Aproveitando o exemplo de Nelson Rodrigues trazido no sábado passado, vou discordar de alguém que admiro: o escritor Sérgio Rodrigues, que também é colunista da Folha de São Paulo.
(E são dois Rodrigues. Só percebi agora.)
Na coluna do dia 24/11/21, Sérgio Rodrigues associa o fanatismo às dificuldades de diálogo no Brasil de hoje. Dificuldades enormes. Já vi conversas em que nem discordância havia quase resvalarem na pancadaria — o mais curioso é que o tema era polêmico (vacinas), mas, como não havia discordância, eram apenas as palavras que serviam de gatilho.
E esta, sem o menor suspense, é a minha discordância: enquanto Rodrigues vê um fanatismo associado a «firmes convicções», admitindo que ele mesmo pode ser um «fanático» da convicção de que «o governo Bolsonaro conduziu o Brasil a um estado avançado de decomposição», eu mesmo não vejo no fanatismo o obstáculo ao diálogo. Vejo esse obstáculo no escândalo em sentido bíblico, na «pedra de tropeço».
Reproduzi a convicção de Rodrigues de propósito, como ilustração do que quero dizer. Para uns, ela será auto-evidente, a própria verdade em que vivemos, nos movemos, e somos. Para outros, ela será justamente essa pedra de tropeço: aqui eles param de ler, as objeções inundam a mente, não é mais importante acompanhar o raciocínio, é imperativo reagir o quanto antes. Nada disso é deliberado. Pelo contrário, é tão indeliberado quanto tropeçar numa pedra. Esses leitores já estão interiormente cobrando que eu reaja à convicção de Rodrigues. (Porque, enfim, você escandaliza por pensamentos e palavras, atos e omissões.)
Eu mesmo tenho minhas «firmes convicções», nenhuma delas relacionada à situação política do Brasil, mas nenhuma delas me torna suscetível ao escândalo. Se você está firme, não tropeça. Não estou dizendo que eu não poderia perder a paciência — eu poderia perder a paciência por vários motivos —, mas estou dizendo que, num ponto relacionado a uma convicção minha, sou capaz de continuar ouvindo outra pessoa, mesmo que suas palavras contrariem minhas convicções.
O equívoco me parece estar aí: não estamos sofrendo de uma doença de profundidade, de um excesso de firmeza, mas de uma mal de puro superficialismo. Bernanos chegou a ver no fanatismo a impotência para crer —
A experiência da vida desde então me convenceu de que o fanatismo, neles, é apenas a marca de sua impotência para crer em qualquer coisa, para crer em qualquer coisa com um coração simples e sincero, com um coração viril. Em vez de pedir a Deus a fé que lhes falta, preferem vingar-se contra os incréus pelas angústias cuja humilde aceitação os teria salvo, e, quando sonham em reacender as fogueiras, é com a esperança de poder reaquecer ao pé delas sua mornidão — aquela mornidão que o Senhor vomita.
(A França contra os robôs, cap. 2 — tradução minha no trecho, não no livro publicado)
— mas não é mais disso que estamos sofrendo. Estamos num estágio muito mais avançado de degradação. Já abandonamos as crenças há muito tempo. São as meras palavras — não as realidades a que as palavras se referem ou se refeririam — que provocam reações imediatas.
As próprias «bolhas» não são bolhas de convicções; são bolhas de «viés de confirmação», em que pessoas se juntam para apedrejar sempre a mesma adúltera que as escandaliza, lembrando a imortal frase popular: «Eu posso até não saber por que estou batendo, mas ela sabe por que está apanhando.»
Daí vem o que me parece um grande desafio estilístico da nossa época: se quase tudo é motivo de escândalo, como discutir algo, especialmente o que precisa ser discutido, sem perder-se em milhões de ressalvas e soar simplesmente covarde? Até eu terminar de explicar que venho em paz, o leitor já se cansou, e as prioridades já são outras.
O segundo desafio, igualmente grande, está em evitar a burrice segundo Flaubert: a «vontade de concluir», que se confunde com a vontade de apontar o bode expiatório. Um pode dizer que o culpado é Bolsonaro, que é a direita. A direita pode dizer que foi a esquerda que começou. A inanidade desses «debates» de regressão infinita já cansa.
Essa vontade de concluir, essa pressa de concluir, é também algo contrário à convicção: como não dá para saber, você quer se agarrar ao primeiro sinal de firmeza; o escândalo é também uma encenação de convicção com a qual você gostaria de convencer a si mesmo. Não é como a fogueira que Bernanos denuncia no trecho que citei; já é a versão farsesca daquela fogueira. Você se escandaliza para que o outro veja que você está escandalizado; e, se o outro respeita seu escândalo, então talvez você tenha algum motivo de escândalo.
Bernanos mesmo, nas palestras que deu após a Segunda Guerra, reunidas em Liberdade, para quê?, dizia que o público reclamava que ele «não concluía» porque ele terminava sem propor nada, sem defender um partido político, sem sugerir um sistema ou uma solução. Aqui eu poderia dizer que a solução começa por ter calma. Mas você já viu alguém escandalizado ficar calmo só porque pediram?