093 Contra as urnas eletrônicas (e não só)
Existem coisas mais importantes do que a conveniência
Não é porque eu uso canetas-tinteiro e moo meu próprio café todos os dias que eu diria que a contagem manual dos votos é preferível ao uso de urnas eletrônicas, mas porque, com cada uma dessas opções, estou dizendo: existe algo que, para mim, é mais valioso do que a conveniência. E eu mais do que gostaria que o Estado, também, prezasse algo superior à conveniência.
Sim, é conveniente ter a contagem dos votos no mesmo dia da eleição, assim como é conveniente usar uma cápsula e uma máquina que, em poucos segundos, me entrega uma bebida que, para muitos paladares, merece ser chamada de café. Também é mais conveniente usar canetas esferográficas, que são baratas e descartáveis; aliás, mais conveniente ainda é nem sequer usá-las, e fazer tudo por uma tela.
O que está acima da conveniência, no caso das urnas eletrônicas, é a credibilidade. Para muitas pessoas, elas não são confiáveis, e o fato de um burocrata de terno ou mesmo de toga me garantir que elas são confiáveis não basta. Eu uso os melhores eletrônicos, sou cuidadoso, e mesmo assim coisas bizarras acontecem. Outro dia o Bluetooth do meu iMac M1 (no momento em que escrevo, a geração mais recente) simplesmente parou de funcionar, do nada, e só não me desesperei porque já estou acostumado a tratar qualquer eletrônico como algo que pode falhar a qualquer momento.
E mais. Quem vai querer entrar no meu computador? Francamente, só um hacker meio pobre. Agora, quem gostaria de invadir e de violar o sistema eleitoral de um país inteiro? Quem teria interesse nisso? A julgar pelos departamentos de operações estruturadas e também de operações desestruturadas, muita gente, mais graúda e mais pé-de-chinelo.
Porém, perguntará o leitor, e com toda razão, podíamos confiar na contagem manual dos votos? Não sei, em última instância podemos até não confiar em nada, se você me disser que o mundo é uma simulação e que vivemos num romance de Philip K. Dick, uma parte envergonhada de mim admitirá que essa hipótese soa até razoável, e talvez seja por isso, por uma dificuldade pessoal de acreditar no «sistema», que eu prefira nem pensar muito em eleições.
Agora, a questão, aqui, é que até há pouco a contagem manual ao menos não era questionada. Era algo que estava quieto. Não era a minha visão de mundo philip-k-dickiana que interessava.
Assim, pergunto-me, indago-me, questiono-me, eu, que não sou chefe de nada, por que alguém mexeria na contagem de votos, quando isso poderia pôr em xeque a legitimidade do próprio sistema? Não era, mesmo do ponto de vista prático, uma mera questão de prudência?
Tenho, contudo, uma certa vergonha desse argumento prático, porque ele também tem seu parentesco com a eficiência. O que eu gostaria é que o Estado dissesse: existimos para algo que está além da eficiência. Vamos respeitar a desconfiança alheia, porque é no respeito dessa desconfiança que garantimos a nossa legitimidade, já naturalmente tão precária. Não somos apenas brucutus tecnocratas que querem resolver tudo logo, e que exigem total confiança da massa ignara — a qual, caso desconfie, pode desconfiar atrás das grades.
Porém, é exatamente isso que vejo. Estamos tão viciados na eficiência que a coisa mais subversiva e «antidemocrática» — cada vez mais, e exatamente por questões como a das urnas eletrônicas, a palavra «democracia» só pode ser usada com aspas — que se pode fazer no Brasil de hoje é declarar que você desconfia… de um sistema eletrônico cujo funcionamento você mesmo nem entende, e do qual não pode fugir.
O abandono da prudência leva a absurdos que, se estivessem num romance, seriam muito engraçados. De um lado, pessoas de direita questionam as urnas, mas não o resultado que elegeu seu candidato; de outro, pessoas de esquerda adotam a postura de VAI TER URNA ELETRÔNICA SIM E QUEM NÃO GOSTAR É FASCISTA!
Mas volto ao meu tema principal: ou estamos numa democracia e eu posso questionar o sistema, posso questionar tudo, ainda que eu mesmo corra o risco de soar absurdo e ridículo, quiçá infame, e o mérito todo do Estado está em absorver esses questionamentos e manter-se de pé, com a tolerância com os ridículos valendo como a maior prova de sua legitimidade, ou o Estado tem exatamente em seu cerne algo de inquestionável, não um princípio, não um dogma, mas um elemento prático mesmo: um mero sistema eletrônico. E, se esse sistema não pode ser questionado, então já começo imaginar conspirações, interesses escusos, corrupção, orgias satânicas com alienígenas, ou simplesmente, como diz a expressão popular, aquilo que eles não querem que você saiba.
Lembro bem de quando desconfiar do «sistema», desconfiar do governo, era algo inteiramente normal, de quando você afirmar sua total crença nas otoridades é que levantaria sobrancelhas e provocaria suspiros exasperados. A legitimidade viria da aceitação da tensão entre a confiança e a desconfiança, da aceitação de consensos frágeis, de que nisso consistia a realização, mesmo que parcial, de um ideal democrático.
Aceitar isso era uma decisão. Evitar sacrificar a aparência de legitimidade do sistema em nome da eficiência na contagem de votos seria também uma decisão, que, assim como o uso diário de canetas-tinteiro ou de moedores manuais de café, preservaria algo mais importante do que a conveniência. Quando o Estado exige que você confie em algo apenas porque sim, porque sou eu que estou falando, o resultado não é a criação de uma transcendência da qual emana a justiça, nem uma ficção digna de certa credibilidade, mas apenas a explicitação de uma violência mesquinha e inevitavelmente suspeita. Se o Estado nem se importa mais em parecer suspeito, bem.
Mas não é essa a conclusão. Não gosto de concluir com chave de ouro. O que temos aqui é algo ainda um tanto mais grave, porque não é que um dia os burocratas tenham decidido, num grande sabá à meia-noite, que pouco se importavam com a sua credibilidade, que era tudo força e violência mesmo, que todo esse fingimento já estava dando nos nervos.
O que temos é simplesmente a crença de que o sistema precisa funcionar bem; o sistema precisa ser democrático, mas nós, individualmente, não precisamos ser democráticos. Não cabe a mim tolerar o contraditório, mesmo quando absurdo; não cabe a mim aceitar a tensão perpétua entre situação e oposição, nem a alternância de partidos. Hoje, ser «democrático» (e tome aspas) é acreditar no sistema. Se o burocrata decidiu, então está decidido; não é nossa responsabilidade; aliás, não temos responsabilidade nenhuma além de não questionar aquilo que já foi decidido e defendido com Excel e PowerPoint.
Isso sim é o fim do Iluminismo.
Pedro, embora eu ache importante cultivar a dúvida, me parece também que nem todo o questionamento vem de uma preocupação intelectualmente honesta. Nesse tema em particular, em que questões de poder estão em jogo, acho difícil acreditar que o lado perdedor estava de fato preocupado com a segurança das eleições, dado que o único resultado que foi posto em cheque foi o da disputa presidencial. Acho que o mundo moderno tem de fato uma questão a resolver: a gente entende de verdade cada vez menos coisas. Eu não entendo como a infraestrutura de internet funciona, como as torres de controle garantem a segurança de um avião, como um teste genético funciona. Mas as pessoas estão lá: construindo redes, decolando aviões, mapeando o genoma. Como a gente constrói credibilidade num mundo cada vez mais complexo e menos inteligível a nível individual? Dada a expansão do conhecimento que ignoramos, como exercitar um ceticismo inteligente, que seja questionador sem cair no canto dos mercadores de teorias da conspiração, que claramente também tem seus próprios interesses? Há uma ironia no ceticismo: a pessoa que cai no golpe em geral é aquela que está tentando ser mais esperta que os demais.