Nota: Escrevo o texto como uma reflexão a respeito do meu próprio projeto. Acredito que existe uma tensão dentro da atitude conservadora, e que essa tensão pode ser aliviada pelo conhecimento da história e pela leitura da ficção adulta. Por isso, amanhã, 16/05 vou dar uma aula inteiramente gratuita chamada «A origem da familia tradicional». Como será uma live no YouTube, você precisa se inscrever para receber o link.
1 O vício do pensamento conservador
Nas primeiras páginas de Como ser um conservador, Roger Scruton diz que «existem dois tipos de conservadorismo, um metafísico, o outro, empírico. O primeiro reside na crença de que existem coisas sagradas e no desejo de defendê-las contra a profanação […]. Na sua manifestação empírica, o conservadorismo é um fenômeno mais especificamente moderno, uma reação às vastas mudanças desencadeadas pela Reforma e pelo Iluminismo.»
Não sei se Scruton chega a abordar o principal vício do conservadorismo, que é também o meu principal vício de pensamento: a fusão (ou confusão) entre esse conservadorismo «metafísico», que posso formular com os versos de Antonio Machado —
La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se piense al revés.
— e o conservadorismo «empírico», marcado pela oposição a determinadas mudanças (e, diria um conservador, pelo ceticismo em relação a mudanças em geral).
Posso traduzir esse vício assim: se eu creio que algo é bom, belo, e verdadeiro, então passo a crer que isso sempre existiu, e que qualquer problema provavelmente vem de nos afastarmos disso que sempre existiu. Também tendo a sentir as coisas da maneira inversa: se algo existia no passado, o passado por si já traz a credibilidade do bom, do belo, e do verdadeiro.
Uma parte importante do que eu chamaria de «minha formação» consistiu em fazer as pazes com a modernidade e em lutar contra esse vício.
2 Formação: descobrir-se moderno
Aqui, porém, eu não diria, para usar uma abjeta expressão contemporânea, que tomei uma sucessão de «pílulas vermelhas», mas que tive nada menos do que um puro e simples golpe de sorte: dos 18 aos 19 anos, estudei na New York University, e lá aprendi que várias coisas que eu considerava boas, belas, e verdadeiras eram na verdade ideais perfeitamente modernos.
Primeiro a professora Peggy Cassidy fez sua turma de «Perspectives on Communication» ler The Disappearance of Childhood, de Neil Postman. O livro não é interessante por ser uma crítica da modernidade que destrói a infância, mas justamente por mostrar como foi a modernidade iluminista que pôs a ideia de infância no senso comum e literalmente permitiu que milhões de crianças tivessem infância. Muito grosseiramente, antes do século XVIII, sem livros industrializados, sem escolas com divisões por idade, sem moradias que tivessem mais de um cômodo e garantissem e privacidade, ninguém seria inocente o bastante para ter infância.
Com isso Postman quer dizer que a infância é um mero artefato cultural? Ele responde que a infância lhe parece algo como a linguagem: todo ser humano tem uma capacidade inata, biológica, para a linguagem, mas todo ser humano precisa de um ambiente em que possa aprender a falar.
A infância, portanto, seria um belo exemplo de algo «eterno», que, no entanto, «nem sempre existiu». Lutar contra seu desaparecimento seria uma atitude claramente «conservadora» — mas também seria totalmente inútil sem o entendimento das condições absolutamente modernas que permitiram que tantas crianças tivessem infância.
A modernidade também trouxe outras ideias que hoje são consideradas eternas, pontos fundamentais de uma sociedade conservadora: o Estado-nação e a família tradicional, a qual distingo por quatro características:
— Um casamento motivado e sustentado pelo amor romântico (isto é, pelo amor que você tem por aquela pessoa em particular, pela crença de que ela é sua alma gêmea, de que vocês foram feitos um para o outro).
— Um marido, chefe da família, que trabalha fora e sustenta a casa.
— Uma esposa rainha do lar que cuida da casa e dos filhos.
— Filhos que vivem uma infância inocente.
Hoje, mesmo entre os conservadores, marido e mulher tendem à igualdade e a dividir tarefas domésticas, mas o ideal que caracterizei com os itens acima surgiu no século XIX, e ainda pauta debates a respeito do casamento.
3 Pergunta ao professor Scruton
Por isso tudo, gostaria de poder levantar a mão na aula do professor Scruton para perguntar: mas o Iluminismo não é também um «conservadorismo metafísico»? Veja a declaração de independência dos Estados Unidos, essa nação que tanto se orgulha dos seus «valores iluministas»:
«Consideramos auto-evidentes as seguintes verdades: que todos os homens foram criados iguais, que foram dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a Vida, a Liberdade, e a busca da Felicidade.»
A «verdade auto-evidente» de que «todos os homens foram criados iguais» tinha um destinatário certo: a aristocracia europeia. Não seria ela que estaria profanando esses direitos sagrados, dados por Deus?
Tanto parece ser esse o pressuposto que, nos Estados Unidos, o governo federal e os governos estaduais não concederiam títulos de nobreza. Ninguém que tenha título de nobreza pode ocupar cargo público nos Estados Unidos. E eu mesmo conheci em Nova York a ex-rainha da Iugoslávia — ex porque se tornou cidadã americana e teve de abdicar do título.
Daí também a resposta de Edmund Burke naquele trecho famoso, também um clássico da penteadeira de velha (se não o maior clássico): «nesse arranjo das coisas, um rei é apenas um homem, e uma rainha, apenas uma mulher…» No caso, Burke reagia à Revolução Francesa, mas o princípio é o mesmo. «Todos os homens foram criados iguais…»
Aliás, é um princípio que parece ser adotado, hoje, pela própria monarquia britânica. O rei Charles é hoje casado com uma plebeia de nascença, com quem não terá filhos; seu filho William é casado com uma plebeia de nascença, e o futuro rei da Inglaterra terá apenas 50% de sangue aristocrático. A rainha Vitória, por outro lado, ao arranjar os casamentos dos netos, fez questão de uma noiva (Mary of Teck, que acabou sendo a mesma para os dois) que tivesse 100% de sangue aristocrático. Assim, os próprios Saxe-Coburgo Gotha (isto é, os Windsor) vão exercendo esse direito inalienável, dado pelo Criador, de buscar a própria felicidade, em vez de ficarem presos a superstições.
Aqui dou o curto-circuito: se a ideia de que somos iguais e temos o direito à vida, à liberdade, e à busca da felicidade é uma «verdade que continua sendo verdade, mesmo que se diga o contrário», então os revolucionários americanos não são «conservadores metafísicos» no sentido de Roger Scruton?
E, para voltarmos àquele meu vício conservador, até que ponto não vamos projetar os ideais que temos — como a ideia de que fomos criados iguais, que temos o direito à vida, etc. — num passado remoto, quando na verdade esses ideais que seriam altamente «conservadores» são nada menos do que modernos?
"Revolutionists make a reform, Conservatives only conserve the reform." (Chesterton)