Estou mudando de vida e passei a usar um diário. Aqui vão trechos do que escrevo, com poucas mudanças. Esta seção da newsletter substitui a «Quebra-Cabeças». Espero que seja muito mais frequente.

O papa e a guerra cultural
Francisco foi o primeiro papa a falecer em plena «guerra cultural», esse estranho fenômeno que não é nem uma guerra, pois uma guerra tem regras e fim, vencedores e vencidos, etc., nem cultural, pois nada está sendo cultivado. E a «guerra cultural» é ruidosa a ponto de nos obrigar a tantos preâmbulos, prefácios, e prolegômenos que talvez nunca cheguemos aos temas. Eu mesmo tenho muito pouco a dizer sobre o papa Francisco, mas algo a dizer sobre as maneiras como ele é interpretado.
Agora, se a «guerra cultural» não é uma guerra, talvez ela possa ser entendida como um duelo. Nesse duelo, uma ala autodenominada «conservadora» considera que o papel da Igreja Católica é rivalizar com o mundo, e sobretudo com o mundo «moderno». A maneira como a Igreja desempenha esse papel pode ser resumida assim: ela não deve alterar-se. Há um pressuposto mais ou menos explícito de que a Verdade já é conhecida na forma de teses unívocas; assim, resta ao católico a coragem de deduzir e de aplicar essas verdades com o máximo de rigor.
Do ponto de vista afetivo, o «conservador» se ressente, digamos, das inovações litúrgicas e do aspecto de programa de auditório que há nas missas. Admito com toda franqueza partilhar desse ressentimento. A liturgia não existe para entreter, e, como disse James Alison, «a missa deve ser um pouco entediante» (mass should be a little boring). Seria interessante entrar nos motivos disso, que têm a ver com a distinção entre o santo e o sagrado, mas não é este o momento.
O «conservador» ouve que ele não deve se revoltar com as inovações litúrgicas, por mais que sua breguice lhe pareça clamar aos céus por vingança; o escândalo do conservador com elas não é levado a sério, e ninguém se importa com a sua sensibilidade. Seu lugar é o gueto; a tão celebrada diversidade não alcança uma missa no rito utilizado por séculos. Porém, no gueto você encontra pessoas parecidas com você, igualmente marginalizadas e ressentidas — e todos começam a acompanhar o Vaticano e a hierarquia assim como os feiosinhos e sem jeito da high school americana acompanham com mórbido fascínio o mundo extrovertido dos jogadores de futebol e das líderes de torcida — e estes nem sequer percebem que sua indiferença é sentida como um afrontoso desprezo.
Na mentalidade de duelo do «conservador», como em qualquer mentalidade de duelo, só existem resistência ou desistência, invasão ou infiltração, vitória ou derrota. Uma vez que você entende que há um mecanismo, acompanhar a situação se torna entediante.