Ler com clareza, o retorno — O curso Ler com clareza veio das minhas caixinhas de perguntas no Instagram. Primeiro, começo a dizer: vejam, isso de interpretar alegoricamente (ou simbolicamente, embora no curso eu explique como esses dois modos de interpretação podem ser diferenciados com facilidade) os mitos é algo que você tira da sua cabeça. É verdade, os gregos já tiravam isso da cabeça deles também, mas não dá para dizer que haja nos mitos a intenção de transmitir lições morais e espirituais. Você pode, é claro, interpretá-los assim; talvez suas interpretações até mesmo sejam boas e interessantes; mas dizer que um mito serve para algo não é a mesma coisa que dizer que ele nasceu com esse propósito, assim como o livro que ponho abaixo do meu iMac para obter uma altura mais confortável certamente pode ser usado assim, mas daí a dizer que ele nasceu para isso…
Agora, quando se chega à Bíblia, a ideia de privilegiar esse tipo de interpretação simbólica acaba levando a impasses incríveis. De que maneira uma história como a de Sodoma poderia refletir alguma espécie de valor universal, exceto a lei não escrita de abrigar aqueles que estão numa situação precária? Se o leitor não lembra, um estrangeiro chega a Sodoma, e Lot o abriga em sua casa, porque é perigoso passar a noite na rua. O povo não é exatamente hospitaleiro. À noite, o povo bate na casa de Lot, indicando que deseja praticar uma espécie de humilhação sexual no estrangeiro, um estupro coletivo. Lot, esse grande patriarca defensor dos valores familiares, oferece as próprias filhas para poupar o estrangeiro. O estrangeiro, porém, é um anjo, que — na expressão de James Alison — joga pó de pirlimpimpim (ok, ele é inglês e disse pixie dust) na cara dos sodomitas. Lot e a família fogem enquanto o Deus vingador destrói Sodoma com uma chuva de fogo e enxofre. A esposa de Lot olha para trás e vira uma estátua de sal. As filhas de Lot acabam embededando o pai a fim de engravidar dele, uma história que, para mentes menos metafísicas, soa muito como «eu engravidei minhas filhas — aquelas que eu quis entregar aos estupradores — porque elas estavam de minissaia».
Difícil, para mim, ler uma história que tenha mais poder de «urucubaca no patriarcado» do que essa. As feministas americanas falam em hex the patriarchy, e eu me pergunto se elas conhecem essa história, ou se elas sabem que a Sagrada Família dos cristãos é formada por três virgens, e que na história dela o «sim» da mulher é meio que trombeteado, que o marido casa com ela para evitar que ela seja legalmente apedrejada, isto é, para evitar que, como no caso de Sodoma e da tribo dos benjaminitas, a mulher caia nas mãos da multidão. Imagine só, também, dizer que a mulher precisa de um José — de um homem que vai defendê-la até a morte das acusações de promiscuidade. É muita urucubaca no patriarcado.
Voltando ao Antigo Testamento, já era muito mais produtivo entender a história de Sodoma em comparação com a história da destruição da tribo dos benjaminitas, que começa em Juízes, 19, com o mesmo episódio: um estrangeiro chega numa cidade, a mulher é entregue como boi de piranha… (Deve ser a cena mais aterrorizante de toda a Bíblia.) Porém, a vingança não vem de Deus, mas do homem.
Essas histórias não refletem uma mudança na concepção de Deus?
E, dando alguns saltos para um futuro sumamente indesejável… Se houver, hoje, o apocalipse nuclear, ele é causado por quem? Por Deus ou pelo homem?
Amanhã à noite devo subir para o curso Ler com clareza (notou o link para comprá-lo? Está R$ 177,77) uma aula mais completa sobre Sodoma, comparando-a também com a história de Baucis e Filêmon.
(Sempre que falo de Sodoma, lembro de uma piada da Casseta Popular: «Praticavam a sodomia, e o que é pior, a gomorria também.»
Downton Abbey à beira de um ataque de nervos — Saltburn é uma espécie de Brideshead Revisited que vira O talentoso Ripley, mas filmado por uma sobrinha inglesa do Almodóvar. O filme ganha muitos pontos pela sua unidade estética peculiar e interessante. Já eu dei alguns pontos a mim mesmo porque saquei a referência a Brideshead Revisited antes mesmo que o nome de Evelyn Waugh (autor do romance) fosse mencionado, logo no começo.
Dizem que Brideshead Revisited é um dos grandes romances católicos do século XX. Sempre quis saber o que diriam as sensibilidades católicas mais reaças de hoje, porque a história trata da «amizade romântica» entre dois homens, Charles Ryder e Sebastian Flyte (YY, é muita macheza). É um belo exemplar da mentalidade em que tudo aquilo que um homem julga ter de mais sublime ele deixa para dividir com seu melhor amigo; o sexo, essa coisa tão vil quanto inevitável para quem pretende deixar herdeiros, é que fica para a a relação com a mulher.
Não me pareceu boa ideia ver o filme de Brideshead Revisited feito em 2008, por isso ficou para mim a pergunta: até que ponto as sensibilidades atuais tolerariam uma «amizade romântica» entre dois homens na qual não ocorresse nada de carnal? Na qual os próprios homens não duvidassem de si mesmos? Ou será que isso é o que hoje é chamado de bromance, que a minha incultura de massas não alcança?
Ao abdicar dessas soluções mais fáceis (do tipo «sim, eles queriam se pegar, estamos o século XXI, pô»), a diretora e roteirista Emerald Fennell acaba sendo mais fiel ao espírito do desejo que anima a relação de Charles Ryder, um rapaz de classe média, e Sebastian Flyte, um ricaço aristocrata. O desejo de Ryder é simplesmente um desejo «homossexual»? Ou um fascínio imenso por um mundo mágico que se apresenta para ele, que tem Flyte como principal guia? Não se trata de jeito nenhum de uma mera cobiça por riquezas, de uma inveja, mas de uma espécie de canibalismo espiritual, de um desejo de tornar-se o outro. Nesse ponto, até, Saltburn acaba sendo mais sinistramente interessante do que o primeiro filme da série do Talentoso Ripley (onde começa e termina meu contato com o universo do personagem, que na verdade vem de romances de Patricia Highsmith), talvez porque acabe sugerindo que a face oculta do deslumbramento com a aristocracia que anima Brideshead Revisited é a inveja, o ódio, o mesmo ódio que anima uma série como Billions.
Estou tentando aqui não dar spoilers. E estou dizendo que Saltburn ganha muito com o contraste com essas duas obras – assim como as histórias da Bíblia ganham ao ser comparadas entre si.
(E Brideshead, a casa, que é o castelo de uma família católica, e tem sua capela, e Saltburn, a casa, que é o castelo de uma família não exatamente misteriosa, e tem um labirinto, no centro do qual tem um Belzebu?)
Promising Young Woman — O filme anterior de Emerald Fennel é um grande exemplo da «imaginação apocalíptica» de que fala James Alison, ou, em bom carioquês, um grande exemplo de história em que as vítimas assumem o papel daquele Deus da história de Sodoma e passam o cerol em todos os malvados.
Porém, talvez seja melhor dizer que as vítimas de Promising Young Woman (está na Netflix com o título de Bela vingança, embora o título português Uma miúda com potencial seja muito melhor) desmistifiquem esse Deus vingador ao tomar para si a vingança, de um modo tão esperto quanto catártico, e que — essa surpresa eu não quero estragar — tem um quê de «divino». Gosto mais desse filme do que Saltburn, mas gosto mais ainda de pensar que Emerald Fennel pode estar tomando um rumo interessante.
Juízes, 19, 24-27 — Agora… No quesito urucubaca no patriarcado, proponho um exercício muito simples. Esqueça um pouco o tom monótono e solene das traduções da Bíblia, aquele tom que faz com que paremos de prestar atenção e comecemos a pensar no que tem para o jantar, e veja o quanto este trecho pede para ser lido com o estômago embrulhado, com o rosto retorcido de indignação, e o quanto ele resiste a qualquer interpretação simbólica que tente justificar de qualquer maneira o ocorrido. Partir para uma interpretação simbólica, aqui, seria o equivalente a repetir a violência; a urucubaca da Bíblia, que tanto perturba pelo que tem de explícito, de literal, é mais forte do que o desejo de impor alguma «ordem»:
²⁴ Eis que a minha filha virgem e a concubina dele tirarei para fora; humilhai-as a elas e fazei delas o que parecer bem aos vossos olhos; porém a este homem não façais loucura semelhante.
²⁵ Porém aqueles homens não o quiseram ouvir; então, aquele homem pegou da sua concubina e lha tirou para fora; e eles a conheceram, e abusaram dela toda a noite até pela manhã, e, subindo a alva, a deixaram.
²⁶ E, ao romper da manhã, veio a mulher, e caiu à porta da casa daquele homem, onde estava seu senhor, e ficou ali até que se fez claro.
²⁷ E, levantando-se seu senhor pela manhã, e abrindo as portas da casa, e saindo a seguir o seu caminho, eis que a mulher, sua concubina, jazia à porta da casa, com as mãos sobre o limiar.