044 Do ateísmo em política
Stendhal e Machado de Assis tomam um café discutindo Lula e Bolsonaro. Eu sou o médium
Neste texto, utilizarei as visões políticas de Stendhal e de Machado de Assis para entender como chegamos ao «teatro do desprezo» que caracteriza o debate político brasileiro atual, e para descrever alguns dos principais personagens deste cenário. Será minha primeira tentativa de esquematizar alguma visão da situação eleitoral brasileira. Não se trata, porém, de assumir uma posição partidária, mas de testar aquilo que a literatura sugere. No mais, me parece que a posição mais adulta é o «ateísmo político».
Para mim, foi muito engraçado ver René Girard, em Mentira romântica e verdade romanesca, dizer que «Stendhal era ateu em política», porque eu mesmo usava essa expressão. Eu dizia ser um «ateu político», alegando sentir espontaneamente, diante das pompas de Estado e das palavras dos políticos, a mesma coisa que Richard Dawkins sentiria ao entrar numa igreja: algo entre a exasperação e uma ligeira dificuldade de conter o riso.
Nada disso, é claro, me impede de ter minhas simpatias, minhas antipatias, e minhas crenças. Uma dessas crenças certamente é que não existe uma análise «puramente objetiva» na qual essas crenças, antipatias, e simpatias são simplesmente descartadas. O que existe é eu admiti-las, levá-las em conta, e pedir que o leitor também as leve em conta, junto com as suas. Desse modo, podemos nos encontrar como quem somos, de fato, em vez de acreditar — como acreditar numa coisa dessas? — num suposto espaço objetivo e neutro.
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Gostamos de pensar que os rivais são rivais porque têm diferenças inconciliáveis. Eu mesmo fui criado à base de filmes americanos que, para ganhar seu atestado de «inteligentes», tinham de mostrar com fidelidade os dois lados de uma disputa. Um defende o aborto, outro é contra o aborto. O desenlace da história, qualquer que seja, é uma justificativa profundamente pessoal e ponderada para a decisão. E assim, julga o inocente espectador, o debate é adubado e a frágil plantinha da democracia é cultivada.
Stendhal não apenas não era um inocente espectador como ainda assistiu ao nascimento do espírito democrático na França, e o que ele viu foi outra coisa: a rivalidade rapidamente fica mais importante do que as ideias.
Por isso é que, em O vermelho e o negro, o Sr. de Rênal pode pertencer a uma família tão antiga quanto os dinossauros, pode ser o prefeito da cidade fictícia de Verrières, pode ter-se casado com a rica beldade da região, mas quem realmente determina o que ele faz é o Valenod, seu rival. O Sr. de Rênal contrata Julien Sorel para que o Valenod não o contrate. Aumenta o salário de Sorel para que o Valenod não o roube.
Só há um problema: o Sr. de Rênal e o Valenod estão no mesmo partido. Assim, quando o Valenod é transformado em barão de Valenod e nomeado o novo prefeito de Verrières, o marquês de Rênal só vê uma solução: passar para o partido oposto. É a oportunidade, enfim, de formalizar uma situação que já existia de fato.
O Sr. de Rênal começa O vermelho e o negro falando do Valenod, e termina O vermelho e o negro falando do Valenod. Um roteirista pode falar do «arco do personagem» e pensar nos profundos motivos que levariam a essa conversão do Sr. de Rênal. Porém, como falei, Stendhal não é inocente. Ele vê que, no mundo democrático, a oposição em si é mais importante do que os motivos alegados para a oposição.
Afinal, se a mudança de partido do Sr. de Rênal não é uma expressão de uma mudança de convicções, mas apenas a expressão da sua rivalidade com o Valenod, que diferença pode haver nos partidos?
Esse passo a mais é dado por Machado de Assis, 74 anos depois.
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Como aquele narrador de Henrique V que pede ao leitor que imagine a mudança de cenário, narrador esse que Machado de Assis emula em Esaú e Jacó, peço ao leitor que se transfira agora justamente para esse romance.
Seria o caso de pensar que a Proclamação da República brasileira, em 1899, fosse um acontecimento tremendo, um marco entre um antes e um depois, algo que ao menos ecoasse o estrondo da Revolução Francesa e que demarcasse diferenças inconciliáveis na vida política brasileira.
Não é bem que Esaú e Jacó faça pouco dessa Proclamação, que serve de pano de fundo para o enredo. O que o romance mostra é que, antes dela, as diferenças já eram tênues, e, depois dela, se tornarão indiscerníveis.
Essa ideia está sintetizada no personagem da jovem Flora: disputada pelos gêmeos Pedro (monarquista) e Paulo (republicano), termina louca, literalmente incapaz de distinguir um do outro. Mais discretamente, já quase nas últimas linhas, o narrador ressalta que os gêmeos, apesar do dissentimento político, viviam em plena «fusão pessoal».
(Linhas depois, o romance termina, e os gêmeos agora parecem definitivamente separados. O que causou a loucura de Flora? Exatamente a mesma coisa que causa a loucura em Sonho de uma noite de verão: a alternância, cada vez mais rápida, de posições. Daí entendemos, também, que ser brasileiro é conseguir manter a calma diante dessa alternância acelerada; e que o brasileiro se sente bem na Europa porque, enfim, está num mundo estável, em que as coisas hoje são iguais ao que eram ontem.)
Outro caso: o político Batista, do Partido Conservador, tende a ver-se como liberal assim que o Partido Conservador fica por baixo. Vale a pena reproduzir o diálogo entre ele e a esposa no Cap. XLV:
— Você estava com eles [os conservadores], como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas idéias para dançar a mesma quadrilha.
Batista sorriu leve e rápido; amava as imagens graciosas e aquela pareceu-lhe graciosíssima, tanto que concordou logo; mas a sua estrela inspirou-lhe uma refutação pronta.
— Sim, mas a gente não dança com idéias, dança com pernas.
— Dance com que for, a verdade é que todas as suas idéias iam para os liberais; lembre-se que os dissidentes na província acusavam a você de apoiar os liberais...
— Era falso; o governo é que me recomendava moderação. Posso mostrar cartas.
— Qual moderação! Você é liberal.
— Eu liberal?
— Um liberalão, nunca foi outra coisa.
Um pouco mais adiante, no mesmo capítulo, o narrador informa que Batista «Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força precisa de trair os amigos, por mais que estes parecessem havê-lo abandonado.»
E, naquela parte da trama que é reservada à comédia, temos o episódio da tabuleta da confeitaria. Custódio tem uma loja de sucesso na Rua do Catete — para quem mora no Rio, é difícil conceber que essa já tenha sido uma das ruas mais chiques do Brasil —, a Confeitaria do Império. Manda reformar a tabuleta. Enquanto a tabuleta está no pintor, vem a República. E agora? Manter o nome e correr o risco de sofrer na mão de republicanos? Mudar o nome e trair o passado? Seguir a sugestão do conselheiro Aires e inscrever, abaixo de «do Império», um pequeno «das Leis»? Nada satisfaz Custódio, que sai indeciso da casa do conselheiro.
Não só. Costumo dizer que, numa obra de arte, entender o que não está nela pode ser tão importante quanto entender o que está. E o que não está? Não está nem mesmo uma discussão de princípios. Qual a opinião de Custódio sobre a República? Não sabemos. Custódio pratica a mesma Realpolitik de vantagens e desvantagens que Batista — o qual, naquele mesmo capítulo, pensa consigo:
Que é que havia nele propriamente conservador, a não ser esse instinto de toda criatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em política, porque o pai o era, o tio, os amigos da casa, o vigário da paróquia, e ele começou na escola a execrar os liberais. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema, como os liberais eram luzias.
Em suma: em 1830, Stendhal já mostrava que as diferenças entre os partidos podiam ser meras rivalidades. Em 1904, quando é publicado Esaú e Jacó, Machado de Assis nem sequer consegue mais acreditar nessas diferenças. A percepção de que elas são ocas já domina o romance inteiro. Os gêmeos se confundem, Batista entende que é conservador por inércia, Custódio nem mesmo cogita fazer-se essa pergunta. O vazio das rivalidades já é óbvio demais para quem nem sequer tem um interesse direto nelas.
3 O Brasil de 2022
Esses dois momentos — em Stendhal, a desmistificação da diferença; em Machado, a incapacidade de sequer acreditar na diferença — certamente não correspondem a dois pontos numa linha reta. Há movimentos de vaivém aí, ainda que a democracia só possa mesmo tender a uma exasperação das rivalidades.
Agora, porém, temos instrumentos interessantes para começar a esquematizar a situação política brasileira, e pela primeira vez, creio, vou arriscar algo assim em público.