Antes de começar a newsletter 077, aviso que fiz importantes alterações no subtítulo «Chicotadas» do texto 045: Jesus justifica a violência ao expulsar os vendilhões do Templo? Tenho esclarecimentos a respeito do uso do chicote.
1 The West Wing
E se os mais altos escalões do governo fossem ocupados por pessoas realmente nobres?
A série The West Wing (1999-2006) foi claramente feita para responder essa pergunta. E, como se trata de uma obra de ficção, segue-se inevitavelmente outra pergunta: como seria, hoje, uma pessoa nobre? Uma pessoa cuja nobreza pareça verossímil, na qual consigamos acreditar?
A resposta de Aaron Sorkin, criador da série, parecia corresponder aos ideais daquela época: essas pessoas são workaholics com as melhores das intenções, são pessoas de inteligência prática fora do comum, cujas maiores faltas estão na vida pessoal, que elas sacrificaram para o trabalho.
Agora, dessas qualidades, a mais valorizada por The West Wing é a inteligência. Como se os Estados Unidos da série tivessem a vocação de ser uma grande escola, cujo presidente é um rei-filósofo, naturalmente cercado por assessores brilhantes. Até mesmo seus adversários — sobretudo na última temporada — podem ser igualmente brilhantes, e nada sugere que sejam mal-intencionados.
Sim, claro que em The West Wing ainda é uma série política, na qual acontece muito toma lá, dá cá — afinal, não é só a nobreza dos personagens que precisa ser verossímil. Mesmo assim, a democracia ali representada continua sendo um longo debate no qual o melhor vence. Você pode dizer que a famosa vida real nunca foi bem assim, pode dizer que a série tem viés esquerdista, que ela pressupõe que o governo é capaz de fazer qualquer coisa, mas é difícil negar que, se as pessoas no governo forem parecidas com os personagens fixos de The West Wing, então estaríamos bem encaminhados.
2 Borgen
Filha de The West Wing, a dinamarquesa Borgen (todinha na Netflix) também tenta responder a mesma pergunta, adaptada a seu tempo e a seu lugar: como seria o governo dinamarquês, parlamentarista, se o alto escalão fosse ocupado por pessoas efetivamente nobres?
A resposta é distinta: a inteligência não é mais tão valorizada, não há o culto da grande retórica dos americanos fictícios, mas há, talvez até por causa do sistema parlamentarista, a necessidade de criar consensos, de negociar sem ofender, de vencer sem humilhar.
Tanto que, se Jed Bartlett, o presidente americano de The West Wing, é um ganhador do Nobel, Birgitte Nyborg, a primeira-ministra de Borgen, é uma verdadeira Miss Simpatia. Você primeiro admira Jed Bartlett, e depois gosta dele. Você primeiro gosta de Birgitte Nyborg, e depois a admira.
Enfim, gente simpática, que gasta suas energias na manutenção de consensos frágeis, tudo para que possamos conviver? Eis aí, também, um belo ideal. Se eu tivesse uma filha e ela me dissesse que quer ser como Birgitte Nyborg, eu diria: muito bem.
Porém, se em The West Wing os adversários eram respeitáveis, em Borgen já temos personagens marcados pela indignidade. O vilão Michael Laugesen (pronunciado «Míkel Láugsen»), dono de um tabloide, é um crápula digno de Nelson Rodrigues, um Amado Ribeiro com muito dinheiro.
O deputado Svend Åge (os personagens pronunciam «Sven Ôu»), da famigerada, terrível, e assustadora extrema direita é caricaturalmente grotesco — tão caricatural, tão ogro, que parece até que a série está admitindo que ele é na verdade inofensivo, e está ali só para fazer o papel de bode expiatório mesmo.
(Um dia valeria a pena fazer um estudo sobre a explicitação do bode expiatório. Quem viu Parks and Recreation se lembra de Jerry.)
As três primeiras temporadas de Borgen foram exibidas entre 2010 e 2013, e os parágrafos acima valem para essas temporadas. Na quarta e derradeira temporada, a história é diferente.
3 Em 2022, o inventário dos ideais perdidos
Nove anos depois, Borgen voltou. Se bem que… Seria mais adequado dizer que alguns personagens de Borgen voltaram, mas a premissa «e se o governo fosse formado por pessoas nobres…?» não voltou.