Leia a parte 2.
1
Direita e esquerda podem ser difíceis de definir, mas como são fáceis de reconhecer (assim como tantas nacionalidades), a tentação de defini-las permanece, viva e irresistível. De início pensei que elas podiam ser definidas por sua atitude em relação à violência. Não creio que se possa dizer que esquerda e direita sejam uma mais violenta do que a outra —
Aqui tenho de fazer uma advertência. O leitor pode ficar escandalizado, isto é, tropeçar, cair na «pedra de tropeço». Porém, preciso insistir que vou contra o essencialismo. A verdade que me interessa é a que está nas relações humanas; não acredito nem posso acreditar que esquerda ou direita sejam essências, substâncias. Falo das pessoas de esquerda e de direita que vejo hoje. Não estou apresentando uma tese histórica, mas uma generalização a partir da minha convivência.
— mas sem dúvida a direita até gosta de ostentar a própria violência, ao passo que a esquerda prefere varrê-la para debaixo do tapete. A direita entende que a violência sempre existirá, e que sempre será necessário usar de violência para conter a violência. Daí que ela exiba suas armas e diga que «bandido bom é bandido morto». A direita recusa o idílio, imagina a própria casa sendo invadida, e se prepara para isso. Até por esse motivo um ambiente mais à direita terá valorização da força física.
A esquerda só enxerga a violência «lá fora». Cristo disse: «pobres, sempre os
terei» (João 1, 8). A direita diz: a violência, sempre a teremos. Por isso estamos preparados. Com a nossa violência.
Daí também que eu me lembre do que disse a jornalista francesa Eugénie Bastié: dentro da direita, as pessoas acusam umas às outras de covardia, isto é, de ter medo da violência. Bastié (como eu) é a favor da vacinação e pretende vacinar-se, mas é contra o «passaporte sanitário». Houve um tempo em que essa seria apenas uma posição nuançada, e, francamente, banal. Hoje já é covardia perante o Estado, a China, etc.
No mundo da esquerda, o que leva à dissolução é a acusação de impureza. Fulano ainda é racista, Fulano ainda é cúmplice daquilo, Fulano ainda não entendeu tudo. Mas acho que podemos diferenciar direita e esquerda de um jeito mais eficiente.
2
Se é verdade que a direita não tem problemas para exibir sua própria violência, também é verdade que ela não vê problema nenhum em exibir a própria raiva. Daí que seja chamada de «bronca» e de «xucra», e também, em grande parte, que goste de assumir isso. Enquanto manuscrevo a primeira versão deste texto com uma caneta-tinteiro e me pergunto se já não é tarde demais para tomar uma taça de vinho, lembro que, no Brasil, o direitista gosta de falar mal da «prudência e sofisticação».
A raiva, essa emoção desordenada por excelência, emoção que dá e passa, que serve como atenuante até para atos escabrosos cometidos «no calor do momento», tem sua antípoda na mais fria das emoções, aquela que tem de ser evocada e como que praticada até tornar-se uma segunda natureza: o desprezo.
O desprezo é a emoção dos deuses: «o que vem de baixo não me atinge». Qualquer pessoa que já tenha se preocupado com algum sucesso social, ou com a mera necessidade de derrotar algum inimigo — um adversário numa polêmica, um competidor qualquer — já cogitou a estratégia do desprezo. Para arrasar o adversário, desprezá-lo; mostrar que ele é indigno de enfrentamento; vencer a batalha sem nem mesmo entrar nela.
A questão, como eu disse, é que o desprezo é uma arte. Assim como as técnicas que levam você a ficar mais bonito, você precisa realmente acreditar na sua superioridade. Essa é a única maneira de manter um orgulho intacto. É preciso pressupor essa superioridade, tão natural quanto o ar que se respira. O desprezo precisa ser sincero. É uma espécie de method acting que praticamos conosco mesmos.
A esquerda, mais urbana, mais cosmopolita, é mais bem treinada e mais sofisticada nessa encenação, tanto que vai agir em relação ao desprezo da mesma maneira que a direita age em relação à violência, pressupondo sempre que ele é justificado, uma mera decorrência da qualidade desprezível daquilo que está sendo de fato desprezado. A hipótese de que o desprezo seja prévio, seja uma estratégia entranhada, uma segunda natureza, é o que não ocorre a ninguém.
Mas não ocorre não porque todos somos cúmplices, e só registramos o desprezo quando o ator é ruim e deixa que percebamos o truque.
(E recorremos ao desprezo porque, num tempo distante, talvez na própria infância, você foi humilhado, e jurou que nunca mais seria humilhado daquele jeito; hoje você já esqueceu a própria humilhação, e o desprezo preemptivo já é uma inércia.)
3
Eu mesmo só percebi isso quando vi a professora de oratória Giovanna Mel descrever as estratégias de comunicação da apresentadora Gabriela Prioli. Fui eu mesmo ver um vídeo da Sra. Prioli, e ela, que começou convidando o espectador a «deixar de lado as emoções», logo começou a falar com desprezo. Um pouco atordoado, pensei: mas o desprezo também é uma emoção! Aliás, é uma emoção «universal», daquelas descritas pelo dr. Paul Ekman. Por que o desprezo não é percebido como uma emoção?
Bem. O próprio Paul Ekman observa que não há consenso quanto a o desprezo ser uma emoção universal. Mas é possível dizer que o desprezo está associado ao orgulho e à vaidade. Mais despreza quem mais se acha, e o desprezo parece vir como reação a um ataque a nosso orgulho, não como reação a um ataque injustiçado e sem sentido. Por exemplo, depois de ter sido aluno universitário nos EUA e de ter traduzido algumas dezenas de livros do inglês, eu simplesmente ficaria surpreso («surpresa» é uma das sete emoções universais) se alguém me dissesse que não sei inglês. Para provocar em mim a reação de desdém, a pessoa teria de agir como se atacasse algo a respeito de que não tenho muita certeza, mas que é uma das muletas do meu orgulho.
Penso, como sempre, naqueles jovens intelectuais russos do século XIX, da geração de Herzen e de Bakunin. Um professor respeitado que sugerisse que eles não entendiam nada de Hegel poderia ter abalado fortemente a vaidade deles. Eu mesmo estou aqui fazendo uma afirmação ousada a respeito da esquerda e da direita. Decerto alguém reagirá com desprezo: dirá que escrevo mal, que estou tentando péter plus haut que mon cul. E eu ficaria tentado a reagir dobrando a aposta do desprezo. Antes de as disputas terem a ver com argumentos, elas têm a ver com pose, com imagem (estamos já um pouco distantes da «retórica» dos gregos antigos); eu precisarei ter «vencido”, desprezado um crítico interiormente antes de entrar em cena. Mas eu não poderia começar com as estratégias óbvias do desdém, que seriam a carteirada e a piada interna. A carteirada: com quem você pensa que está falando? A piada interna: a referência a algo que meu interlocutor provavelmente não conhece. Seria uma disputa de humilhações.
(No Brasil, nunca vi uma polêmica que não fosse assim. O desprezo é a bomba atômica; seria o caso de atacar sem a intenção de aniquilar totalmente.)
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