130 Proteger nossos desejos
O começo de uma série de vídeos gratuitos de introdução à teoria mimética
Este é o começo de uma série de vídeos gratuitos sobre a teoria mimética de René Girard — apenas sobre o desejo mimético. Nesta era marqueteira, nesta era do «conteúdo», gostaria que as pessoas entendessem melhor como seus desejos podem ser manipulados.
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1 Proteger nossos desejos
Nunca a capacidade humana de desejar foi tão assediada, tão acossada, e, por isso mesmo, tão desperdiçada. Nunca foi tão necessário ter discernimento quanto aos mecanismos do desejo, sobretudo para preservar a si mesmo.
Porque não se trata apenas de falar de marqueteiros profissionais que tentam fazer com que desejemos produtos que eles querem vender. Hoje estamos cercados de «conteúdo», isto é, de pessoas que exibem seu estilo de vida e que, sem nem sequer ter essa intenção, fazem com que nos sintamos questionados. Eu não deveria ser rico? Estou usando toda a minha capacidade? Não preciso de uma rotina produtiva? Meu corpo não está inflamado? Serei um homem de verdade, uma mulher de verdade? Estou cumprindo minha missão na vida?
Se antes tínhamos uma certa tendência a estar perdidos, agora somos dominados pela sensação de que deveríamos estar fazendo algo, de que estamos faltando com alguma obrigação moral, de que nossa vida é menos quando poderia perfeitamente ser mais, e de que, se não é mais, a culpa é exclusivamente nossa.
Se estamos nas redes sociais, participamos da conteudização de tudo. Um simples café fotografado e exibido deixa de ser apenas um café, um prazer simples e anônimo, e passa a ser a marca de um estilo de vida. Não devo eu também tomar um café para mostrar para os outros que estou vivendo os prazeres simples da vida? Esse café não é um sinal de leveza e, ao mesmo tempo, de rotina ou de quebra de rotina? Subitamente, tudo se torna um possível elemento de uma história — de um story do Instagram.
Estamos mais do que nunca atentos à maneira como somos vistos. Bom era o tempo em que uma persona pública convencional era um modo de relaxar e prestar atenção em outras coisas. Hoje precisamos cultivar nossa imagem porque nem tão no fundo assim sentimos que somos nada, mas precisamos mostrar que somos tudo. O café exibido se torna um sinal da plenitude: veja, estou vivendo minha vida, e você, você aí, está apenas assistindo à minha vida pela telinha do celular…
Os marqueteiros profissionais, por sua vez, já não têm qualquer pudor, e isso porque nós mesmos já acreditamos que estamos «vendendo o tempo inteiro». Antigamente, a tentativa de venda tinha hora e lugar marcado. Eram os comerciais dos programas de TV e de rádio, os anúncios nos jornais e revistas, os outdoors nas ruas. A propaganda podia manipular nosso desejo, mas a luta era mais limpa porque tínhamos uma noção melhor de quando estávamos expostos a ela. Com a conteudização de tudo, com a infomercialização de tudo, você o tempo inteiro suspeita que está sendo induzido a preparar o PIX.
Digo isso e me ocorrem dois exemplos extremos.
De um lado, já vi um famoso marqueteiro explicar abertamente como se deve pôr o cliente num estado de transe hipnótico — isso não deveria ser crime? Claro que a ideia principal é que a venda não deve ter cara de venda, que o vendedor (que não deve ser enxergado como vendedor) deve «quebrar as objeções» do cliente, e isso faz parte do uso de histórias (que em português hoje atende pelo nome de storytelling) e da conteudização de tudo. Mas o cliente não deve nem mesmo perceber o que está fazendo…?
(Aliás, porque a venda seria uma das únicas atividades que não deve se parecer com o que ela é? A única outra que me ocorre agora é a prostituição, que precisa criar a ilusão de uma conexão genuína.)
De outro, a melhor mensagem que já recebi no meu perfil no Instagram veio de um rapaz que, logo após começar o mestrado em literatura, ficou relaxadamente surpreso porque, ao fim da aula, o professor não acionava nenhum gatilho de vendas. Estava tão acostumado a ser tratado como cliente o tempo inteiro por seus prováveis professores que tinha esquecido como era o ensino sem venda.
Não me cabe, contudo, ser burro e começar a distribuir acusações. No nosso sistema econômico, o desejo alheio é o ouro de antigamente. Como escreveu Jean-Michel Oughourlian, «hoje o dinheiro precisa ser seduzido». Pagamos primeiro por aquilo de que precisamos, e depois pagamos por aquilo que desejamos — mas estamos convencidos de que também precisamos daquilo que desejamos. E hoje estamos expostos a tantos modelos para os nossos desejos que, muitas vezes, não sabemos nem por onde começar. O que é mais importante, enriquecer ou ter um corpo desinflamado? Mas o corpo desinflamado não ajuda a produzir e, portanto, a enriquecer? Ou depois de enriquecer eu terei tempo para desinflamar? Ou, ainda, por que não tentar as duas coisas ao mesmo tempo?
Se a descrição que fiz do problema, caro leitor, lhe diz algo, creio que você espera uma solução. Pois agora, em vez de atuar como tantos críticos culturais que se contentam em descrever o problema (deixando você mais inteligente, é verdade, mas igualmente na pior), quero oferecer essa solução. Se você está vendo o vídeo, a solução é gratuita e será publicada no YouTube e no Instagram. Se você ler este texto até o fim, então já pagou por ele. Acredito, aliás, que o público que paga para ler é mais seletivo e interessado.
A solução passa por um entendimento dos mecanismos do desejo. Se você conseguir observá-los em si mesmo, saberá se posicionar melhor em cada situação, e talvez até venha a ter menos desejos, porque seus desejos terão mais foco e relevância para a sua própria vida.

Essa solução será oferecida na forma de uma apresentação de alguns pontos da teoria mimética de René Girard, que em 1961 publicou Mentira romântica e verdade romanesca. A obra vale como introdução do seu «desejo mimético» (ainda chamado de «desejo triangular» nela) e conta uma história do desejo — uma história do agravamento do desejo — a partir de cinco escritores: Cervantes, Flaubert, Stendhal, Proust, e Dostoiévski. Pretendo, aqui, selecionar alguns dos principais temas do livro e apresentá-los mais ou menos na ordem em que aparecem.
Esses pontos serão apresentados sempre em conexão com a literatura e com temas prementes da nossa experiência cotidiana. Afinal, hoje todos somos um pouco Emma Bovary, um pouco Julien Sorel, um pouco como o narrador de Memórias do subsolo. Se hesito ao máximo intitular esse meu esforço «O que a grande literatura pode ensinar sobre o desejo» para não agir como tantos que olham a arte de maneira extrativista, como se eles fossem a Vale do Rio Doce da Cultura, também não deixo de admitir que o título valeria. Porém, espero que, após acompanhar estes textos, o leitor fique mais intrigado do que satisfeito, mais aberto ao mundo do que com a sensação de que tirou um item da sua lista de afazeres.
2 Enxergando o mimetismo
Há menos consciência no mimetismo, e mais na imitação.
— René Girard, Evolução e conversão, p. 83
Hoje todos sabemos que existem «influenciadores», o que significa que existem «influenciados». Temos, porém, uma relação um tanto complicada com essa realidade. Não gostamos muito de admitir que fomos influenciados, a menos que consigamos delimitar muito bem a influência alheia, e que consideremos que a pessoa que nos influenciou é sob algum aspecto admirável. Os outros, os outros sim é que podem ser influenciados; eles é que são a manada.
No entanto, antes de falarmos do desejo mimético, prestemos atenção no puro e simples mimetismo. Aristóteles diz na Poética (1448b) que «o homem é o mais imitativo dos animais», e todos podemos ver, por exemplo, que adquirimos o nosso idioma materno sem que ele nos fosse ensinado. Os linguistas, inclusive, distinguem entre «adquirir» um idioma, que é o que ocorre com as crianças até certa idade, e «aprender» um idioma, que é o que nos resta fazer depois dessa idade. A aquisição de um idioma é mimética, acontece sem que você perceba como exatamente está acontecendo. Já o aprendizado de um idioma é um processo consciente, deliberado, imitativo. Quantas vezes eu mesmo, que leio francês muito bem, já não penei vendo vídeos no YouTube que ensinam a pronunciar «un bon vin blanc», que não é simplemente «ãn bõn vãn blãn»… Sabemos o quanto nos custou aprender a falar bem um idioma estrangeiro, ou o quanto ainda nos custaria.
Ou ainda: cá no Brasil não questionamos o fato de usarmos talheres para comer, e provavelmente não nos lembramos de como foi que começamos a usá-los na infância. O uso de talheres anda junto com o desenvolvimento das habilidades motoras finas. Mas, um pouco mais velhos, não nos embananamos um pouco para aprender a usar pauzinhos para comer um sushi? Na nossa primeira ida ao restaurante japonês, não precisamos imitar, tão desajeitada quanto deliberadamente?
Num nível mais sofisticado, já não vimos, num museu, uma estudante de artes sentada em frente a um quadro, com um grande caderno, desenhando aquilo que vê? Ela está imitando o olhar dos mestres, tentando ver o que eles viram, descobrir na famosa prática quais problemas eles enfrentaram. Essa estudante, por sua vez, age como alguém que tenta reproduzir uma receita que viu no YouTube.
A maior parte da teoria mimética — ou, ao menos, dos trabalhos de teoria mimética já desenvolvidos até hoje — vai tratar de um mimetismo que em geral não percebemos, ou preferimos não perceber: o desejo mimético. Imitar um quadro não escandaliza ninguém, nem ninguém pretende dizer que, ainda na infância, inventou seu próprio idioma e fez com que os outros o aprendessem. Porém, acreditamos que todos os nossos desejos são nossos, e que são justificados porque os objetos que desejamos são desejáveis por si mesmos.
Isso talvez fosse verdade se fôssemos pessoas tremendamente racionais. Talvez o spoudaios, o homem maduro de Aristóteles, deseje as coisas apenas porque são desejáveis em si mesmas, por suas qualidades intrínsecas. Talvez esse spoudaios (ou essa spoudaia) seja capaz de imitar modelos que sua razão lhe diz serem bons, e talvez sua vontade seja tão potente que seja capaz de cortar pela raiz o mimetismo dos desejos. Contudo, devo dizer, sem querer me adiantar agora, que até disso eu duvido, pois muitas coisas, inclusive as melhores, vêm desse mimetismo, e estar atento demais a ele pode frustrar seu processo.
Volta e meia recebo mensagens de pais de primeira viagem que, ao observar crianças, parecem estar confirmando o desejo mimético. O que uma criança quer? Aquilo que outra quer também. O que um adolescente quer? Aquilo que seu amigo quer.
Quando somos adultos, porém, temos a maior facilidade para enxergar o mimetismo nos outros, ao passo que o nosso próprio mimetismo nos escapa. Contudo, nosso mundo é mimético até demais, e o próprio capitalismo vive de gerar e de conter (com mais sucesso do que qualquer outro sistema até hoje) o mimetismo.
Gosto de fazer um pequeno exercício para detectar o desejo mimético. Ele está associado a um prestígio, a uma certa mágica que recobre os objetos para além das suas «qualidades intrínsecas». Assim, costumo dar um exemplo para os alunos dos meus cursos e seminários.