Leia aqui a primeira parte.
O próximo texto será apenas para assinantes pagantes (com o perdão da rima). Nele, vou comparar uma noção muito difundida nas receitas de marketing com um problema enfrentado por William Shakespeare: aquilo que o público quer ver, e aquilo que o público realmente não quer ver.
Para ler a visão shakespeariana do marketing, basta clicar em «subscribe now» aí embaixo. Do contrário, nos vemos em outra ocasião. Estou formatando o microclube do livro. Até mais!
(Só quero esclarecer, porém, que não vou ser uma daquelas pessoas que sequestram a grande literatura para vender sabonete. Realmente creio que Shakespeare enfrentou um problema que os marqueteiros preferem não enxergar.)
O teatro do desprezo — parte 2 (e final)
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Talvez eu não insistisse tanto no desprezo se não fosse o aparente contrassenso de ele ser a mais antidemocrática das emoções. Digo «aparente» porque numa sociedade oficialmente hierarquizada as distâncias entre as pessoas já estão demarcadas. Por que um duque desprezaria um plebeu? Digo realmente desdenhar, mas mantenho a palavra «desprezar» propositalmente, porque um outro seu contrário é justamente o «prezar», o saber o devido preço. Numa sociedade oficialmente hierarquizada, cada um sabe «o quanto vale» em relação ao outro. É só numa sociedade igualitária, democrática, capitalista, em que há mobilidade social, que as pessoas se desprezam, porque o desprezo é uma estratégia de competição. Desprezar, dar o preço errado, para menos; menosprezar.
Mas quem despreza diz que dá o preço «justo»; quem é desprezado tem seu orgulho ferido. Daí a indignação; daí a raiva. Essa raiva só pode ser respondida com mais desprezo. Se for respondida com raiva, isso significa que o deus que despreza está se rebaixando ao nível dos mortais. Quem tem raiva logo vai parar na lama.
Agora, ainda na questão da sociedade democrática, é preciso dizer que parte do problema está mesmo na tendência à informalidade. Informalidade é falta de distância. Se estamos no mesmo plano, preciso me diferenciar, preciso desprezar. Imagine se as pessoas, ao contrário, decidissem aumentar a distância entre si, colocar-se cada uma no devido lugar. Seria fácil fazer isso trazendo de volta o uso habitual do tratamento por «senhor» e «senhora».
Imagine você ser entrevistado num programa — talvez pela própria Sra. Prioli — e logo de cara dizer: «Por favor, não me chame de “você”. Não somos amigos, nem nos conhecemos. Em todos os países do mundo as pessoas mantêm essa distância social, os franceses perguntam se podem tratar-se por tu em vez de vous. Então, por favor, mantenhamos essa boa distância.» Se o entrevistador não entendesse isso como ofensa, se o público fosse capaz de não ver nisso a suposta tremenda vaidade do entrevistado, acredito que haveria ao menos mais afabilidade e menos competição entre entrevistador e entrevistado. Menos desprezo, menos raiva.
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No Brasil, a nova direita recorreu à única arma que pode vencer um desprezo praticado com arte: o escárnio. Livros como O imbecil coletivo e Os sapos de ontem fizeram na década de 1990, para um grupo ainda relativamente pequeno de pessoas, aquilo que os memes viriam a fazer 20 anos depois. O escárnio, é claro, é uma forma de desprezo, e é fácil atacar o que parece pomposo (um leitor atento perceberia que abri o flanco de propósito ao falar da caneta-tinteiro). O escárnio é a arma dos Gavroche, o menino de rua irresistível de Les Misérables, dos que têm estilo e sprezzatura onde os outros têm cem modelos de cartas de apreço ao senhor diretor. E talvez um dos grandes mistérios do Brasil seja que esse escárnio não tenha chegado antes de Olavo de Carvalho e de Bruno Tolentino; que as críticas a tantos intelectuais públicos tenham sido tão respeitosas, como se, entre Nelson Rodrigues e Olavo de Carvalho, só tivesse existido Paulo Francis, e, numa medida menor, mais restrita, Roberto Campos.
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Porém, já apontei um problema para o futuro da nova direita. Olavo de Carvalho e Bruno Tolentino têm suas obras, das quais você pode não gostar, mas que merecem ser avaliadas criticamente. A favor de ambos pesa um amor pelo estilo — ou um puro amor pelo idioma — que não tem nenhum paralelo na esquerda, ao menos que eu conheça; aliás, não consigo me esquecer do grande e famoso intelectual de esquerda (além de ótima pessoa, que tive o prazer de conhecer) que escreveu «um argumento cujo desdobramento subsequente se dirige no sentido de conceber». Até o momento, porém, nossa nova direita tem muitos memes e poucas obras. O escárnio chegou e é de direita; porém, quando termina sua função corrosiva? Onde acaba a fase de destruição?
Quisera eu poder terminar isto pensando numa reação de esquerda que pudesse contrapor-se ao escárnio da direita. Não há. Pouco depois da eleição de Bolsonaro, assisti a uma conversa entre meu orientador na pós-graduação, João Cezar de Castro Rocha, um grande intelectual de esquerda, a quem admiro sinceramente, e a professora argentina Adriana Amante, outra grande intelectual, especialista no autor argentino Domingo Sarmiento, cujo Facundo estudei no doutorado. João Cezar lhe dizia que a esquerda precisava «descer do salto alto» e dialogar com a direita, como ele mesmo tinha feito, por exemplo dirigindo coleções para a É Realizações: dialogar é justamente abandonar o desprezo. Penso, aliás, no prólogo de O imbecil coletivo, em que Olavo de Carvalho explicava que o imbecil coletivo era formado por pessoas que, individualmente, até podiam ter a inteligência acima da média, mas se juntavam «para imbecilizar umas às outras». Vendo a maneira como a esquerda ignora demandas típicas da direita — como a expectativa de que deve haver algo admirável no Brasil, e não apenas corrupção, escravidão, e racismo —, a esquerda pode, a esta altura, ter ficado tão somente com o salto alto.
(Sem que a direita ainda tenha mostrado que tem muito mais do que o megafone nas mãos.)