Retomo o tema do subsolo após pedidos de diversas pessoas por um curso que fosse uma espécie de continuação de Desejo & Orgulho e que tratasse da questão «como sair do subsolo?». Antes mesmo de este novo curso — O mapa do subsolo — sequer começar a ser gravado, devo adiantar que a resposta provavelmente envolve o tratamento com algum psicólogo, que não é uma jornada simples. Aquilo que eu posso oferecer agora entra na categoria que alguém como Pete Walker denomina book therapy — e, como aqui não estou oferecendo um livro, conto com a boa vontade do leitor para traduzir a expressão como terapia… do texto.
A primeira resposta, que trata dos sentimentos ambíguos de fascínio e repulsa que grande parte da internet às direitas sente em relação à família Marsili, rendeu-me muitas mensagens. Mas atenção: nada do que eu direi é um elogio ou uma condenação do casal Marsili, mas apenas uma oportunidade para explicar como a idolatria pode estar presente em qualquer relação, não importando se, nessa relação, as pessoas falam de cristianismo ou de virtudes.
Vamos lá, tendo em mente um dos grandes romances sobre subsolo e idolatria de todos os tempos: Demônios, de Dostoiévski.
«…você parece ver a mim como uma espécie de sol, e a si mesmo como uma espécie de inseto em comparação a mim.»
Nikolai Stavróguin, falando com Chátov. Dostoiévski, Demônios (aqui traduzido da tradução inglesa de Richard Pevear e Larissa Volokhonski.)
Pergunta 1: Idolatria & Ítalo Marsili
Pergunta: Eu já fui idólatra de Ítalo Marsili. Me curei. Agora só sinto raiva. Como sair disso?
Permita-me dizer, antes de tudo, que você pode desenvolver uma relação de idolatria com qualquer pessoa. E também que, na maior parte dos casos, as pessoas – tanto o ídolo quanto o idólatra – costumam desenvolver essas relações de maneira semiconsciente.
Isto é: não existe necessariamente má intenção, nem cálculo direto.
Agora, se você hoje sente raiva, a idolatria permanece. Você está apenas em outro momento dela. E ainda corre outro risco, o risco mais comum de todos: trocar o seu ídolo de ontem por um ídolo de hoje, um ídolo 2.0, melhorado, porque o primeiro não tinha uma câmera de 40 megapixels, não enfatizava a misericórdia, sei lá.
Creio que só tenho uma pequena competência para lidar com uma parte do seu problema, a parte cognitiva. Recomendo que você procure um psicólogo. Vamos lá.
(Eu mesmo estou muito interessado em dialogar com terapeutas e psicólogos que tenham interesse por essa perspectiva girardiana, ainda mais porque hoje me dei conta de que a literatura do trauma do John Bradshaw pode ser tão facilmente traduzida na teoria mimética porque os dois têm o mesmo antepassado: a filosofia de Max Scheler.)
A idolatria tem mesmo algo de fascínio e de repulsa. Você quer se aproximar do ídolo, mas o ídolo só pode ser ídolo se não existe intimidade. A intimidade é o contrário da idolatria. O ídolo repele você, não permite que você entre no mundo dele, e você se ressente disso.
Se você desiste de entrar no mundo do ídolo, se declara que os ideais dele são inviáveis, você corre o risco de ser aquela raposa da fábula, que desdenha das uvas que ela não consegue alcançar.
Mas você tem uma vantagem: você não está mentindo para si mesmo (como a raposa), e está admitindo tanto seu ódio quanto seu fascínio.
O caminho para sair desse ódio, o qual faz parte da idolatria, está em você se perguntar por que aquele ídolo foi tão fascinante. Ele estava respondendo a algum anseio real, a alguma pergunta real, a alguma necessidade real. Se você não localizar essa necessidade, é provável que seu próximo passo seja procurar o ídolo 2.0, o ídolo melhor, o ídolo que vai dar aquela sensação (sempre falsa, posso garantir) de «agora vai».
Por que a internet às direitas é tão fascinada pela família perfeita? Talvez por sentir uma grande carência em relação aos próprios pais.
Por que é tão fascinada pela ideia de dever? Talvez porque o Brasil seja um ambiente tão caótico que a palavra cumprida pareça não a base do cotidiano, mas a pérola de grande valor.
Por que cremos tanto no liberalismo econômico? Porque o mundo parece estagnado e não conseguimos enxergar oportunidades.
Aqui, porém, estou especulando. Você precisa mesmo se perguntar o que você queria, admitindo que talvez você tenha mais de uma motivação.
Quando você conseguir pôr a si mesmo entre parênteses um pouquinho, de preferência com a ajuda de um psicólogo inteligente e compassivo, isto é, com a ajuda de alguém que não vai fazer você sentir vergonha de nenhuma necessidade sua, você vai começar a entender de onde vem a sua idolatria.
Ao abandonar a idolatria, você vai ter compaixão de si mesmo e também do seu ídolo. Você verá que você tinha a necessidade X e adotou a estratégia Y, e que ele também tinha tais necessidades e adotou tais estratégias.
Verá que ele tem qualidades de que você não suspeitava, porque antes você queria que ele te salvasse. Verá que os defeitos ou supostos defeitos dele não são mais um gatilho para você.
Você terá paz, ao menos nesse ponto, e entenderá o quanto te custou chegar a essa paz. Você não vai desprezar os outros idólatras (e todo ídolo provavelmente é também idólatra) porque você conhece o poder da idolatria e se lembra de como ela é envolvente e distorce a percepção. Você dirá, como (o sublime poeta francês) Baudelaire: meu semelhante, meu irmão.
Talvez você não fique rico nem tenha benefícios mundanos, mas você terá uma tranquilidade tão madura que muitas pessoas bem-sucedidas nem conseguirão entendê-la direito. Isto terá valido como uma iniciação, e você vai sentir uma alegria enorme ao perceber que a vida, a vida humana, com seres humanos e não com ídolos, acabou de começar.
2: E se você se tornar o ídolo?
Pergunta 2: E se você se tornar o ídolo?
Qualquer pessoa pode se tornar o ídolo de outra, mesmo sem ter tido essa intenção. E o tipo de exposição que existe no Instagram (mais do que no YouTube, mais do que nos textos) é particularmente convidativa a formar a idolatria, porque você pode oferecer uma seleção cuidadosa dos seus momentos perfeitos e «vulneráveis», contando a sua história de sucesso desde o ponto de vista do sucesso.
No Instagram, o fracasso é sempre uma lição aprendida desde o ponto de vista do sucesso. Até mesmo estas respostas que estou dando aqui tratam da idolatria desde o ponto de vista de quem consegue reconhecê-la e, às vezes, não se deixar levar por ela.
Parece importante que um cristão não tente se tornar um ídolo. Por exemplo, diante dessas reflexões sobre idolatria, a modéstia não ganha outro sentido? Por que uma mulher deveria ser modesta apenas para evitar a cobiça em relação a seu corpo? A modéstia não nos diz a todos, homens e mulheres, que devemos evitar nos tornar ídolos uns dos outros, mesmo que haja muito dinheiro na idolatria?
Além disso, creio que não é possível ser sonso. Eu mesmo defino a sonsice como você querer fingir que você só é responsável pelas suas intenções, e que qualquer consequência impremeditada é problema exclusivo do outro.
O exemplo mais banal de sonsice é o vizinho que ouve som alto. Ele quer se divertir, e eu quero sossego. Se eu decidisse fundir metais pesados no meu apartamento e de repente meu vizinho fosse atingido por um jato de chumbo quente que perfurasse seu teto, eu não poderia dizer: «eu queria só fundir chumbo aqui no meu piso de tacos».
Talvez você não esteja fingindo quando ignora as consequências da idolatria, porque você não tem muito talento psicológico, experiência, ou não teve de passar por aquele momento «filho pródigo» em que você diz: estou na pior e não dá nem para fingir que isso aqui é um aprendizado, eu estou na pior e pronto, a minha própria pose vai acabar me matando.
Muitas pessoas não passaram por essa experiência, ainda mais aquelas que sempre se deram bem: aquelas que logo perceberam seus principais talentos, aquelas que têm o talento de passar em provas (detestar a escola e detestar fazer provas é normal, eu diria até que é um sinal de saúde) e foram premiadas por seus talentos convencionais com notas, com bolsas, com altos salários, que se casaram bem. Provavelmente a maior fonte de crise na vida dessas pessoas virá do relacionamento amoroso (caso mais clássico da literatura universal: você se casa virtuosamente e descobre o amor com outra pessoa depois de casado) ou do relacionamento com os filhos (que não têm os mesmos talentos convencionais que você).
Preciso enfatizar outra vez que a relação de idolatria não diz necessariamente nada sobre o caráter nem sobre o talento real dos ídolos. Veja uma Taylor Swift: ela tem mesmo talento, energia, coordenação, coragem, inteligência, e, francamente, só pelo vídeo «Look What You Made Me Do», mais intuição mimética do que 99% dos psicólogos e romancistas. Mas você pode admirar Taylor Swift ou o seu blogueiro favorito sem SENTIR que a única vida que vale a pena é a vida deles.
É isso que eu quero dizer quando falo que aqui começa a vida humana. Em «Sob o Sol de Satã», o padre Donissan (ou seu pároco, já não lembro) fala da «assustadora monotonia do pecado», l’effrayable monotonie du péché. A idolatria é monótona, é sempre a mesma relação tediosa, uma hora você está nas nuvens, outra hora está na lama; uma hora você tomou a droga, outra hora você está em crise de abstinência. Antes você só via o fascínio, a admiração, agora só vê o ódio.
Se você consegue admirar sem idolatrar, você fica maravilhado com a diversidade de experiências e de talentos. Ok, eu, Pedro, escrevo direitinho, mas eu nunca seria capaz de projetar o ventilador que me refresca neste momento. Outras pessoas têm um grande talento para cores, para se vestir bem – já eu cogito só me vestir de preto, cinza, e azul porque é mais fácil.
Outros cozinham, outros constróem, quantas mulheres educam crianças! Posso ter admiração e gratidão por todas essas pessoas, e ter compaixão também, porque sei que todo trabalho tem seus dias chatos, que às vezes estamos de mau humor, que muitas vezes estamos perdidaços, que perdemos o pudor de fazer o mal porque alguém não teve pudor nenhum na hora de fazer o mal conosco.
Você, por causa do double bind (a respeito do double bind, tenho um post recente no Instagram, e uma explicação mais longa aqui no Substack), sente que largar a idolatria é perder a transcendência, mas é perder a falsa transcendência. Olhe a riqueza do mundo à sua volta, na horizontal mesmo. Ela aponta para algo muito maior do que esse santo de pau oco que você mesmo inventou para tapar alguma carência que você prefere não enxergar.