1 «Terroristas»
Logo na manhã de segunda, ao me deparar com a primeira pessoa chamando o vandalismo dominical em Brasília de «terrorismo», escrevi um texto para o Instagram, mas desisti de publicá-lo. Cousas há que ficam melhor num meio menos inflamatório, como uma simples newsletter.
E de fato não fui só eu que me surpreendi com o termo; até mesmo o Diário do Balneário (aká O Globo) publicou um artigo de um jurista que explicava que não, pela lei brasileira, não dava para classificar a destruição de domingo como «terrorismo», mas que a palavra tinha um sentido que «transcendia» o jurídico.
Adorei o verbo «transcender». Um truque maravilhoso, como se o Dr. Data Vênia estivesse dizendo: «Isto aqui, que a ciência química denomina H2O, tem um sentido transcendente, que é água.»
(Gua... gua... gua... É o eco da transcendência batendo de volta.)
Se você não sabe que a palavra «transcender» tem o sentido de «estar além», você corre o risco de cair na mistificação. A linguagem comum «transcende» a linguagem jurídica só porque a linguagem jurídica é obrigatoriamente especializada. Ela é mais estreita, mais estrita. E uma parte importante de muitas atividades profissionais consiste em traduzir o que uma pessoa diz em linguagem comum nos termos precisos do jargão daquela atividade.
Não que a linguagem comum — esta que estou usando aqui agora — não possa perfeitamente ter sua precisão. Se alguém chama os atos de vandalismo praticados em Brasília de «terrorismo», preciso perguntar: o que você sente ao ver as imagens de Brasília é a mesma coisa que você sente ao ver um avião batendo contra o World Trade Center? É mesmo terror? Pavor? Você fica desnorteado? Sem palavras?
Ou será que você fica indignado? Talvez até revoltado? E isso não é diferente de estar aterrorizado?
No dia 13 de novembro de 2015, três comandos aterrorizaram Paris. Dois homens-bomba explodiram-se do lado de fora do Stade de France, outro grupo saiu metralhando pessoas que estavam em mesas ao ar livre na frente dos bares, e ainda outro grupo entrou no Bataclan, uma casa de shows, metralhando a esmo o público. Em V13, seu livro mais recente, que trata do processo desses terroristas, Emmanuel Carrère conta a história do sobrevivente do Bataclan que, traumatizado, deprimido, acabou se enforcando num hospital psiquiátrico.
Isso é terror. Se você ficar revoltado com o que aconteceu em Brasília, entendo perfeitamente. Mas, se quiser chamar de «terrorismo», vou recorrer à sabedoria popular: num é porque cê tá zangado que cê tá certo.
Aqui eu poderia parar, como se tivesse encontrado a chave de ouro do soneto. Mas a questão não termina aí. «Terrorista», agora, assim como «fascista» e «comunista», passará a ter o sentido de «uma pessoa que eu detesto». Dizer que é «a morte da linguagem» e não sei quê também não encerra a questão. Ainda falta notar que, quando uma palavra se torna um xingamento, ela serve também para identificar um tribo: a «frente ampla» dos que usam o mesmo xingamento.
E acrescento: seria uma tolice pensar em palavras «em si». Uma palavra só existe no uso. Se uma palavra com sentido relativamente incontroverso como «terrorista» passa a ser usada num sentido controverso, não são as palavras que perdem: somos nós, que vamos perdendo os meios de de dialogar pacificamente.
2 «Todes»
O problema com o «todes», por sua vez, tem duas dimensões: a motivação e a execução.
Quanto à motivação, creio que o «todes» é apenas mais um capítulo de uma história de duas décadas, quiçá três: a história da mitigação do uso do masculino que denominarei «indefinido». Sei que dizem masculino «genérico», mas, em gramática, o próprio masculino já é um gênero, e dizer «um gênero genérico»…
Nas línguas latinas que conheço, assim como no inglês, muitas vezes você usa um masculino que pode se referir a uma pessoa de qualquer gênero. E se existem mulheres que realmente não se importam com o fato de «um professor» poder se referir a uma professora, outras mulheres, por outro lado, se importam, e dizem que não gostariam que meninas pequenas deduzissem disso que determinadas profissões não são para elas.
Aqui está um dos principais problemas. Essas pessoas não estão querendo aulas a respeito de como o gênero gramatical é diferente do gênero social, etc. Elas não estão fazendo uma pergunta, mas pedindo uma mudança. E, nesse caso, essa mudança vem acontecendo, como falei, há décadas: muitos autores passaram a escrever de maneira a evitar, quando possível, o masculino indefinido.
Entre esses autores estou eu mesmo, inclusive nas traduções que fiz. Primeiro, porque a demanda não me parece injusta; segundo, porque se eu puder eliminar uma ambiguidade, sobretudo quando se trata de uma ambiguidade que certamente não está no texto que estou traduzindo… Vejam que não é por acaso que ofereço um curso intitulado Escrever com clareza.
Em português você faz isso, por exemplo, usando a palavra «pessoas» no lugar de «homens». Outro exemplo interessante está na tradução dos Evangelhos feita por Frederico Lourenço, em que o «Filho do Homem» virou o «Filho da Humanidade». Abuso? De maneira nenhuma. Os Evangelhos foram escritos em grego, e o grego tem uma palavra para «homem» (anér), outra para «mulher» (gyné), e ainda outra para «humano» (anthropos). O «Filho do Homem», em grego, é hó Hyios tou Anthrópou (leia: ró ryios tú anthrópu, fazendo para o y aquele u com biquinho francês), isto é, «o Filho do Humano», ou «o Filho da Humanidade».
Os anglos, por sua vez, foram mais longe. Há pelo menos vinte anos me deparo com textos em inglês que usam she como pronome pessoal indefinido. O autor começa falando de an engineer e logo depois usa she para referir engineer. Engineer não corresponde a he indefinido, mas a she indefinido — o que faz com que os homens se ponham na posição das mulheres que se deparavam com esses he.
Caso o leitor ache que só universitário esquerdista safado escreve assim, devo dizer que fiz questão de pegar esse exemplo no excelente livro Zero to One, de Peter Thiel, bilionário que foi superdelegado do Partido Republicano na eleição de Trump, e que mantém um programa que oferece cem mil dólares para jovens selecionados que desejem abandonar a universidade para empreender. (E se você ouvir Thiel falando do Partido Democrata…)
Os exemplos de she indefinido são tão abundantes que nem me dou ao trabalho de trazer outros. Hoje, eu me surpreenderia mais se um livro gringo fosse publicado com he indefinido.
E assim chegamos ao todes. Se já havia uma disposição estabelecida para mitigar o uso do masculino indefinido, para mitigar precisamente o «todos», como negar o uso de um pronome inteiramente novo para referir pessoas inteiramente novas que não desejam encaixar-se nem no gênero social masculino, nem no feminino?
Veja o leitor que não se pode recusar o todes alegando-se que «o neutro do latim foi absorvido pelo masculino do português», porque uma coisa não tem nada a ver com a outra. O gênero gramatical neutro não é um gênero indefinido, mas um gênero gramatical definido, com direito a artigos definidos neutros. E a questão do todes diz respeito a um pronome que refere pessoas; ainda não vi ninguém propondo o uso de todes es livres.
Aliás, agora me ocorre que esse é quase o sentido da palavra «Bíblia», que vem do grego tá biblía (sim, biblía, com o segundo i tônico), neutro plural do neutro singular tó bíblos…
Agora, como eu tinha dito, o segundo problema relacionado ao todes está na execução. Primeiro, é feio. Segundo, ao menos até agora, também é ambíguo: refere homens, mulheres, e não-binários, ou só os não-binários? Terceiro: como vamos fazer a concordância? Realmente se espera que alguém diga todes são bonites?
Mitigar o masculino indefinido tem seus problemas de execução próprios. Posso compensar um «o leitor percebe…» aqui com uma «humanidade» acolá. Mas vou dizer e leitore para referir o leitor, a leitora?
Creio que as editoras do Brasil ainda não deram o passo todes na mitigação do masculino indefinido justamente porque ele acaba criando mais problemas do que resolve — assim como creio que é de uma má vontade avestruzesca recusar in limine a ideia de nomear pessoas que se esforçam para não caber nos gêneros sociais masculino e feminino só porque a gramática já admite um masculino indefinido.
É uma má vontade que não deixa de ter seu paralelo em fazer questão de chamar vândalos de «terroristas».