Pedro, embora eu ache importante cultivar a dúvida, me parece também que nem todo o questionamento vem de uma preocupação intelectualmente honesta. Nesse tema em particular, em que questões de poder estão em jogo, acho difícil acreditar que o lado perdedor estava de fato preocupado com a segurança das eleições, dado que o único resultado que foi posto em cheque foi o da disputa presidencial. Acho que o mundo moderno tem de fato uma questão a resolver: a gente entende de verdade cada vez menos coisas. Eu não entendo como a infraestrutura de internet funciona, como as torres de controle garantem a segurança de um avião, como um teste genético funciona. Mas as pessoas estão lá: construindo redes, decolando aviões, mapeando o genoma. Como a gente constrói credibilidade num mundo cada vez mais complexo e menos inteligível a nível individual? Dada a expansão do conhecimento que ignoramos, como exercitar um ceticismo inteligente, que seja questionador sem cair no canto dos mercadores de teorias da conspiração, que claramente também tem seus próprios interesses? Há uma ironia no ceticismo: a pessoa que cai no golpe em geral é aquela que está tentando ser mais esperta que os demais.
Você obviamente tem toda razão em tudo o que escreveu, e o problema que você apresenta sobre a credibilidade é até discutido pelo Girard em «Critique dans un souterrain». Mas a minha questão nem é tanto essa; ela tem a ver com a legitimidade do questionamento, inclusive veemente, do Estado. Uma pessoa não pode ser taxada de subversiva porque ela tem dificuldades para crer num sistema eletrônico, e eu acho que o Estado deveria honrar essa descrença. É como uma briga de namorados: não se trata tanto de ter razão, mas de deixar claro que você ouviu o que o outro estava dizendo, e não o chamou de maluco. Claro, num namoro você pode simplesmente ir embora; mas, numa democracia, fica difícil simplesmente deslegitimar tanta gente.
Mas qual a responsabilidade razoável em honrar a descrença? A Justiça Eleitoral fez campanha de conscientização, o TSE fez inserções na TV e no rádio, a USP e a Unicamp fizeram auditoria no sistema, os militares puderam apresentar o próprio relatório ao TSE, o Congresso tinha e tem ampla representatividade da oposição, a grande imprensa fez reportagem atrás de reportagem… até o governo americano se meteu a fiscalizar a lisura do processo eleitoral brasileiro. Qual a hora do namoro em que uma parte tem que admitir um problema grave em si mesma, se ela segue acusando a outra de infidelidade, apesar da falta de evidências? Quando o namorado pode parar de provar que é fiel? Quando a namorada passou do limite da dúvida razoável?
Eis, ao que parece, o nosso ponto de discordância. Eu creio que a mera rejeição das urnas deveria ter bastado, que as urnas eletrônicas deveriam ter sido vistas como um ponto controverso, e o governo deveria ter recuado, porque as consequências seriam piores ainda -- a famosa «crise de representatividade». A analogia do namoro ou do casamento só funciona até certo ponto.
No cenário em que a gente está, se reclamação de um lado fosse o suficiente pra mudar as práticas de Estado, sobravam só os bombeiros e olhe lá.
De resto, acho que entendo seu propósito com o texto, e talvez até concordasse com ele num vácuo de contexto. Mas me parece realmente difícil acreditar na boa fé dos centros políticos que avançaram esse argumento, embora os cidadãos a nível pessoal possam ter se convencido da justeza da dúvida. Trocar o sistema eleitoral em ano de eleição era justamente a bagunça generalizada de que alguns setores políticos queriam se beneficiar. Os próprios parlamentares eleitos, que têm imunidade parlamentar, ficaram quietinhos sobre segurança eleitoral. Sobrou o cidadão comum de bucha de canhão, comprando um briga pela qual os seus representantes não lutam - na minha opinião, porque não acreditam de verdade - e tomando sozinho o calor de afrontar as instituições.
Pedro, embora eu ache importante cultivar a dúvida, me parece também que nem todo o questionamento vem de uma preocupação intelectualmente honesta. Nesse tema em particular, em que questões de poder estão em jogo, acho difícil acreditar que o lado perdedor estava de fato preocupado com a segurança das eleições, dado que o único resultado que foi posto em cheque foi o da disputa presidencial. Acho que o mundo moderno tem de fato uma questão a resolver: a gente entende de verdade cada vez menos coisas. Eu não entendo como a infraestrutura de internet funciona, como as torres de controle garantem a segurança de um avião, como um teste genético funciona. Mas as pessoas estão lá: construindo redes, decolando aviões, mapeando o genoma. Como a gente constrói credibilidade num mundo cada vez mais complexo e menos inteligível a nível individual? Dada a expansão do conhecimento que ignoramos, como exercitar um ceticismo inteligente, que seja questionador sem cair no canto dos mercadores de teorias da conspiração, que claramente também tem seus próprios interesses? Há uma ironia no ceticismo: a pessoa que cai no golpe em geral é aquela que está tentando ser mais esperta que os demais.
Você obviamente tem toda razão em tudo o que escreveu, e o problema que você apresenta sobre a credibilidade é até discutido pelo Girard em «Critique dans un souterrain». Mas a minha questão nem é tanto essa; ela tem a ver com a legitimidade do questionamento, inclusive veemente, do Estado. Uma pessoa não pode ser taxada de subversiva porque ela tem dificuldades para crer num sistema eletrônico, e eu acho que o Estado deveria honrar essa descrença. É como uma briga de namorados: não se trata tanto de ter razão, mas de deixar claro que você ouviu o que o outro estava dizendo, e não o chamou de maluco. Claro, num namoro você pode simplesmente ir embora; mas, numa democracia, fica difícil simplesmente deslegitimar tanta gente.
Mas qual a responsabilidade razoável em honrar a descrença? A Justiça Eleitoral fez campanha de conscientização, o TSE fez inserções na TV e no rádio, a USP e a Unicamp fizeram auditoria no sistema, os militares puderam apresentar o próprio relatório ao TSE, o Congresso tinha e tem ampla representatividade da oposição, a grande imprensa fez reportagem atrás de reportagem… até o governo americano se meteu a fiscalizar a lisura do processo eleitoral brasileiro. Qual a hora do namoro em que uma parte tem que admitir um problema grave em si mesma, se ela segue acusando a outra de infidelidade, apesar da falta de evidências? Quando o namorado pode parar de provar que é fiel? Quando a namorada passou do limite da dúvida razoável?
Eis, ao que parece, o nosso ponto de discordância. Eu creio que a mera rejeição das urnas deveria ter bastado, que as urnas eletrônicas deveriam ter sido vistas como um ponto controverso, e o governo deveria ter recuado, porque as consequências seriam piores ainda -- a famosa «crise de representatividade». A analogia do namoro ou do casamento só funciona até certo ponto.
No cenário em que a gente está, se reclamação de um lado fosse o suficiente pra mudar as práticas de Estado, sobravam só os bombeiros e olhe lá.
De resto, acho que entendo seu propósito com o texto, e talvez até concordasse com ele num vácuo de contexto. Mas me parece realmente difícil acreditar na boa fé dos centros políticos que avançaram esse argumento, embora os cidadãos a nível pessoal possam ter se convencido da justeza da dúvida. Trocar o sistema eleitoral em ano de eleição era justamente a bagunça generalizada de que alguns setores políticos queriam se beneficiar. Os próprios parlamentares eleitos, que têm imunidade parlamentar, ficaram quietinhos sobre segurança eleitoral. Sobrou o cidadão comum de bucha de canhão, comprando um briga pela qual os seus representantes não lutam - na minha opinião, porque não acreditam de verdade - e tomando sozinho o calor de afrontar as instituições.