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048 Confiteor

Em que o newsletterista admite ter sido contagiado pela violência

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Semana passada, quando enviei o texto que o Instagram removeu, devo admitir que estava longe da serenidade que costumo buscar e que é tão difícil de manter. Eu estava testemunhando um linchamento: o podcaster Monark, que nunca nem vi, estava sendo linchado virtualmente. O linchamento em si já é abominável, mesmo se tratando de um culpado. O linchamento de um inocente…

Afinal, há uma diferença entre dizer que o Partido Nazista deveria poder existir legalmente e dizer que seria bom se ele existisse. Você pode ser a favor da legalidade de um mal e ser totalmente contrário a esse mal. Não é o caso de começar aqui uma lamúria a respeito de oh como estamos perdendo a capacidade de fazer distinções. A capacidade de fazer distinções depende apenas da boa vontade. Aquilo de que gostamos é complexo e nuançado. Aquilo de que não gostamos é simples e fácil.

Por isso, até, nem sequer faz sentido condenar individualmente os membros da multidão linchadora — eu mesmo gostaria de não ser julgado pelos meus momentos de má vontade, porque a condenação seria certa.

Agora, se a justiça tem a presunção de inocência, a conversa pública deveria ter uma presunção de boa vontade. Os meios direitosos adoram dizer que, se Fulano não percebe tal coisa, ou é imbecil ou mau-caráter. Tenho de insistir: «Com a medida com que julgardes, assim sereis julgados», diz o Evangelho deste domingo.

Em vez de condenar, bastaria — já que as pessoas hoje sempre querem um «método» para tudo — perguntar: mas Fulano realmente disse isso? Se as pessoas já não sentem mais espanto, se já não se sentem intrigadas, então, como diz o povo, fica a dica.

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Um caso como o do Monark mexe com meu próprio ressentimento. Também eu fui chamado de racista por um dia ter escrito contra cotas universitárias para negros. O mais engraçado é que, nos cursos de Letras que fiz, na PUC-Rio, na UFRJ, e na UERJ, eu teria dificuldade para crer na necessidade de cotas — eu estava escrevendo algo totalmente abstrato, e poderia ter sido chamado de imbecil, mas certamente não de racista. Tentaram me processar, nada aconteceu, e quem processou vitoriosamente fui eu. Ainda assim, na imprensa, fui o Arandir de muitos Amados Ribeiros. Decerto essa lembrança motivou meu texto de semana passada sobre esses dois personagens de Nelson Rodrigues.

A pseudo-discussão monarkista nas internets passou para a legalidade do Partido Comunista, e foi aí que me deixei enredar. O fato de o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães ser ilegal no Brasil e o Partido Comunista ser gente boa é para mim um dos sinais de que might is just might and most certainly not right. O fato de Oscar Niemeyer ter sido a vida toda abertamente stalinista e ter sido gente boa é também outro exemplo que me faz pensar que, de fato, o «mundo» não apenas não deve ser levado a sério como ainda deve ser entendido naquele mau sentido bíblico.

Não se trata de «cobrar coerência», mas de simplesmente perceber que a força e o prestígio não têm nada a ver com a verdade ou com a justiça. Não venham me dizer que sou um tolinho ingênuo que acaba de descobrir isso. Sou, como o distinto leitor, mais um tolinho ingênuo que ainda tem dificuldades para aceitar isso. Nem pareço, aliás, original: basta um Bolsonaro eleger-se que temos todos os dias em todos os jornais colunistas recitando a mesma ladainha: «Mas como é possível, etc.»

E no entanto tenho a impressão de que traí — sou Pedro, afinal — o meu propósito. Escrevi aquele texto como quem gostaria de linchar de volta a multidão, ou ao menos de espicaçá-la, de fazê-la sentir o mesmo gosto ruim que, há décadas, às vezes ainda me sobe pelo esôfago.

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Esse propósito é simples de enunciar e difícil de praticar. Onde está a verdade? Consigo escrever sem fingimento? Com palavras que sejam minhas, que eu mesmo tenha pensado, falando de coisas que eu mesmo vi? E posso fazer tudo isso usando uma linguagem transparente, simples para uma pessoa minimamente letrada, sem jamais dar a impressão de que sou uma voz acadêmica ou um consenso inventado?

(Aqui, no «consenso inventado», penso naquele truque retórico que consiste em começar dizendo que «hoje se sabe que…» Assim, quem está falando já apresenta sua opinião como uma verdade universalmente conhecida. Imaginem: hoje sabe-se que o desejo é mimético. Hoje sabe-se que o café especial é superior ao café comum. E por aí vai.)

Não só: o surgimento de uma nova direita trouxe novos registros, que, por sua novidade, pareceram verdadeiros. Hoje, porém, especialmente se você de fato gostaria de vender cursos, é difícil convencer alguém de que só raras vezes você vai vender um curso pouco antes de terminar de falar. Eu até poderia botar a culpa no marketing, dizer que ele adestrou o público para sempre esperar um comando no final (o famoso call to action ou apenas CTA), mas mesmo nas páginas de opinião dos jornais a maioria dos artigos é retórica, explicando o que deve ser feito, o que é bom, o que é justo. É um tempo difícil para quem pretende, sem intenções mefistofélicas, mostrar impasses e complicações.

E se eu vou entrar numa confusão, não quero entrar como o salta-pocinhas que logo se apresenta como alguém «acima do debate» — debate esse que nem existe, é apenas uma perseguição. Pedro, afinal, não apenas negou Cristo, como pouco antes ainda sacou ta espada e cortou a orelha do centurião. Quero pegar a espada também.

O detalhe é que Cristo censurou Pedro, e curou o centurião.

É até um pouco engraçado pensar nesse momento do apóstolo Pedro. Então ele está lá, crente que está do lado do Messias, ele viu a transfiguração, e, como tantos de nós, mesmo assim, sente que tem de fazer alguma coisa, contagiado pela violência. É uma compulsão que consigo justificar moralmente com a maior facilidade.

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Eis, portanto: semana passada, fui contagiado pela violência e quis entrar na briga. Como nas tragédias gregas, Apolo, o algoritmo do Instagram, me trollou, e meu texto foi removido. Então fui espalhar o contágio por aqui.

Tendo então tropeçado, estando com a cara e as roupas enlameadas, escreverei a próxima newsletter a respeito do seguinte: onde está a verdade no discurso público hoje?

Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara