Com a última chamada para meu curso Desejo & Orgulho aberta até amanhã (05/08/22), escrevi estas notas pensando na venda de cursos online. O texto está relacionado ao curso: sedução, idolatria, ressentimento — e como isso se relaciona com o ensino e com a formação de um público.
O principal problema do ensino obrigatório é ele ser obrigatório. Isto é: boa parte dos alunos em qualquer curso está lá cumprindo um crédito, e não tem o menor interesse naquilo que será ensinado. Uma mulher pode até ficar grávida enquanto está entediada e pensando em outra coisa, mas, em termos de ensino, é fundamental que aluno e professor estejam pensando na mesma coisa. Por isso é que se costuma dizer que, no ensino obrigatório, o aluno finge que aprende, e o professor finge que ensina.
(Não pensem, aliás, que minha imagem da mulher que engravida é de mau gosto; a palavra «seminário» tem a raiz latina semen, que significa «semente». O resto da analogia eu não preciso completar, e no ato sexual há desinteresses difíceis de ocultar.)
Ainda assim, no ensino obrigatório, que funciona no sistema de créditos, claro que podem acontecer maravilhas. Eu diria até que existem muitas vantagens evidentes num sistema de créditos, e a principal delas é que o professor não precisa seduzir os alunos para ganhar seu dinheiro, nem dominá-los psicologicamente para manter a clientela. A relação entre professor e aluno tem data para começar e para acabar. Além disso, o aluno sabe que, fazendo a graduação, o mestrado, e o doutorado, será considerado um igual pelo professor. A superioridade do professor é apenas temporária, e está a serviço do crescimento do aluno.
Além disso, é possível ter grandes experiências na universidade, e é interessante o quanto essa experiência se parece. Após um contato de algumas semanas, o aluno sente que teve sua vida alterada para sempre. Como no poema «Ulisses», de Octavio Mora, o aluno sente que «minha fronte / alargou-se, meus olhos são maiores, / e na memória trago outros países». Depois do estudo, ficam a empolgação e a gratidão. A vida parece mais plena, mais complexa, mais nuançada, mais interessante; e o aluno sabe que foi um professor que despertou nele esse interesse.
O aluno, porém, segue sua vida. O marketing propõe que você venda as coisas no formato de uma «jornada do herói» em que o «herói», ou o verdadeiro protagonista, é o cliente. Assim, o ensino em que os créditos são obrigatórios e não precisam ser vendidos é aquele em que o aluno é o verdadeiro protagonista.
A necessidade de atrair e de manter alunos é que acaba fazendo com que um professor se torne um «herói», e os alunos, fãs que pagam pela proximidade com o ídolo, como nesses shows americanos em que você pode pagar fortunas para ver a passagem de som e apertar a mão do ídolo. (Nada contra: talvez o que me impeça de fazer isso com Peter Gabriel seja apenas a falta de dinheiro.)
Porque por mais que os liberais — como eu — defendam que, no mercado, o serviço que melhor atende os clientes é o que vai vencer, não posso estar eu mesmo vendendo um curso online que termina com Memórias do subsolo e levar a sério essa ideia. O narrador nem sequer se dá ao trabalho de «refutar» o utilitarismo racional, apenas zombando dele e dizendo que aquilo que as pessoas querem não é a felicidade, mas sim «ter uma vontade independente»…
Agora, sem entrar no Subsolo, mas ficando numa fase psicológica anterior, aquela de O vermelho e o negro e de Memórias de um homem supérfluo, no mercado você precisa agir um tanto como a coquete que sabe atiçar o desejo, levá-lo ao máximo, cobrar o máximo. O cliente tem de estar fissurado. Pense nas pessoas que passam a madrugada na frente da loja da Apple, no frio dezembro nova-iorquino, para comprar um aparelho que estará igualmente disponível para quem passa a noite na sua cama quentinha.
Você também pode, claro, entregar muito. A questão não é essa. A questão é que o processo de sedução vai inevitavelmente desgastar a imagem de qualquer professor, que logo passará a ser visto como vendedor de cursos. Veja, até, a área do marketing: para mim é difícil não acreditar que o principal produto são cursos de marketing vendidos para um público fissurado na ideia de uma transformação mais ou menos súbita na vida.
Pessoalmente, sempre quis ser «um escritor do século XIX». Com isso quero dizer: um escritor que vive do público e que tem contato com ele. A literatura, no século XX, começou a ser protegida demais pela vida universitária e pelos cargos públicos, ou mesmo pela riqueza de família. No Brasil, isso tem produzido escritores que não precisam de público. Alberto Mussa pode ter escrito A primeira história do mundo, o mais empolgante romance contemporâneo brasileiro, mas ele não precisa do sucesso comercial desse romance. Ele não está apostando no sucesso de seus textos sua vida, ou ao menos um certo padrão de vida.
A internet trouxe justamente essa possibilidade. Você pode escrever, gravar vídeos, ter contato direto com o público. Mas, a longo prazo, você pode construir uma autoridade intelectual verdadeira — isto é, ser respeitado ao longo de décadas como escritor, e/ou como professor — se ao mesmo tempo você precisa agir como um ídolo e criar um «campo de distorção da realidade» para manter um público fissurado o suficiente para que você venda seus cursos?
De maneira nenhuma quero subir no meu dotorado em literatura comparada e condenar o que acontece. Quero dizer que existe uma situação inteiramente nova — mas que a experiência do aluno que de fato sente que «sua fronte se alargou, e na memória traz outros países» ainda deve ser um critério mais importante. Simplesmente porque esse aluno tem gratidão e respeito pelo professor. Já o cliente seduzido, como qualquer pessoa seduzida, pode facilmente cair na decepção e no ressentimento.