Cursos online & fazer o que você quer — Existem muitas diferenças entre um curso online pago e sem provas e um curso universitário obrigatório e com apresentação de trabalho e/ou provas ao final, mas a diferença que poucas pessoas vão mencionar é que o aluno do curso online quer fazer aquele curso específico, com aquele professor específico. Quem já viu a grade de matérias oferecidas naquele semestre pela faculdade e precisou vencer algumas hesitações entende o valor de estar empolgado para começar um curso.
Sim, claro, óbvio, por supuesto, você também pode estar empolgado para começar uma matéria na faculdade, sobretudo na pós-graduação. Mas sempre enfatizo nos Instagrams que, para ler um livro, o mais importante é querer lê-lo; uma mulher pode até engravidar contra a vontade, mas não é possível gerar a famosa «vida intelectual» sem uma boa disposição considerável; sem um certo prazer, ninguém consegue entender nada.
Começo este Quebra-Cabeças #002 com essa breve meditação e lembro que hoje encerro de vez, talvez para sempre (é preciso mudar de assunto, afinal) as inscrições do meu curso «Escrever com clareza».
Alto brasileiro — Um dia, porém, vou precisar desenvolver a ideia que mais gerou interesse nos alunos do curso: existe um estilo, que meio brincando, meio sem brincar, chamo de Alto Brasileiro, e que é o estilo da elite intelectual brasileira. Não estou falando da «verdadeira» elite; estou dizendo que esse é o estilo de maior prestígio no Brasil, e quem dominá-lo vai se dar bem na universidade e conquistará respeito. Sim, usei esse estilo em todos os meus trabalhos acadêmicos.
É um estilo impassível (nada pior do que demonstrar emoção), e marcado por construções que têm valor de eufemismo, como naquele meme em que um filósofo diz algo brutal e outra pessoa responde: mas não você não pode dizer isso. Daí vem a tradução em filosofês.
No exemplo que dei na live que fiz para falar da história da vida literária no Brasil, teríamos o seguinte: em vez de dizer «os intelectuais públicos do Brasil têm um estilo muito chato», você diz: «os intelectuais públicos do Brasil escrevem de um modo que raramente inspira os jovens a imitá-los».
Uma ressalva: você pode dizer qualquer coisa em estilo Alto Brasileiro. Você só não pode se exaltar e ser grosseiro. Acho que isso vem do horror que a zelite barazileira tem de ser vista como subdesenvolvida; acho que é por isso que a poesia concreta tem tanto prestígio; acho que é por isso que Machado de Assis, o frio, é admirado muito antes de ser amado, e José de Alencar, o caloroso, continua sendo amado pelo público e vendendo seus Senhora sem que seja admirado.
(Meu doutorado foi sobre Alencar, e acho Machado genial mesmo.)
Nos jornais, a única pessoa que conheço que escreve em Alto Brasileiro é Pablo Ortellado.
E, como você vê, esse assunto precisa ser desenvolvido.
Mas o público falou mais alto, e em breve teremos um Clube Nelson — Nelson de Nelson Rodrigues. (O que me dará um prazer imenso. Nelson está lá, junto com Machado. E Alencar.)
Tradução — Passei mais de dez anos traduzindo livros, o que significa traduzir um texto de um idioma para um texto de outro idioma. Mas sempre me pareceu que a ideia de traduzir ia além disso, que era preciso muitas vezes reorganizar algum discurso ou mesmo ajudar alguém a pôr algo em palavras. Ezra Pound teria dito (de um jeito um tanto pomposo) que os poetas seriam «as antenas da raça», mas um médico que escuta o que o paciente diz e o examina para «dizer o que ele tem» também está fazendo um trabalho de «tradução»: está separando o que é mais e menos importante no discurso do paciente, e está olhando, apalpando, testando seu corpo, para enfim chegar a outro discurso: um diagnóstico.
Existe esse idioma vago e confuso da vida comum e das queixas dos pacientes; um ficcionista transforma o primeiro num romance; um médico transforma o segundo no diagnóstico, e, para isso, ainda precisa imaginar aquilo que o paciente não diz.
Por mais que se tente reduzir o diagnóstico a um processo com perguntas padronizadas, sugeridas por aquilo que o paciente diz, me parece difícil dispensar uma certa intuição e uma certa imaginação. Junte isso com a capacidade de ouvir, e você tem, provavelmente, um médico capaz de dar excelentes diagnósticos.
Daí eu me pergunto também se esse não é o momento em que as especialidades se bifurcam: talvez a pessoa que dá o melhor diagnóstico não tenha a mesma capacidade para tratar, para operar, etc.
Mas obrigado, Dr. Google — Com alegria quase sobrenatural, ano passado eu mesmo diagnostiquei um problema que me afligia desde 2015: após fazer exercícios físicos, eu acordava no dia seguinte com a ressaca de mil Velhos Barreiros. (Isso porque eu nunca bebi Velho Barreiro.) A cabeça latejava, a náusea era insuportável, e eu queria comer todo tipo de besteira. Abria a geladeira às seis da manhã e virava a fiel Coca Zero das pessoas que querem ser saudáveis.
Fui a todo tipo de médico, começando, claro, por clínicos gerais. Cardiologistas, pneumologistas… Sim, porque isso começou depois de uma crise de asma. Os exames não davam nada. E logo passei a acordar com essa «ressaca» sem nem ter feito os exercícios dos quais já tinha desistido — bastava um dia mais forte na tradução, grinding on the translation mill.
O covid também me deixou muito debilitado. Admito que comecei a dar cursos online porque simplesmente percebi que não tinha força física para viver de tradução.
Em novembro do ano passado, percebi que toda a dor começava na têmpora esquerda. Algumas googladas em inglês e descobri que eu sofria de uma (preparem-se) disfunção da articulação temporal-mandibular. Não era um caso clínico, mas osteopático. Uma fisioterapeuta confirmou meu diagnóstico e imediatamente falou o que nenhum médico me falou: eu tenho uma assimetria facial evidente.
(Esse não foi um jeito de dizer em Alto Brasileiro que eu tenho a cara torta. Foi só o jargão médico.)
Agora, além da fisioterapia e de um pilates ainda meio geriátrico, estou usando uma placa e fazendo tratamento com dentista. Veremos se em alguns meses volto a ser aquele carioca que fazia spinning às seis da manhã.
Relaxar — Engraçado que todo o meu problema vem do excesso de tensão que concentro no rosto. Engraçado, claro, porque no Instagram virei o profeta do relaxamento. No próprio curso «Escrever com clareza» incluí uma aula, «Como descobrir o que você quer dizer», em que digo que a chave é você relaxar para que as ideias venham.
Eu vivia mesmo alternando entre uma tensão física forte, franzindo o rosto para me concentrar, e a busca muito calculada de relaxamento. Isso de maneira simples: por exemplo, tomar um café sem nem mesmo ler nada, e às vezes ouvindo música.
Numa dessas vezes em que deixei a mente vagar, deixei tocando minha playlist da Chiara Parravicini, que surgiu como estrela da Disney (!) hispana na série Soy Luna. Gostei quando entrou «Ciudad», com a dupla cordobesa Hipnótica; a canção é um verdadeiro chicletinho. Mas, quando o vozeirão de Chiara Parravicini substituiu a vozinha dos caras do Hipnótica, fui despertado do transe e jogado para dentro da música, como se subitamente deixasse a cabeça escorregar para dentro da banheira.
Todas as músicas dela valem a pena, e é possível que você goste também de seu disco em inglês, que começa com a bonita e sonhadora «Wilder».
Ler o que você escreve é sempre um prazer inenarrável, Pedro. Tô com uma ideia pra compartilhar com você,avisa quando puder almoçar.