068 O enredamento (I)

Um esporte mais rico do que a caça a bodes paralíticos

Comecei a pensar nisso tudo porque gostaria de contrapor o marketing do medo a um marketing de conquista ou de «ganância». Mas será que essa ganância também é o medo… de perder uma oportunidade?

E, abaixo, Woody Allen, patriarcado, e teorias da conspiração na pergunta que não cabe na caixinha!

WeCrashed

Não devo ter a menor vocação para ganhar dinheiro, porque comecei pensando na história de como Adam Neumann levantou bilhões de dólares para criar a WeWork… e terminei descrevendo a perspectiva que distingue a tão famosa «grande literatura».

Chego até a me perguntar: seria essa uma perspectiva que poderia ser destilada e usada numa análise de mercado? Seria algo que, bem entendido, poderia ser preservado em relatórios resumidos — que, afinal, também são histórias — que ajudassem as pessoas a tomar decisões melhores?

Como falei, isso tudo me veio da decepção ao ver WeCrashed, a série de Apple TV a respeito da ascensão e da queda da WeWork.

A série não se contenta em ser uma caça ao bode expiatório: são tanques caçando com raio laser um bode paralítico. É difícil acreditar que o Neumann maconheiro, bêbado, e megalomaníaco ali representado tenha realmente levantado bilhões de dólares (itálico para que o leitor saiba que não errei: bilhões) em investimentos, como se, apesar de tudo, fosse apenas um misto de Derren Brown com batedor de carteiras.

Até porque, se for esse o caso, a necessidade seria ir mais fundo, não menos.

Adam Neumann & Jared Leto, que o representa em WeCrashed

O enredamento

A sensação de uma grande história perdida me fez imaginar como essa história deveria ser contada. Teria de ser a história de um «enredamento» — uma noção que inventei, mas que já deve existir por aí: uma interdependência de personagens, sem a perspectiva policial, sem a necessidade de encontrar culpados e vítimas, e que leva o leitor / espectador a ver as coisas desde o ponto de vista de cada personagem.

Por isso, o enredamento contém um forte elemento moral. Ele deixa uma pergunta: se você estivesse no lugar daquela pessoa, teria mesmo agido de maneira diferente? Se você estivesse enredado ali, teria conseguido se soltar?

Um exemplo de Middlemarch, e outro de O vermelho e o negro

Para que fique claro o quanto perdemos ao adotar uma perspectiva acusatória, vou adotá-la para recontar a primeira grande trama do maior romance de todos os tempos.

Lolita seduz intelectual maduro e o impede de concluir sua grande obra — essa é a acusação desde o ponto de vista do intelectual, que se vê como vítima da sedução de uma jovem.

Professor abusa do prestígio para seduzir jovem inocente — essa é a acusação desde o ponto de vista da nossa Lolita.

E os dois personagens, é claro, são o reverendo Casaubon e a Dorothea Brooke. Se a história deles é contada como um enredamento, como fez George Eliot, sabemos que Dorothea era uma moça idealista num ambiente tacanho, e que o reverendo era a única pessoa que correspondia aos ideais que ela já tinha antes de conhecê-lo. Agora, também ficamos sabendo que esse meio mais tacanho foi mais esperto do que a magnânima Dorothea.

Nada disso transforma os personagens em anjos, mas já estamos dentro do que é propriamente uma história no sentido poético da palavra, porque uma acusação disfarçada de história tem mais valor retórico.

Vejam que não estou falando de «objetividade», mas de uma decisão de pôr em primeiro plano as relações, as interações entre os personagens, e de mostrar como as intenções deles vão sendo formadas assim.

Se você voltar — é claro — a O vermelho e o negro, entenderá que Julien só conquistou a Sra. de Rênal e Mathilde de la Môle por ver-se como um conquistador, na esteira de Napoleão. E por que ele não se veria assim, depois de ver até onde um plebeu poderia chegar? Por que ele trataria com respeito quem o tratou com desprezo? Você faria melhor, no lugar dele, sabendo o que ele sabia, tendo as oportunidades que ele tinha?

Talvez o velho presidente Figueiredo já estivesse nessa perspectiva misericordiosa quando lhe perguntaram o que ele faria se tivesse de viver com um salário mínimo, e respondeu: «Eu dava um tiro no coco.»

Dificuldades — e o risco de comprar o Corcovado

Sugerir que alguém tente ter uma visão mais longa em vez de caçar bodes expiatórios leva a algumas dificuldades previsíveis.

A primeira é que o narrador que não cola um alvo num personagem que faça algo de ruim corre o risco de ser acusado de «relativismo moral», como se tentasse ser um cúmplice chique da maldade. De jeito nenhum: dei os exemplo de Middlemarch para que isso ficasse claro. Não se trata de cumplicidade, mas apenas de entender: por que Fulano estava naquele lugar? O que ele queria? Que pressões ele sofria?

Voltando ao exemplo inicial de WeCrashed, os bilhões de Neumann vêm do encontro de um público de investidores, de um grande vendedor, de uma mensagem. Por que houve esse encontro? Por que houve a venda? Era isso que eu queria saber.

A história acusatória, oito episódios de tudo o que Neumann fez de mais bizarro, mal chega a responder essas perguntas.

A segunda dificuldade, mais séria — e que fica explicitada em Inventing Anna, série da Netflix que sofre do mesmo mal de WeCrashed — é a vergonha da vítima, ou, pelo menos, de quem sai pior.

Imagine que você compra o Pão de Açúcar. Infelizmente, se você não lidar com a vergonha de ter feito isso, se não se perguntar sinceramente o que o levou a comprar o Pão de Açúcar, talvez daqui a algum tempo você venha a comprar o Corcovado.

Essa segunda dificuldade é mais séria justamente por causa da vergonha, e seria mais fácil lidar com ela se não houvesse um público tão disposto a apontar o dedo contra os «trouxas» deste mundo.

(Digo de antemão que eu mesmo já fiz papel de trouxa várias vezes.)

Não apenas queremos colar um alvo nos Adam Neumanns da vida, como ainda queremos rir da cara de quem caiu em sua conversa. Não deveríamos. Não rimos da cara da Dorothea de Middlemarch; quem decide investir e empreender, ainda que numa quimera, saiu da posição de conforto e arriscou algo.

Até porque Neumann não era um vendedor de Pão de Açúcar. Apesar das fraudes e das loucuras, algo do que ele fez gerou algum valor, e obteve a atenção das maiores instituições financeiras dos Estados Unidos.

Na continuação desta newsletter, tentarei esquematizar o «enredamento» da história da ascensão e da queda da WeWork, valendo-me principalmente do livro The Cult of We, de Eliot Brown e Maurren Farrell. (O outro livro, Billion Dollar Loser, é, digamos, tão útil quanto a série WeCrashed.)


Pergunta que não cabe na caixinha

O James Alison é uma autoridade intelectual confiável? Vejo as homilias dele, não conheço muito a sua obra, teologicamente tudo o que ele diz parece bastante correto e preciso, mas chega a ser engraçado para mim em algumas delas ele ficar destrinchando o versículo bíblico e ainda ficar «dessexualizando» o texto e vive usando os chavões esquerdistas ou de mídia, como «teoria da conspiração», «patriarcado», ... Como que alguém que não é desonesto, nem bobo, pode acreditar e abraçar toda essa narrativa genérica que pelo menos eu estou enjoado de ouvir? Não que a narrativa direitista seja perfeita e veríssima, mas ele sendo um sacerdote católico, às vezes me parece que ele se mistura e se divide entre a Igreja e as influências contrárias à ela.

Caro missivista,

Às vezes penso em reescrever Machado de Assis. Lembra da bela Eugênia, de Brás Cubas? «Por que bela, se coxa? Por que coxa, se bela?» Hoje em dia não pegaria muito bem dispensar uma mulher por um defeito físico (talvez até «defeito físico» já traga problemas), por isso imagino um novo Machado se perguntando por que a bela Eugênia decidiu tatuar asas de anjinho nas omoplatas ou caprichar no alargador. (Alargador de lóbulos, vocês sabem.)

Seu caso é parecido. Você vê as homilias do James, acha tudo fantástico, mas de repente nota que ele… «dessexualiza o texto».

Bem, na verdade, ele gostaria de dessexualizar a referência a Deus, até porque no século XXI da era cristã talvez já estivéssemos mais à vontade para aceitar que Deus nem é do sexo masculino, nem, como diriam os mais *avant-garde*, «performa a masculinidade».

(Pausa para respirar depois dessa expressão.)

«Teorias da conspiração», por sua vez, me parecem ter mais a ver com nossa vontade de imaginar que alguém, em algum lugar, não apenas sabe o que está fazendo como ainda está controlando o mundo. Elas me parecem os gemidos mais recentes do sagrado primitivo, aquele negócio de imaginar um centro do qual emanam todas as ações, the still point of the turning world… James está falando de um modo de pensar.

E o «patriarcado»… Não sei se você viu aquele filme do Woody Allen — qual é mesmo? — em que o pai conversa com os filhos pequenos.

— Pai, quem é o chefe aqui em casa?

— Sou eu, claro! A sua mãe apenas toma as decisões.

Nem esquerda nem direita negam a existência de um «patriarcado» — a diferença é que a esquerda não gosta dele e acha bom que ele esteja acabando. A direita lê a respeito dele na internet e, como Dom Quixote, quer imitá-lo, mas com o respeitável nome de «família tradicional». Essa mesma direita que, rindo amarelo, se reconhece nos filmes do Woody Allen.

Há poucos domingos a leitura do Evangelho foi a parábola do bom samaritano. Quando lemos a parábola, pensamos que nós é que seríamos o cara legal que ajudaria o outro caído na estrada. Porém, o samaritano era um sujeito impuro, discriminado pelo público a quem Jesus se dirigia ao contar a parábola. Nosso papel na história é o do cara que está caído na estrada e é ajudado por alguém que lhe provoca repulsa.

Você está pronto para mais homilias excelentes de um padre gay que trabalhava com travestis aidéticos na Belo Horizonte da década de 1980 e acha o Brexit um horror?

Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara