Quebra-Cabeças #003
Nelson Rodrigues; «A coroa»; como tocar Bach sem ser um coelhinho; James Alison
Começo falando de Nelson Rodrigues, mas o trecho de Raising Abel que traduzi, ao final, pode realmente nos virar de cabeça para baixo. Talvez seja, aliás, a única saída do mundo dostoievskiano de Nelson Rodrigues.
O Clube Nelson Rodrigues vem aí — Nas suas Aulas sobre Shakespeare, que traduzi, W.H. Auden diz que os únicos personagens de Shakespeare com quem temos vontade de jantar são Beatrice e Benedick, de Muito Barulho por Nada. Isso me faz pensar que é esse um dos problemas do teatro de Nelson Rodrigues: a ausência de personagens agradáveis e, mais ainda, a pura e simples ausência da vontade de agradar.
E se você pensar que a grande influência de Nelson, declarada pelo próprio, é Dostoiévski, tudo faz sentido. Dostoiévski escreve sobre as pessoas mais desagradáveis, isto é, aquelas que não conseguem disfarçar lá muito bem seu pavor de se sentirem humilhadas — e isso porque simplesmente agir como todo mundo, não se destacar, não ser visto como um deus, já é percebido como uma humilhação.
Agora, se você é pautado sobretudo pelo medo da humilhação, não espanta que, como escreveu Girard em Mentira romântica e verdade romanesca, na história do desejo, em Dostoiévski já não haja mais nenhum prazer. Sem relaxamento, não há prazer; sem relaxar, sem prazer, não há nem a disposição para ser agradado, nem a vontade de agradar.
O que falei talvez soe um pouco hermético. Vejamos um exemplo. Suponha que você está tomando um picolé. Você precisa deixar claro para o outro que está tomando o melhor picolé de todos os tempos? No linguajar de Nelson, um personagem exclamaria algo como «Chicabon geladinho! Delícia!». E você pegaria, naqueles diálogos em que os personagens invariavelmente parecem estar interrompendo uns aos outros, mudando de assunto, esse medo da humilhação, da derrota — a tensão do duelo.
Não basta tomar um Chicabon; é preciso afirmar a supremacia do Chicabon; é preciso bradar a própria plenitude ao tomar um Chicabon; é preciso jogar na cara do outro a delícia do Chicabon.
Você não está no Instagram, fazendo story com filtro, protegido pela tela; está nervoso, quase perguntando, puxando o outro pela manga da camisa: «Você, você, está vendo como meu Chicabon é sublime? O melhor de todos os tempos?»
A coroa — Sempre penso comigo que a série The Crown poderia se chamar The Crowd, «A multidão», «A turba». É mais uma série que se vale do tema mais perene e mais perpétuo da dramaturgia de massas: «Mas o que é que os outros vão pensar? Temos de manter a dignidade perante esses desconhecidos que nos miram. Por quê? Ora, porque do contrário eles vão nos matar!»
O teatro de Nelson Rodrigues tem gente desagradável fazendo coisas desagradáveis; The Crown tem pessoas que você esperaria que fossem agradáveis fazendo coisas desagradáveis.
Ainda assim — e valeria a pena falar ainda muito mais da multidão —, Mou Mou foi um grande episódio, em que a história real por trás da dramaturgia é tão fascinante que esta acaba ofuscada.
O ex-rei Edward VII, transformado em duque de Uórever, decide empregar um plebeu das Bahamas, e lhe ensina tudo da vida da aristocracia inglesa. Um dia Edward morre, o plebeu vira garçom no Ritz, e o milionário egípcio Mohamed Al-Fayed decide empregá-lo para aprender a agir como seus colonizadores. Al-Fayed viria a comprar a Harrod’s, famosa loja de departamentos de Londres, sonhando que assim se aproximaria da rainha. Conseguiu aproximar-se da princesa Diana, que viria a namorar seu filho Dodi (produtor de Carruagens de Fogo, vejam só) e morrer com ele, perseguida por paparazzi, isto é, pela multidão, em 1997.
A biografia de Sydney Johnson provavelmente renderia O leopardo da nossa época.
Resenhas — É provável que a maioria de nós já tenha gastado um tempo considerável pesquisando produtos na internet. Eu certamente já gastei. Costumo brincar que não sou viciado em pornografia, mas posso passar o dia lendo resenhas de tintas para canetas-tinteiro, inclusive de tintas que jamais comprarei.
A onipresença das resenhas fez com que elas se tornassem, creio, um gênero em si. Não sei se direi gênero «literário» porque muitas resenhas são feitas em vídeo, mas certamente um gênero textual e/ou um gênero de vídeo. E, nesta vida de leitor e de espectador de resenhas, creio ter encontrado duas pessoas que se destacam… pela qualidade das resenhas que produzem.
A primeira é a falecida Sandy1 do Fountain Pen Network. Com uma frase, ela era capaz de sintetizar uma… cor. Dizer que Iroshizuku Tsuyu-Kusa é «a tinta certa para contar uma piada» ou que J. Herbin Bleu Nuit é uma tinta que seria adequada para bilhetinhos amorosos «caso incluam um soneto» é o testemunho de uma sensibilidade muito peculiar, muito interessante, que poderia permanecer desconhecida não fosse pelo gênero «resenhas de tintas para canetas-tinteiro».
Em vídeo, Chyrosran22 é imbatível na dicção inglesa e nas piadas a respeito de… teclados mecânicos. Esta newsletter mesma, aliás, está sendo digitada num teclado que a rigor não é «mecânico», mas que costuma ser jogado nesse balaio: meu HHKB Hybrid. (E alguém quer me dar um Type-S Snow?)
Recomendações — Vale a pena ler o texto do Alex Castro sobre Marília de Dirceu, e também a estreia da Ana Júlia Galvan, apóstola das páginas matinais.
Relaxamento — Retomando esse tema da semana passada, me ocorreu que muita gente conhece uma das músicas mais bonitas e mais manjadas de todos os tempos numa versão que, francamente, me parece equivocada. Todo mundo já ouviu ao menos a primeira seção da primeira das Suítes para Violoncelo de Bach, mas sempre na gravação de Rostropovitch, que chamo nada carinhosamente de «coelhinho». Pegue sua bebida favorita, desligue tudo, e tente ouvir a gravação muito mais lenta de Anner Bylsma, com quase o dobro do tempo, que me foi apresentada por meu amigo Jayme Chaves em tempos imemoriais, quando jogávamos futebol nos fundos de quintal do Cairo com Ramsés II, entre brontossauros e pterodáctilos.
Nessa onda lenta, se você não conhece, ouça música nas gravações de Celibidache. Sergiu Celibidache.
E, depois dessa, deixo o leitor com um longo trecho de James Alison.
Raising Abel — O título permite tantas traduções (deixo essa diversão para o leitor) que nem ousei arriscar uma. Mas, como não sou de esconder o jogo, gostaria de dizer que acho provável que esse livro de James Alison vá moldar meu imaginário por muitos anos ainda. Vou traduzir aqui um trecho do capítulo 6, que está na seção «The Time of Abel, or the Inhabitability of Time»:
Imaginemos Caim, condenado a vagar para sempre pela face da terra, incapaz de encontrar um lar duradouro, sempre receoso de que o assassinato do irmão vá ser vingado, e não lá muito protegido pelas leis estabelecidas por Deus depois do incidente, leis cujo propósito era conter a violência da vingança recíproca. Caim agora já tem uma certa idade e sente que a morte se aproxima. Aonde quer que vá, ouve rumores de que algo terrível vai acontecer, de que algum fim terrível vai se abater sobre ele, com um julgamento no qual ele vai ser declarado culpado. A verdade é que a questão do irmão já está obscura em sua memória, ou há um desconforto distante e vago. O que ele sabe é que ele vem vagando por toda a face da terra já há um certo tempo, sem conseguir fixar-se em lugar nenhum, e não foi por falta de tentar. Ele teve de lutar guerras sangrentas para proteger-se; ajudou outros a construir fronteiras sagradas para protegerem-se, também, contra a violência que se espalha por toda parte. Ele, também, espalhou uma teologia, em que Deus é cultuado por pessoas que mantém leis estritas que separam o bom do mau, o puro do impuro, de modo a manter Deus seguro em seu lugar de garantidor da ordem social. Porém, agora ele sente, sem saber muito bem o motivo, que as coisas estão se desfazendo, chegando a um fim cósmico, e nem ele nem ninguém pode realmente proteger-se contra essa ameaça.
Imaginemos Caim numa cabana, não muito bem construída, tentando dormir. O sono não vem fácil, porque ele tem um presságio de perigo, e às vezes ele passa a noite meio acordado. Essa noite é igual às outras, mas de súbito ele desperta por completo ao perceber que alguém entrou, passando por um buraco na parede. Caim está com medo: só pode ser um ladrão ou um assassino. O intruso parece não se assustar por ter sido detectado, provavelmente porque é jovem e forte, e não teria dificuldade em sobrepujar o velho diante de si, um velho que outrora saberia como passar um intruso desses no fio da espada. Não apenas ele não parece assustado, como se aproxima daquele que o intuiu na escuridão, confirmando assim os temores do velho de que, enfim, ele vai morrer indefeso, exatamente como fez com que muitos outros morressem.
Porém, o rapaz, em cujo rosto se pode vislumbrar, mesmo nas sombras das primeiras horas da aurora, algumas feridas meio cicatrizadas, diz-lhe: «Não tema, sou eu, seu irmão, você não lembra?» Ele tem de ajudar o velho a lembrar-se daquele rapaz jovem e bonito que Caim adorava, e que era seu irmão; tanto Caim o adorava que se sentia prostrado diante dele, amando-o tanto que o único jeito de ser como ele era ser no lugar dele, matando-o, não por ódio, mas por inveja, pelo excesso devastador de um amor que se aferra ao ser. Esse processo de lembrar-se do irmão não é de maneira nenhuma agradável para o velho, pois a cada despertar para o que realmente aconteceu, ele fica abalado ao perceber o que é que vem realmente movendo-o desde então: estranhos e fatais mecanismos de amor e de ódio entrelaçados; e toda essa história de vagar, de procurar abrigo, de matar e de expulsar para proteger-se, fica revelado que tudo isso é desnecessário. A cada passo o irmão lhe permite ver o que estava realmente acontecendo, e a cada passo o velho gostaria de fazer o que suas pernas já não lhe permitem fazer: fugir antes de ouvir mais, de tanto que ele tem medo de que tudo que ele veio a ser seja revirado.
Mesmo assim, o caçula não o deixa escapar desse estranho julgamento, pois, nesse tribunal, o caçula é vítima, advogado, e juiz, e o julgamento é o processo de desculpar aquele que não ousava ouvir uma acusação que nunca vem. Estranhamente, à medida que sua memória ganha corpo, o velho começa a sentir cada vez menos o peso do fim ameaçado, que ele tinha ouvido quase que rugindo em seus ouvidos. E ele tem razão de deixar de senti-lo, pois o fim já chegou, mas não como ameaça: ele chegou como o irmão que o perdoa. Ele começa a vislumbrar que, ao fim desse julgamento, talvez ele não tenha mais força física, mas, com toda a força de seu coração que está se transformando em juventude, ele quer beijar o irmão antes de morrer, o resto não importa…
Tudo isso sem dúvida terá sido bastante óbvio para você, com todos os tons dostoievskianos e tudo o mais. O que eu quero sugerir é que é exatamente nisso que consiste a fé cristã: no retorno de Abel como perdão para Caim, e no retorno de Abel não apenas como decreto de perdão para Caim, mas como presença insistente que dá a Caim tempo de recuperar sua história, e, com os anos que ainda lhe restam, os quais podem ser apenas dias, quem sabe, começar a construir outra história. Isso ele conseguirá na medida em que, a cada passo daquele doloroso processo de recordação, conseguir libertar-se do que vinha fazendo, movido por sua fuga envergonhada, mal disfarçada, e construir outra história em que ele deixou de oscilar entre fazer o papel de herói, que tem de enfrentar uma vida sem sentido, para o de vítima, contra quem todos sussurram, e que tem de proteger-se contra todos; construir uma história que é “outra”, algo entre esquecida e nem imaginada, a história do fratricida de coração partido para quem o irmão volta em paz, despido de ameaças. Como quer que essa história vá terminar, entre essa chegada do irmão como um ladrão na noite e o fim de seus dias, Caim trabalhará duro na construção da história de alguém que pode olhar nos olhos do irmão sem orgulho nem vergonha. Ao invés disso, ele olhará com a gratidão de um homem que se recebeu de volta nas mãos daquele que ele mesmo matou, matou para preencher o vácuo do sentimento de que, diante daquele outro, ele, Caim, não tinha um «si mesmo» para dar, um «si mesmo» com o qual amar.
Essa é a história de que falamos quando falamos da história humana em seu desdobramento a partir da ressurreição. É isso que chamo de tempo de Abel.
Pedro, ótima edição. Fiquei curiosa com o livro do Alison, vou pegar para dar uma olhada. Achei curiosa a escolha de Caim e Abel para falar de perdão e amor fraternal, porque há outras escolhas que parecem mais óbvias no Gênesis. Na verdade, todo o Gênesis tem um arco narrativo que tem a ver com perdão fraterno, se você for pensar que a história é pontuada pelo relacionamento entre irmãos: Caim e Abel, Esaú e Jacó, Léa e Raquel, José e os irmãos. Entre Caim e Abel há assassinato. Entre Esaú e Jacó, rivais desde o ventre, descobre-se a possibilidade de seguir caminhos separados sem ressentimento (inclusive, há aquela cena famosa de Jacó lutando com o anjo, que pode ser exatamente a superação da rivalidade fraterna). Daí o Gênesis termina com José e os irmãos sendo capazes de perdoar e viver como uma família de novo. E é só quando o Gênesis acaba com os irmãos sendo capazes de formar uma família, que começa o Êxodo, que é a formação do povo liberto. Abs