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071 Sobre o «amadurecimento»

Ele também não pode ser buscado diretamente — o que parece estar de acordo com a teoria das camadas

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Fora da (vasta) bolha internética de direita, nunca vi ninguém que tivesse o «amadurecimento» como ideal. Agora, porém, o amadurecimento parece ter assumido o papel de um ídolo, exatamente como no caso da beleza. No texto anterior, expliquei que uma mentalidade «clássica» sempre soube que a beleza não poderia ser buscada diretamente: a beleza era uma decorrência de algumas virtudes. Posso tentar levantar mais peso sem quebrar a coluna, arremessar um disco mais longe sem torcer meus músculos, escrever com clareza sem ser entediante, vestir-me de acordo com a ocasião e com a minha personalidade, etc. Dessa prática cuidadosa, pode surgir uma beleza.

Analogamente, não posso tentar ser diretamente «um homem maduro» ou «uma mulher madura» — e discutir o tema do «amadurecimento» não necessariamente me ajuda a amadurecer.

Posso, porém, saber com certeza que consigo fazer certas coisas, produzindo resultados constantes. Isso significa: sou capaz de arrumar uma casa, de fazer um bolo, de escrever um texto claro, de fazer cálculos complexos, de programar um computador… A ação exata não importa, o que importa é que você consiga produzir resultados constantes (ou, como dizem hoje em dia, em mais um pavoroso anglicismo, «consistentes»).

Em seguida, vejo que preciso descobrir o que consigo fazer que tem valor para os outros, porque são eles que vão me dar o dinheiro com que vou me sustentar. Depois de atingir uma certa independência financeira — a qual, aliás, é uma pura dependência dos outros, porque são eles que me pagam —, uma certa estabilidade nessa relação de trabalho, posso me relacionar de maneira mais séria e íntima com outra pessoa, montando e mantendo um lar, talvez tendo filhos, etc. E, depois disso, posso me perguntar: ok, qual o sentido do que eu fiz?

Alguém deve ter percebido que acabo de resumir o desenvolvimento da personalidade proposto por Olavo de Carvalho entre as famosas «camadas» cinco a oito.

Agora, muitas pessoas acham que estão na «quarta camada» e querem sair dela. Nessa camada (se alguém ainda não sabe), você, como uma criança, precisa que confirmem o tempo todo que você é bom e bonito, que seus desenhos de pessoas-palitos mereciam estar ao lado dos desenhos de Leonardo da Vinci.

Aqui as pessoas fazem da quarta camada um ídolo, uma Medusa paralisante. Elas confundem as inseguranças que todos temos com esses dramas infantis. (Eu tenho inseguranças: todo dia me pergunto se estou escrevendo por rivalidade, o que seria ruim, ou para compartilhar algo de bom. É fácil mentir para mim mesmo e ver-me como o Cristo que anuncia a boa nova quando na verdade estou apenas exasperado com algum blogueiro.)

O detalhe é que, segundo a própria teoria de Olavo de Carvalho, é muito simples passar da quarta camada para a quinta: é só aprender a produzir resultados constantes em qualquer atividade. Ver que você pode.

Por exemplo: aprenda a fazer um bolo. Você é capaz de fazer um bolo igualmente gostoso todos os dias, se quiser? Pronto, você produz resultados constantes. Chegou na quinta camada. Agora descubra o que você pode fazer para os outros e você passará para a sexta.

Contudo, vale recordar que, como no caso de qualquer modelo, as camadas descrevem um desenvolvimento ideal que raramente corresponde ao percurso real das pessoas. Não corresponde ao meu desenvolvimento, nem ao do próprio Olavo.

Se você foi ou é um jovem filosófico, preocupado com o sentido da vida, com o que significa escrever bem, com o papel da cultura, com o ser e o nada, com Deus e as galáxias, com o amor e o casamento, você tem preocupações que estão nas camadas superiores. E grande parte das pessoas tem essas preocupações. É normal. Você tem relacionamentos íntimos antes de ter um tostão. É comum. O percurso real não corresponde ao desenvolvimento ideal.

Assim, se você é um jovem que está preocupado com o sentido da quarta camada, você já está pensando além da quarta camada. Os temas das camadas podem estar presentes em qualquer momento da vida. Porém, se você souber explicar bem camadas, isso pode virar um ofício, e você pode ganhar a vida com ele. (Embora esse mercado já esteja parecendo um pouco saturado.)

Eu mesmo passei por um problema similar ao dos jovens que acham que estão na quarta camada. Com 22 anos percebi: emito julgamentos a respeito dos destinos do Ocidente e da Igreja, mas não pago minhas contas. Porém, nem por isso me senti um lixo. Eu sabia que tinha qualidades: sei escrever, tenho facilidade com línguas e com trabalhos que exigem solidão e concentração. Eu já estava seguro das minhas habilidades de «quinta camada». Percebi, então que eu poderia traduzir livros para editoras, o que me levou para a sexta camada. Com o tempo, isso me deu a independência para alugar um apartamento, me casar, etc., e lá fui eu para a sétima camada. Nesse ínterim fui percebendo que meus juízos a respeito dos destinos do ocidente eram apenas pueris. Passei a falar de coisas que tinha vivido e a respeito das quais tinha meditado de maneira realista — o que seria a oitava camada.

Contudo, em rigorosamente nenhum momento dessa passagem pelas camadas eu pensei na teoria das camadas. Não pensei nela nem por um segundo, embora já a conhecesse. E, se amadureci de algum modo, em momento nenhum me perguntei se eu era uma pessoa madura, ou se eu deveria agir como uma pessoa madura, como se ideia de maturidade estivesse me norteando. Eu apenas queria sentir que minhas palavras não eram vazias.

Beleza e maturidade

Agora, permitam-me retomar a newsletter anterior para fins didáticos: de um ponto de vista «clássico», um texto é belo se é claro. Ele é claro se, por exemplo, não tem ambiguidades. Você pode perfeitamente estudar as ambiguidades e aprender a evitá-las. Uma mulher é bela se, por exemplo, usa cores que ressaltam suas qualidades, ou se compõe com as roupas um personagem que combina com o que ela é. Aliás, também é possível estudar essas combinações. Analogamente, uma pessoa «madura» é aquela que tem uma independência que ela sabe ser uma profunda dependência dos outros. Ela sabe que ela própria é um ponto de comércio entre o mundo e suas aptidões. Ela sabe o preço das coisas — sabe que uma garrafa de vinho tomável já ultrapassou consideravelmente o valor de um lauda de tradução, sabe que a intimidade de um relacionamento de anos não é a mesma coisa que uma afinidade sentida no primeiro dia.

Se você busca a beleza diretamente, em vez de buscar por exemplo a harmonia, o resultado é o kitsch, que é a imitação da beleza, com aquele cheirinho de coisa falsificada, de ouvirundum, de esforço desnecessário. Se você busca a maturidade diretamente, até agora o resultado me parece, para os homens, uma estranha mistura de músculos, estoicismo pop, cristianismo masoquista, e calça colada, com aquela expressão no olhar que (até em padres!) de longe é reconhecida como a «satisfação consigo mesmo» que faz pensar no tiozão rico, moderno, e sabe-tudo; para as mulheres, vestidos sem estampas e centenas de páginas para convencer a si mesma de que precisa obedecer o marido.

Just do it

Ao famoso grande público, resta o destino dos escravos psicológicos. Não é apenas que ele esteja paralisado pelo fetiche do amadurecimento e da beleza. Talvez se trate de algo muito mais simples: colado perpetuamente à tela do celular, esse público nunca fecha os olhos para a luz opressora dos seus modelos. Até eu, quando fiz meus primeiros bolos na adolescência, ou minhas redações na infância, fiz questão de fazer sozinho, de testar minhas próprias capacidades. Não havia nem um pâtissier estrelado e francês para me oprimir com sua massa perfeita, nem um Machado de Assis esfregando na minha cara seu estilo soberbamente invisível.

Você vai tentar fazer as coisas sozinho, e depois, claro, pode voltar aos modelos em busca de critérios. Um estudante de artes visuais senta na frente de um quadro, no museu (quem nunca viu a cena?) e desenha o quadro; mas esse estudante também tenta produzir suas obras próprias tendo os modelos como referências, mas não como presenças próximas, constantes e, por isso, opressoras.

Esse estudante, assim como uma criança, chegará à maturidade — assim que parar de filosofar sobre o que é a beleza, sobre o que é a maturidade, e fizer alguma coisa.

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Pedro Sette-Câmara
Pedro Sette-Câmara
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Pedro Sette-Câmara