Rebecca Marder — Durante a pandemia, assisti a uma daquelas coisas que me fazem questionar minha fé anarco-liberal. Imagine que a estatalíssima Comédie-Française pegou o documentário Be Pretty and Shut Up (1981), em que várias atrizes famosas falam sobre assédio em sets de filmagem, traduziu o texto para o francês, e transformou-o em leitura teatral na série Théâtre à la Table. A ideia pode parecer esdrúxula — como assim, uma leitura dramática de um documentário traduzido? — , mas, se você gosta de teatro, talvez já tenha percebido a força tremenda que há em ver grandes atores encenando diálogos.
Uma atriz me chamou a atenção: Rebecca Marder. Imediatamente pensei que ela viria a ser uma grande estrela. A Marion Cotillard desta geração. De fato, pouco depois ela saiu da Comédie-Française e voltou a fazer filmes — porque não, ela não foi do teatro para o cinema, mas do cinema, como atriz mirim, para o teatro, e depois voltou. Seu primeiro papel principal em longa metragem, Une jeune fille qui va bien, estreou no Brasil com o título de A garota radiante, adaptado do título em inglês, e talvez esteja em sua última semana em cartaz no Rio de Janeiro.
E como é bom ver um filme de adulto (sou do tempo em que «adulto» não significava «pornográfico») que não segue uma receita óbvia, que não tem falas espertinhas em todas as cenas, que não parece hipertrabalhado, e que ousa depender dos atores. Tenho vontade de dizer absurdos como «desde A história de Adele H. (1975) um filme não se escora tanto no carisma de uma atriz como A garota radiante!» Mas será mesmo? (E por que me sinto um personagem do Alexandre Soares Silva com essa exclamação?)
Dois filmes com Rebecca Marder foram grandes sucessos muito recentes na França: Mon crime, de François Ozon, e De grandes espérances (nada a ver com Dickens), de Sylvain Desclous.
O fato de A garota radiante ter nota 6.1. na IMDB me obriga a lembrar que Madame Bovary tem 3.7 estrelinhas no GoodReads. E, é claro, Os vingadores tem nota 8.0 na mesma IMDB — e The Matrix, o filme mais imbecil que já vi (uma ma ma ma matriz de imbecilidades), nota 8.7. So much for the wisdom of the crowds.
(Mas, Pedro, você não era anarco-liberal?)
Aaron Sorkin — Provavelmente você já viu a série The West Wing ou algum filme dele, como The Social Network ou Moneyball. Para manter o galopante galicismo desta newsletter, Sorkin é um roteirista incontournable.
Logo termino de rever The Newsroom, disponível na HBO. A série foi feita entre 2012 e 2014 e, vista em 2023, parece nada menos do que profética em relação ao folclore que tomaria conta da vida política. Sim, claro, eu sei, você pode acusar Sorkin de ignorar o folclore de esquerda, mas isso é mais ou menos como ser pego na bobagem e dizer que apenas fez aquilo que todo mundo faz.
Além disso, caso Sorkin decidisse não ignorar a bêtise (burrice) da esquerda, ele seria propriamente flaubertiano; por isso, até, falei em bêtise, não em burrice. Não sei se a TV, esse meio de massas, comporta um Flaubert.
É que Flaubert mostra a identidade de supostos contrários. O mundo está preparado para um programa em que o Leonardo Boff dizendo que «o capitalismo mata cem mil pessoas a cada dois dias» — eu presenciei isso no ano 2000, e, pior ainda, o René Girard também presenciou — é equiparado a uma MULHER RESPEITÁVEL alegando que pintar a unha de vermelho é pecado?
(Se a TV mostrasse isso, ao fim do episódio duas turbas contrárias destruiriam o estúdio, e talvez ficassem amigas. Eis aí um belo roteiro.)
Acídia — Também me impressiona muito, pessoalmente, o fato de que os personagens de The Newsroom achem importantíssimo aquilo que fazem, que é interferir no debate público. Eles têm uma fé tremenda no debate público, na democracia, nas instituições. (Não sei se teriam tanta fé nas notas da IMDB.) Talvez naquele momento essa fé fosse mais fácil. Porque hoje a tentação da acídia é enorme.
Acídia é aquele desalento que bate quando você acha que nada vai dar em nada. Diante de um obstáculo intransponível, você desiste. E você pode ter desistido décadas atrás, e ter passado a tomar essa tristeza, esse desalento, pelo seu estado «normal».
Depois das duas últimas eleições, depois da pandemia, comecei a me perguntar se só seria possível pregar para convertidos ou pisar em ovos. Eis a tentação da acídia. Não vai dar, melhor calar a boca. Não vou conseguir escrever sem disparar todos os gatilhos do leitor, então é melhor nem tentar. Não vou conseguir chegar ao «outro lado», então vou ficar aqui tomando meu vinho barato.
Mas isso seria ceder ao meu Larry David interior. O público da newsletter não é gigantesco, são cinco mil inscritos, menos de cem pagantes, a taxa de abertura deste email é de 35% a 41% — mas, veja bem, 1750 leitores, no Brasil… Você sabia que uma grande editora brasileira costuma publicar tiragens de dois mil exemplares de cada livro?
Acídia, 2 — Ao fim da segunda temporada de The Newsroom, Will McAvoy e Charlie Skinner mencionam o livro For Common Things, de Jedediah Purdy. Fui atrás e, logo nas primeiras páginas, me deparei com a perfeita descrição da origem dessa acídia em relação ao discurso público, especialmente político:
[...] Se já é difícil falar a sério de assuntos pessoais, falar a sério de questões públicas parece perverso: não apenas ingênuo, mas algo com motivação errada ou confusa. Hoje se presume que a política é o reino do discurso desonesto e das más intenções. Além disso, aceita-se que todos percebem o que está por trás desse discurso, que as intenções são tão transparentes quanto as roupas novas do imperador da fábula. A vida pública fica parecendo um ritual inacreditável executado sem que ninguém acredite, como as cerimônias de uma fé envelhecida e cambaleante, conduzida com as velhas ladainhas porque não há outras disponíveis e porque, de qualquer modo, o discurso repetitivo é indiferente a seu próprio conteúdo.
Para isto, o Substack: para irmos além desse discurso morto.
Going full McAvoy — Will McAvoy, em The Newsroom, decide destacar algumas pérolas do Tea Party. Alguém se lembra do Tea Party? Mas enfim.
Leio a entrevista de Rodrigo Gurgel na revista Oeste:
Um exemplo de censura indireta no Brasil é o Conselho Nacional de Educação, que cria as diretrizes que os livros didáticos precisam seguir. Isso desde o governo FHC. Para que os livros didáticos possam participar das licitações, as editoras precisam cumprir aquilo que está no Plano Nacional de Educação. Então as editoras, há décadas, obrigam os autores a seguir aquelas regras. Isto é uma forma de censura. Assim, todos se submetem alegremente e nós ficamos nesse jogo de uma espécie de censura branca, que ninguém fica sabendo.
Eu mesmo defendo a extinção do ministério da Educação, mas daí a chamar critérios governamentais para a compra de livros «censura branca…» Bem, se é esse o caso, que venha a censura branca! Podemos publicar qualquer coisa e a pior coisa que vai acontecer é nada, isto é, não poderemos participar de uma licitação? Rapaz. Sinto-me até no Primeiro Mundo.
Veja: eu mesmo já li textos admiráveis em que Rodrigo Gurgel explicava como ninguém o funcionamento de um belo parágrafo. Textos em que ele faz o que eu mais aprecio, que é desparafusar as frases e parafusá-las de volta. Que ninguém imagine que, por essa crítica, menosprezo sua perspicácia.
Porém, cá na direita gostamos de dizer que estamos sempre sendo «censurados», quando somos apenas marginais — ou gostamos de nos ver como marginais, e não queremos perder essa posição privilegiada.
Ferran Savall — É possível que Mireu el nostre mar, do catalão Ferran Savall, seja um dos melhores discos de MPB das últimas décadas. O fato de o disco ser em catalão é irrelevante.