta a presença de um orientador competente; ou um sistema a que tenham acesso apenas os alunos inscritos num departamento ou matriculados numa escola; ou ainda um sistema que permita encontros apenas de pessoas que definiram sua posição básica em relação ao livro a ser debatido. Poder-se-ia encontrar, para cada uma dessas restrições, vantagens com fins específicos de aprendizagem. Mas temo que, no mais das vezes, o motivo real de propor tais restrições seja a desconfiança, oriunda da presunção de que as pessoas são ignorantes: os educadores querem evitar que ignorantes se reúnam com ignorantes em torno a um texto que eles podem não compreender e que leem apenas porque estão interessados.
A terceira objeção: por que não dar, aos que procuram parceiros, uma assistência incidental que facilitará seus encontros — espaço, horário, material e proteção? Isto é feito atualmente pelas escolas com toda a ineficiência característica das grandes burocracias. Se deixarmos a iniciativa das reuniões aos que procuram parceiros, as organizações que ninguém, hoje em dia, classifica de educacionais, provavelmente farão isto bem melhor. Penso nos proprietários de restaurantes, editores, serviços telefônicos, gerentes das secções de grandes firmas comerciais, agentes de viagens que poderiam melhorar seus serviços tornando seus recintos atrativos para reuniões educacionais.
Num primeiro encontro, digamos, num café, os parceiros poderiam identificar-se colocando o livro em discussão próximo a suas xícaras. As pessoas que tomaram a iniciativa desses encontros logo aprenderão quais itens abordar para encontrar as pessoas que procuravam. O risco de que a discussão auto-escolhida com um ou mais estranhos possa levar à perda de tempo, desilusão ou mesmo a enfado é, certamente, menor que o mesmo risco assumido por um candidato à escola. Um encontro arranjado pelo computador para discutir um artigo que apareceu numa revista nacional, mantido num café perto da Quarta Avenida, não obrigará nenhum dos participantes a ficar na companhia de seus novos conhecidos por mais tempo do que leva para tomar uma xícara de café, nem estará obrigado a encontrar-se com qualquer um deles uma segunda vez. Há grandes oportunidades de que isso ajudará a descerrar a opacidade da vida numa cidade moderna, a fazer novas amizades, a realizar trabalhos auto-escolhidos e fazer leituras críticas. (É inegável o fato de que o FBI poderia obter um registro das leituras e encontros das pessoas; que isto ainda preocupe a alguém em 1970 é divertido para um homem livre que, quer queira quer não, contribui com sua parte para afogar os bisbilhoteiros nas ninharias que ficam coletando).
Tanto o intercâmbio de habilidades quanto o encontro de parceiros baseiam-se no pressuposto de que educação para todos significa educação por todos. Não é o recrutamento para instituições especializadas que leva a uma cultura popular, mas sim a mobilização de toda a população. O direito igual de cada pessoa de exercer sua competência para aprender e instruir-se é, atualmente, impedido de antemão pelos professores licenciados. Por sua vez, a competência do professor é restringida ao que é permitido fazer na escola. Além disso, como resultado, trabalho e lazer estão alienados um do outro: supõe-se que tanto o espectador quanto o trabalhador cheguem ao local de trabalho prontinhos para ajustar-se a uma rotina preparada para eles. A adaptação, na forma usada nos projetos de produtos; a instrução e a publicidade moldam-nos para suas funções tão bem quanto a educação formal, ministrada nas escolas. Uma alternativa radical para uma sociedade desescolarizada exige não apenas mecanismos novos e formais para a aquisição formal de habilidades e sua aplicação educacional. Uma sociedade desescolarizada implica uma nova abordagem da educação incidental ou informal.
A educação incidental não pode mais voltar às formas que a aprendizagem teve nos povoados ou nas cidades medievais. A sociedade tradicional era mais parecida a um conjunto de círculos concêntricos de estruturas significativas, ao passo que o homem moderno precisa aprender a encontrar sentido em muitas estruturas às quais está ligado apenas marginalmente. Nos povoados, a linguagem, a arquitetura, o trabalho, a religião e os costumes familiares eram coerentes e se explicavam e se reforçavam mutuamente. Crescer num deles implicava crescimento nos outros. Mesmo o aprendizado especializado era subproduto de atividades especializadas, como fazer sapatos ou cantar salmos. Mesmo que um aprendiz jamais chegasse a mestre ou perito, contribuía para fazer sapatos ou para solenizar os serviços religiosos. A educação não competia em tempo com o trabalho e nem com o lazer. Quase toda a educação era complexa, durava a vida toda e não era planejada.
A sociedade contemporânea é o resultado de projetos conscientes, e neles devem ser projetadas oportunidades educacionais. Nossa confiança na instrução especializada e de tempo integral pela escola tende a diminuir; temos de achar outras maneiras de aprender e ensinar: a qualidade educacional de todas as instituições deverá aumentar novamente. Este prognóstico é, no entanto, muito ambíguo. Pode significar que os homens da era moderna serão sempre mais vítimas de um processo real de instrução e manipulação total uma vez que sejam privados até da mais tênue pretensão de independência crítica que as escolas liberais ora proveem para, ao menos, alguns de seus alunos.
Pode significar também que os homens vão escudar-se menos atrás de certificados obtidos em escolas, ganhando coragem para «responder à altura» e desse modo controlar e instruir as instituições de que participam. Para assegurar isto devemos aprender a medir o valor social do trabalho e do lazer pela permuta educacional que eles ensejam. A participação efetiva na política de uma rua, de um lugar de trabalho, de uma biblioteca, de um programa noticioso ou de um hospital é, portanto, a melhor medida para avaliar seu nível como instituição educacional.
Recentemente, falei a um grupo de alunos do segundo grau que estavam organizando um movimento de resistência contra a obrigatoriedade de terem de ingressar na série seguinte. Seu lema era: «participação, mas não simulação». Estavam decepcionados porque isto fora interpretado como exigência de menos educação, não de mais. Lembrei-me da resistência que Karl Marx opôs a um item do programa Gotha que há cem anos queria proibir o trabalho infantil. Opôs-se porque achava que a educação dos jovens só podia dar-se no trabalho. Se o melhor fruto do trabalho humano for a educação que dele provém e a oportunidade que dá ao homem de iniciar a educação de outros, então a alienação da sociedade moderna no sentido pedagógico é ainda pior que sua alienação econômica.
O maior obstáculo para chegar a uma sociedade que realmente eduque foi muito bem definido por um amigo meu, negro, em Chicago. Disse-me que nossa imaginação estava «totalmente escolarizada». Permitimos que o Estado ausculte as deficiências educacionais universais de seus cidadãos e crie uma repartição especializada para tratá-las. Partilhamos, portanto, da ilusão de que é possível distinguir entre o que é educação necessária para os outros e o que não é, exatamente como as gerações passadas que faziam leis para definir o que era sagrado e o que era profano.
Durkheim dizia que o fato de se dividir a realidade social em dois campos foi a verdadeira essência da religião antiga. Há, dizia ele, religiões sem o sobrenatural e religiões sem deuses, mas nenhuma que não subdivida o mundo em coisas, tempos e pessoas que são sagrados e outros que, conseqüentemente, são profanos. A constatação de Durkheim pode ser aplicada à sociologia de educação, pois a escola é, também, numa perspectiva bem semelhante, absolutamente divisória.
A simples existência da escolaridade obrigatória divide qualquer sociedade em dois campos: certos períodos de tempo, processos, serviços e profissões são «acadêmicos» ou «pedagógicos», outros não. O poder de a escola dividir a realidade social não tem limites: a educação torna-se algo «não-do-mundo» e o mundo torna-se não-educativo.
A partir de Bonhoeffer, os teólogos contemporâneos chamaram a atenção para a confusão hoje existente entre a mensagem bíblica e a religião institucionalizada. Apelam para a experiência quando dizem que a liberdade cristã e a fé, geralmente, tiram proveito da secularização. Suas afirmações, evidentemente, soam blasfemas para certos eclesiásticos. Sem dúvida, o processo educacional se beneficiará da desescolarização da sociedade, mesmo que esta exigência soe para muitos escolarizantes como uma traição ao iluminismo. Mas é o próprio iluminismo que está sendo extinguido nas escolas.
A secularização da fé cristã depende da dedicação que a ela têm os cristãos enraizados na Igreja. De forma algo semelhante, a desescolarização da educação depende da liderança dos que foram criados nas escolas. Não podem servir-se do currículo como álibi para a tarefa: cada um de nós permanece responsável pelo que foi feito de si, mesmo que nada mais possa fazer do que aceitar sua responsabilidade e servir como advertência aos outros.
1 JACKSON, Penrose B. Trends in Elementary and Secondary Education Expenditures: Central City and Suburban Comparisons, 1965 to 1968. U.S. Office of Education, Office of Program and Planning Evaluation, junho de 1969.
2 Trata-se do Department of Health, Education, and Welfare, extinto em 1979. (PSC)