Quebra-Cabeças #001
Ainda; «Fabelmans»; Shakira no subsolo; Chesterton e os contos de fadas
Do título desta nova seção da newsletter — Tenho ouvido muito a música «Rompecabezas», da dupla argentina Ainda. Sim, Ainda. A palavra «ainda» não existe em espanhol — para dizer o nosso «ainda» português, use todavía ou aun (pronunciado a-un, com hiato). Sim, é uma dupla argentina que tem um nome em português. E, como sou um inveterado argentinófilo, com doutorado sobre Facundo, uma das obras fundadoras da literatura nacional argentina, um argentinófilo que todos os dias sente saudades de caminhar pela calle Serrano, indo de Villa Crespo para Palermo Soho, começo o «Quebra-Cabeças» com essa música, com o nome dessa música, que fala de um prazer intelectual, mas fazendo a importante ressalva de que não se trata de um quebra-cabeças que tem uma figura pré-determinada: «a veces se arma, a veces no». Se esta seção com notas mais curtas sobre temas variados vier a formar uma figura, só saberemos quando eu parar, ou quando eu morrer, o que provavelmente será a mesma coisa.
The Fabelmans — Houve algum momento na história da nossa americanização em que passamos a dizer no plural os sobrenomes, ou nomes de famílias. Não os Silva, ou o clã dos Silva, com ou sem ironia, mas os Silvas. Claro que a exceção vem de Os Maias, romance de Eça de Queiroz. Ainda assim, tenho a lembrança de que antigamente se falava de outro jeito. Hoje, quando leio «os Bolsonaros» penso num exército de clones de Jair Bolsonaro, e não deixo de notar a semelhança da palavra com «brontossauro».
Mas The Fabelmans. Fora aquela impressão de que Michelle Williams está sempre tentando fazer o papel de uma boa atriz, e de eu ter me perguntado se realmente teria assistido ao filme até o fim caso o tivesse visto em casa, há bonitas sequências, sobretudo aquela em que o adolescente Fabelman Jr. Que Vai Virar Cineasta monta o filminho dos dias de acampamento da família e descobre aquilo de que o espectador já suspeitava.
No mais, ver um filme de cinemão, um filme americanão e comercialzão, que não se parece com um videogame, em que os personagens não estão trocando alfinetadas espertinhas a cada minuto, um filme de criança e de adolescente que só um adulto poderia fazer… Por si, isso se tornou um prazer à parte.
Também é interessante pensar em como certas realidades parecem datadas. A grande mãe que cuida de toda a casa, faz todo o trabalho doméstico, sacrifica a carreira de pianista pelo marido… Hoje, a figura seria contrária: o homem de avental preparando uma comida fantástica para uma mulher talentosa que o admira. O que, me parece, vai além do feminismo: serei cancelado ao sugerir que as mulheres gostam mais de comer, e de comer bem, do que os homens? Talvez elas é que sejam pegas pelo estômago, se é que alguém se lembra do ancestral dito popular.
Não digo que veria de novo, mas muchas gracias, señor Spielberg.
Shakira no subsolo — Quando me perguntam o que é o subsolo de Dostoiévski, sempre me lembro de uma piada publicada na Casseta Popular na década de 1980 ou de 1990. Os lendários humoristas propunham, como sinopse para a clássica série de filmes de terror Sexta-Feira 13, algo como «Jason é esquartejado, picado, queimado até virar cinzas, e jogado no mar. Depois, volta dizendo: “Não doeu! Não doeu!”»
O subsolo é isto: estar perdendo mas querer fazer com que os outros pensem que você está ganhando. Ele se tornou um traço dominante da cultura popular. Antigamente as músicas diziam «eu te amo, que saudade, sem você não sou ninguém», e hoje isso se tornou um gênero particular, a «sofrência» sertaneja. De resto, o que mais temos é «sou o máximo, você nem chega aos meus pés, eu não estou nem aí e você me idolatra» — e é claro que o mero fato de alguém fazer uma música para dizer isso já mostra a falsidade dessa atitude.
Penso na Shakira, que surgiu cantando «estoy aqui, queriéndote» e agora canta «Una loba como yo no está pa' novato' / Una loba como yo no está pa' tipos como tú».
Preciso aqui fazer aquela vênia às turbas enfurecidas e avisar que oh! não! não estou defendendo o Piqué! — estou me perguntando aonde é que vamos parar se você não pode mais ser uma vítima em público, se não pode estar por baixo em público.
Num clima mais próximo dos Fabelmans, sometimes we cry.
Duas newsletters para você assinar — O fato é que entrei no Substack, ele me ofereceu várias «funcionalidades» (se você pensar bem, que palavra mais estranha), várias pessoas tiveram a gentileza de mencionar minha newsletter… e eu fui ficando para trás, meio atropelado pelas obrigações, pelos projetos, pela disfunção temporal-mandibular que espero resolver ou amenizar consideravelmente em 2023. É hora de começar a responder e de recomendar outros autores por aqui; é mais do que hora.
Começo com dois jovens.
André Catapan (no Instagram, @andrecatapan) começou a fazer algo que já deveria ter sido feito há muito tempo: destilar o que é realmente a dica que interessa em textos e em conteúdos diversos de auto-ajuda e de aprimoramento profissional. Assim, em vez de ler 138 páginas para saber que talvez seja boa ideia acordar e encher uma página de caderno, você pode ler os brevíssimos textos da Newsletter do Catapan.
Ana Carolina Romero, com ambições mais propriamente literárias, nos traz um texto sobre o filme Aftersun, que ainda não vi. Creio que o ensaio literário brasileiro tem um problema, que é precisamente aquele que enfrentado no ensaio: a integração de lembranças pessoais numa reflexão que possa interessar a todos. O ensaísta brasileiro tem muitas idiossincrasias charmosas para contar, quer falar da sua ligação especial com sua avó, do bolinho que ela fazia todo dia às quatro da tarde e que, de tão delicioso, raramente chegava ao dia seguinte. Muito bonito, mas você tem suas lembranças, eu tenho as minhas, e a comunicação dessas lembranças, fora de um projeto intelectual, vira pura fofoca. Não é por acaso que há quem pense que o prestígio intelectual vale menos do que o peso argentino.
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«Uma atualização quanto à adunação», de James Alison — Fiz essa tradução pensando no quanto a palavra inglesa atonement era difícil de traduzir. Reparação? Expiação? Redenção? No fim, o próprio James aprovou a «adunação». Explico tudo no começo do texto — é só clicar.
«Os Contos de Fadas», de Chesterton — Eu tinha pensado em fazer do vídeo abaixo uma aula para o curso «Escrever com clareza», mas a verdade é que eu gostaria de comentar alguns pontos do texto que não dizem respeito apenas à sua construção.
O que tenho a dizer está no vídeo, mas adianto que nunca fui admirador de Chesterton… (Embora não tenha começado a espinafrá-lo.)
O texto de Chesterton está logo abaixo do vídeo.
Até as próximas peças!
Contos de fadas
G.K. Chesterton (tradução de Pedro Sette-Câmara)
Algumas pessoas solenes e superficiais (e quase todas as pessoas muito superficiais são solenes) afirmaram que os contos de fadas são imorais; elas baseiam essa afirmação em algumas circunstâncias acidentais ou em incidentes lamentáveis da guerra entre gigantes e garotos, tendo estes últimos, em alguns episódios daquela, refestelado-se em impiedosos truques e até mesmo em pegadinhas. A objeção, porém, não apenas é falsa, como ainda corresponde ao oposto dos fatos. Em sua raiz, os contos de fadas não são apenas morais no sentido de serem inocentes, como são morais no sentido de serem didáticos, morais no sentido de serem moralizantes. É muito bonito falar da liberdade do mundo das fadas, mas, segundo os melhores relatos oficiais, no mundo das fadas a liberdade era bem pequena, isso sim. O sr. W.B. Yeats e outras almas sensíveis modernas, julgando que a vida moderna é a mais sombria escravidão a jamais ter oprimido a humanidade (no que têm toda a razão), descreveram o mundo das fadas como um lugar de total descontração e abandono — um lugar onde a alma pode mudar de direção quando quer, como o vento. A ciência denuncia a ideia de um Deus caprichoso; a escola do Sr. Yeats, porém, sugere que, naquele mundo, todos são deuses caprichosos. O próprio Sr. Yeats disse cem vezes naquele estilo literário triste e esplêndido que faz dele o primeiro dentre todos os poetas hoje escrevendo em inglês (não direi de todos os poetas ingleses, pois os irlandeses têm intimidade com a prática da agressão física), digo, ele evocou cem vezes a imagem da terrível liberdade das fadas, que tipificam a anarquia definitiva da arte —
Onde ninguém fica velho, enfastiado, ou sisudo,
Onde ninguém fica velho, santarrão, ou casmurro.
Mas, afinal (eis algo chocante de se dizer), desconfio de que o sr. Yeats não conheça a verdadeira filosofia das fadas. Ele não é simples o bastante; não é burro o bastante. Embora seja eu mesmo que esteja dizendo (e quem negaria?), no que diz respeito à boa e velha burrice humana, eu venceria o Sr. Yeats por nocaute em qualquer ocasião. As fadas gostam mais de mim do que do Sr. Yeats; para mim, elas abrem mais espaço. E tenho minhas dúvidas quanto a esse sentimento dos espíritos livres e selvagens na crista da colina ou da onda ser realmente o espírito central e simples do folclore. Acho que os poetas se equivocaram: como o mundo dos contos de fadas é mais brilhante e mais variado do que o nosso, eles o imaginaram menos moral; na verdade, ele é mais brilhante e mais variado porque é mais moral. Suponha que um homem pudesse nascer numa prisão moderna. É impossível, claro, porque nada humano pode acontecer numa prisão moderna, embora às vezes pudesse numa masmorra ancestral. Uma prisão moderna é sempre inumana, isso quando não é desumana. Porém, suponha que um ser humano nascesse numa prisão moderna, e ficasse acostumado com o silêncio mortal e com a indiferença abjeta; e suponha que ele subitamente aparecesse no meio da vida e da alegria da rua Fleet. Ele, é claro, acharia que os literatos da rua Fleet são uma raça livre e feliz; porém, como é triste, como é irônico, que a verdade seja o inverso! E igualmente aqueles laboriosos servos da rua Fleet, quando têm um vislumbre das fadas, acham que as fadas são absolutamente livres. Porém, as fadas são como os jornalistas sob esse aspecto e sob muitos outros. As fadas e os jornalistas têm uma alegria aparente e uma beleza enganadora. As fadas e os jornalistas parecem adoráveis e fora da lei; parecem refinados demais para descer à feiura dos deveres cotidianos. Porém, essa é uma ilusão criada pela súbita doçura de sua presença. Os jornalistas vivem sob a lei, e também, aliás, o mundo das fadas.
Se você realmente ler os contos de fadas, observará que uma ideia os perpassa de uma ponta à outra — a ideia de que a paz e a felicidade só podem existir numa determinada condição. Essa ideia, que é o cerne da ética, é o cerne das histórias infantis. Toda a felicidade do mundo das fadas está por um fio, um único fio. Cinderela pode ter um vestido, feito por teares sobrenaturais, que reluz com brilho extraterreno; mas ela precisa voltar antes que o relógio bata as doze. O rei pode convidar fadas para o batismo, mas tem de convidar todas as fadas, ou o resultado será assustador. A esposa do Barba Azul pode abrir qualquer porta, menos uma. Uma promessa feita a um gato é quebrada, e o mundo inteiro se quebra. Uma promessa feita a um anão amarelo é quebrada, e o mundo inteiro é quebrado. Uma moça pode ser a noiva do Deus do Amor em pessoa desde que nunca tente vê-lo; ela o vê, e ele desaparece. Uma menina ganha uma caixa, com a condição de nunca abri-la; ela abre a caixa, e todos os males do mundo vêm para cima dela. Um homem e uma mulher são postos num jardim com a condição de que não comam um fruto; eles comem, e nenhum outro fruto da terra lhes traz mais prazer.
Assim, a espinha dorsal de todo o folclore é esta grande ideia: a ideia de que toda felicidade depende de um pequenino veto; toda alegria positiva depende de uma negativa. Agora, é óbvio que há muitas ideias filosóficas e religiosas semelhantes a essa, ou simbolizadas por essa; mas não é delas que pretendo tratar aqui. Certamente é óbvio que toda ética deveria ser ensinada a partir desse modelo dos contos de fadas; isto é, se você faz a coisa proibida, põe em perigo todas as coisas dadas. Um homem que viola a promessa que fez à esposa deve ser lembrado de que, mesmo que ela seja um gato, o caso da fada-gato mostra que essa conduta pode ser descuidada. Um ladrão prestes a abrir o cofre de alguém deve ser jocosamente recordado de que está na perigosa postura da bela Pandora: está prestes a levantar a tampa proibida e libertar males desconhecidos. O menino que come as maçãs de um terceiro na macieira de um terceiro deveria ser um lembrete de que ele chegou a um momento místico da vida, em que uma maçã pode tirar dele todas as outras. É essa a moralidade profunda dos contos de fadas, os quais, longe de serem sem lei, vão à raiz de toda lei. Em vez de encontrar (como os livros comuns de ética) uma base racionalista para cada Mandamento, eles encontram a grande base mística de todos os Mandamentos. Somos apenas tolerados no mundos das fadas; não cabe a nós brigar com as condições em que gozamos dessa extravagante visão de mundo. Os vetos são mesmo extraordinários, mas isso também vale para as concessões. A ideia de propriedade, a ideia das maçãs de um terceiro, é uma ideia peculiar, mas a verdade é que a mera existência de maçãs é uma ideia peculiar. É estranho e bizarro que eu não possa tomar dez garrafas de champagne; mas a verdade é que, pensando bem, o próprio champagne é estranho e bizarro. Se bebo a bebida das fadas, é apenas justo que beba segundo as regras das fadas. Talvez não vejamos a conexão lógica direta entre três belas colheres de prata e um policial grande e feioso; mas quem, nos contos de fadas, teria notado a conexão lógica direta entre três ursos e um gigante, ou entre uma rosa e uma besta que ruge? Não apenas esses contos de fadas podem ser apreciados por serem morais, como a moralidade pode ser apreciada porque nos leva ao mundo dos fadas, a um mundo ao mesmo tempo de assombro e de guerra.