029 O conservadorismo que não entende a tecnologia
Reclamar do absurdo pode esconder a mera preguiça de pensar
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Nas últimas semanas, diversas pessoas às direitas no Instagram receberam do aplicativo a mensagem de que a partir do dia 25 de outubro não teriam mais acesso à figurinha de link — o que significa, no linguajar de algum tempo atrás, que elas não teriam mais acesso ao «arrasta para cima», à possibilidade de compartilhar links nos seus stories.
Será isso uma revoltante forma de «censura»? Acho que na verdade o que está em jogo é algo muito mais sério, e que a palavra «censura» mal arranha o problema. E não estou dizendo isso por sensacionalismo, para enganchar o leitor até o final.
Embora eu tenha asco de expressões pomposas como «questões civilizacionais», o que me parece que está acontecendo é uma reação ainda tosca e desajeitada, de todos os lados, a uma questão civilizacional.
2 Censura ou controle de informação?
Eu mesmo sempre fiz questão de usar a palavra «censura» num sentido estrito: só quem pratica censura é o governo.
O fato de eu esperar que o governo não censure nada, não proíba o funk carioca, não proteja a moral e os bons costumes (embora o governo sempre faça isso, só o que muda é quem decide o que são a moral e os bons costumes, a perseguição legítima de ontem é o crime de hoje) não quer dizer que eu mesmo não pretenda controlar a informação à minha volta.
Por exemplo, só escolho morar em locais potencialmente silenciosos. Não quero saber o que meus vizinhos fazem nem quais são suas preferências musicais, por mais sublimes que sejam. Não quero ler 99,99% das notícias publicadas na imprensa. Talvez alguém pense agora que estou falando de «curadoria»: não, estou falando que tenho o potencial de ler muita coisa inútil mesmo, que se me deixarem vou ler tudo, e vou perder meu tempo.
Faz sentido chamar isso de «censura»?
Além disso, quando as pessoas da nova direita brasileira compram produtos que prometem uma seleção de conteúdos que não vão fazer mal à alma delas, quando elas se preocupam com a «formação do imaginário», elas estão fazendo a mesma coisa: estão tentando controlar a informação.
Nada disso é censura. Embora possa ser ingênuo. Inclusive da minha parte.
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Foi Marshall McLuhan quem criou a expressão «ecologia da mídia», com a qual ele pretendia dizer o seguinte: uma nova tecnologia de informação não faz com que você tenha o mundo antigo mais a nova tecnologia: ela altera totalmente o mundo.
Algo que acontece hoje é termos ainda um imaginário que vou chamar de iluminista, e que simplesmente não se encaixa no novo ambiente tecnológico que está se formando.
De certa maneira, o iluminismo é a cultura do livro. A filosofia medieval era feita de debates, isto é, era uma conversa ao vivo. As «questões disputadas» que ela nos deixou foram escritas por taquígrafos e revisadas pelos doutores. A Suma Teológica é uma coleção de perguntas e respostas resumidas (daí ser uma «suma»). Já a filosofia moderna é o primado da consciência individual: ela se parece muito com a experiência da leitura solitária, do pensamento apartado da conversa imediata.
Vejam: não estou dizendo que uma coisa causou a outra: estou assinalando uma semelhança.
A primeira instituição a sofrer com o novo ambiente criado pelo livro industrializado é a Igreja Católica. Antes, sim, havia dissensões, heresias, houve o massacre dos cátaros no começo do século XIII. Porém, depois que o catolicíssimo Gutenberg inventa a imprensa móvel, que permite a industrialização do livro, e Lutero traduz a Bíblia para o alemão corrente…
…muitas barreiras são eliminadas. Não é preciso saber latim. Não é preciso pagar um copista. (Um livro feito por um copista custava dezenas de vezes mais do que um livro industrializado.) O que acontece quando a Bíblia deixa de pertencer a uma elite de latinistas diretamente associados à hierarquia católica?
A reforma protestante.
(Sim, claro, há mil outros fatores, mas o que estou dizendo é bastante consensual entre os estudiosos da história da comunicação.)
O que a Igreja Católica tem feito desde então? Tem afirmado sua autoridade, chegando ao ponto de declarar a infalibilidade papal em 1870. Essa é uma resposta ao relativismo: se há tanta informação disponível, qual é, em última instância, o critério que controla a informação? A autoridade. E de onde vem a autoridade? Do Espírito Santo. Em suma, de um ato de fé: em certas condições, Deus não vai nos deixar na mão quando o bicho pegar.
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Neil Postman explica em seus livros (e sempre me refiro a três deles, cujas traduções, fora de catálogo, já chegam a centenas de reais na Estante Virtual: Amusing Ourselves to Death, The Disappearance of Childhood, e Technopoly) que as instituições existem para controlar a informação.
Ele mesmo dá o exemplo da universidade moderna, que corresponde ao projeto iluminista: ao referir-se à própria New York University onde ensinava, ele lembrava que ali não havia cursos astrologia. Um currículo universitário — seja o de liberal arts, que corresponde a esse projeto iluminista, seja o das artes liberais medievais — é uma seleção de informações.
A diferença é que a Igreja, talvez por ter sentido o baque antes de todo mundo, decidiu simplesmente reafirmar sua autoridade. É claro que esse tipo de reafirmação só é feita quando a autoridade já foi tão questionada que perdeu muito do seu prestígio. Se Gutenberg inventa a imprensa por volta de 1450, setenta anos depois, nos Países Baixos, as autoridades religiosas já estão elaborando suas primeiras listas de livros proibidos. Em 1571, a Santa Sé já monta uma comissão para elaborar essas listas.
(Uma ressalva. Sou católico, e não sei o que eu teria feito se fosse o papa. São mil fatores etc., mas estou tentando contar uma história aqui.)
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Em 1999, criei uma pequena lista de discussão chamada de «Internet Livre». Em 2000, fechei a lista, por concluir que não existe liberdade nem privacidade na internet: eu estava tentando aplicar essas categorias iluministas à internet.
A questão é simples, e já a discuti quando falei das vacinas. Se você me der uma caneta-tinteiro, eu sei como ela funciona, consigo desmontar e remontar boa parte delas, consigo até fazer pequenos consertos.
Agora, e um computador? Essa tecnologia não apenas eu não entendo como não quero entender, porque entendê-la de verdade levaria um tempo que prefiro reservar a outras atividades. Como surgem as letrinhas na tela do computador? Como funciona o reconhecimento facial? Como funciona o Pix? Como um email aparece no computador de outra pessoa? Sei lá, estou relendo pela milésima vez O vermelho e o negro.
Assim, pensemos que antigamente a Igreja tinha a autoridade dos especialistas. Ela não precisava afirmar essa autoridade porque o ambiente de informação já a sugeria. Se um copista é um monge, um monge deve obediência ao abade. Se a filosofia acontece em universidades associadas à Igreja Católica, o catolicismo está pressuposto.
Mas de repente o ambiente informacional muda. Leigos — não apenas leigos no sentido de pessoas que não pertencem a ordens religiosas, mas leigos no sentido de não-especialistas — têm acesso a livros, a livros escritos em língua corrente.
Agora, mesmo que a Igreja tenha seus especialistas, associe-se ao Estado, permita que sua doutrina seja usada para atividades policiais, e persiga fisicamente os dissidentes, é mais fácil levar uma vida mundana sem receber os sacramentos do que sem usar um computador. O tipo de dependência que os leigos têm hoje em relação aos especialistas é muito distinto.
Os especialistas de hoje não estão centralizados num Vaticano informático — existem alguns Vaticanos e vários agentes livres mais poderosos do que eu. Até onde sei, meu computador pode ser invadido sem que eu jamais perceba. Meu dinheiro digital pode sumir do meu banco digital sem que eu receba explicações (ou seja capaz de entendê-las).
6 Reformulando a crise
Voltando ao veto do Instagram a certos influenciadores, o que temos hoje? Uma nova tecnologia, que, ao contrário dos livros, é centralizada e controlada por especialistas. O Facebook é uma empresa privada. O próprio Facebook está tão apavorado com o crescimento dos conservadores que suas tecnologias propiciaram quanto Gutenberg ficaria apavorado se visse a Reforma Protestante.
A Igreja Católica reagiu de maneira tosca e ineficaz. Em 1966, depois de séculos durante os quais sua proibição de livros foi se tornando uma piada cada vez mais engraçada, ela desistiu de listar livros condenáveis. O Facebook, por outro lado, pode facilmente retirar certas funcionalidades de certas pessoas. Ele tem a vantagem técnica e a centralização espontânea propiciada pela tecnologia, mas, a longo prazo, será que ele conseguirá o que a Igreja Católica não conseguiu?
(Embora nada garanta isso, arrisco uma previsão: nos próximos anos, sobretudo se Éric Zemmour for eleito na França, as Big Techs farão uma espécie de Concílio para coibir certos usos da tecnologia, junto ao G7. Com a bênção da China, surgirá um grande pacto diplomático ligado à tecnologia da informação. Nem que seja porque, enfim, burocratas produzem documentos.)
Será que os conservadores, que são os novos dissidentes, conseguirão abrir uma brecha e mudar o jogo, assim como conseguiram os primeiros protestantes? Será que aqueles que hoje olham com desdém os conservadores da internet não estão na mesma posição das autoridades eclesiásticas olhando os primeiros protestantes no século XVI?
Neste momento, não me sinto inclinado a apostar nos conservadores. Ao contrário daqueles protestantes, eles não parecem compreender as novas tecnologias, nem parecem animados por um espírito de defesa da verdade — eles parecem animados apenas pelo desejo de morrer sem ser incomodados. Os conservadores de hoje não parecem entender que a tecnologia que permite que eles se aglomerem virtualmente (porque estão longe de organizar-se) é a mesma que tem o poder de terminar de corroer o mundo antigo e os valores antigos, e preferem apoiar-se em categorias inadequadas, como «censura», que os dispensem de pensar radicalmente.