Quebra-Cabeças #006
O lótus branco, o escritório, Regina George, Emily Blunt, as algemas da juventude
The White Lotus — Sim, a série foi divertida, mas para mim a adoração por ela é incompreensível. A adoração «que varre as comunidades como um incêndio», na expressão de Max Weber.
Talvez eu seja bonzinho demais (conhecendo a mim mesmo, acho difícil), mas a ideia de uma série, de um livro, de um filme, de uma obra de arte que essencialmente convida o espectador a zombar dos personagens me parece malvada no sentido das Meninas malvadas. Então agora estou na mesa com Regina George, e estamos rindo daqueles ricaços ridículos e metidos… Ah, não: agora estou com os nerds desprovidos de vida amorosa, e estamos rindo de Regina George…
Às pessoas que dizem que «faculdade é tudo comunismo», sempre digo que na pós-graduação da UERJ eu tinha liberdade para dizer que Lucíola, o clássico que José de Alencar escreveu (a partir da Dama das Camélias de Dumas Filho) a respeito da prostituta Lúcia, tinha como subtítulo a putinha que era boa (essa referência eu deixo para o leitor pescar). Eu zombava do espetáculo de bons sentimentos do livro, mas ele é preferível a um mundo em que todo bom sentimento é uma ingenuidade, e as jovens prostitutas e trambiqueiras executam contra os zilionários uma espécie de «justiça social» saída da cabeça de um Ricky Gervais.
(E ainda agora ouço um mestrando em Letras me acusando de «defender os zilionários» em seu primeiro podcast.)
The Office — Outra série que nunca entendi. Então a ideia é que eu fique vendo por episódios e mais episódios o quanto Michael Scott é um cara sem-noção? Ele e o Dwight? E fique vendo o marido da Emily Blunt, como é mesmo o nome dele, e aquela menina da recepção, os dois zombando de tudo? São milhares de episódios só para dizer o que três tiras de Dilbert já disseram?
Eu tentei. Não rolou.
Eu dizia tudo isso à Priscila (a qual admirava esse moço que se casou com a grande atriz Emily Blunt) e pensava em Parks and Recreation, de certo modo o avesso de The Office. Ali, porém, a bondade das pessoas muito mais do que roça a ingenuidade, e já me fazia pensar: peraí, a cultura de massas não consegue mais comportar uma representação da bondade banal, da common decency, que não seja nem piegas, nem comicamente ingênua, nem meio ridícula?
Então ela me disse que um senhor de nome Michael Shur era responsável pelas duas séries, que seriam então uma espécie de Dr. Jekkyl e Mr. Hide da sua imaginação.
Parks and Recreation tem o Jerry, um bode expiatório agressivamente escancarado, que serve para que o espectador se lembre, se é que precisava ser lembrado: toda essa bondade dos personagens tem um fundo falso; elas dirigem sua maldade para uma pessoa só. Seria um toque de gênio se não ficasse aquela impressão de que, no fundo, a maneira como os personagens tratam Jerry indica a «verdadeira» opinião dos roteiristas.
Um pouco além de Adam Smith — Adam Smith falou sobre a «simpatia» ou «fellow-feeling» nas relações entre as pessoas, e eu estudei um pouco isso na nossa relação com as narrativas.
(Não uso a palavra «empatia» porque ela surgiu no século XX, e não sei o que ela acrescenta à boa e velha «simpatia». Eu sei até o que uma caneta esferográfica tem que uma tinteiro não tem — é mil vezes mais barata e dá menos problemas —, mas a «empatia» me escapa. Aliás, estou vendendo uma tinteiro: a Scribo Piuma que apareceu por muito tempo no cabeçalho das newsletters.)
Quando você vê uma série ou lê um livro, você precisa ter simpatia por alguém. Você precisa se identificar com o ponto de vista de alguém. O mais comum é que seja o de um personagem: você se importa com o ponto de vista dele, com o destino dele. Você também pode se identificar com o ponto de vista do narrador, que pode estar fora da história. É assim, por exemplo, que você lê um livro em que todos os personagens são desagradáveis — a narração ganha.
Agora, The White Lotus já parece pedir uma identificação com o próprio autor, fora mesmo da narração. Tudo é lindo, tudo parece feito para seduzir, até o narrador parece acreditar no que está dizendo. Mas o autor e o espectador sabem que aquilo é uma grande piada, feita às custas dos personagens e do narrador.
Nessa corrida desesperada para ver quem ri por último, não surpreende a popularidade dos antidepressivos. Uns competem para ver quem é mais vítima, e outros competem para ver quem é a Regina George de último recurso.
«You said that irony was the shackles of youth» — Entendo que cada qual tenha uma reação própria a tudo isso. Uns empostam a voz como um Morgan Freeman presidencial e sempre explicam as grandes verdades do universo. No fundo, você também ouve a voz sapiencial de Leonard Cohen cantando: «I have seen the future…»
Minha reação inicial é a de um cansaço imenso. Um cansaço que você pode ter ao falar com certos americanos que fazem questão de ser tão espertinhos o tempo todo que qualquer conversa se torna impossível. Não existe mais diálogo, só existe banter. Nesse ponto, o atraso brasileiro, nossas conversas com a mesma ingenuidade caipira daquelas primeiras gerações de revolucionários russos me parece até revigorante. Textos caóticos de gente que tenta expressar algo em vez de apenas sinalizar competência — revigorante, também.
Minha segunda reação é tentar me refugiar numa certa ingenuidade artística. Mas o aspecto de fuga fica evidente demais, e não é que eu queira bancar o Grande Guerreiro contra o Cinismo, mas é que não dá para fugir dos problemas.
Essa ingenuidade aparece, por exemplo, no roteiro premiado pelo Oscar este ano: Women Talking. A história prometia, até por ser baseada num caso real. As religiosas de uma comunidade foram sistematicamente estupradas após terem sido dopadas com tranquilizante de vaca. A mulher dormia e acordava toda estragada — e, em alguns casos, grávida. Elas se reúnem para decidir o que fazer. E logo no começo uma delas, Ona (Rooney Mara), fala de como sonha com um futuro em que as mulheres também possam fazer isso, fazer aquilo… Nobres ideais, mas é isso que você discute na iminência da volta do seu agressor? Não me contive e cantarolei: «You may say I’m a dreamer, but I’m not the only one…» E então ela falou que talvez estivesse sonhando. Pelo amor de Deus.
Minha terceira reação é escrever exatamente este tipo de texto, exatamente esta newsletter. Também procuro obras que sejam um bálsamo, e me pergunto se ainda consigo admirá-las, sem a mais vaga ironia.
(Mesmo com o áudio e o vídeo totalmente fora de sincronia, como no caso abaixo.)
O Larry David consegue criar essa simpatia quando diante de uma situação faz o que lhe dá na caixola - invariavelmente o que a maior parte das pessoas gostaria de fazer, mas que as unwritten rules of society, como diz o próprio David, as impede.